sábado, 17 de novembro de 2012

Um “caboclo” baixou no palco do Municipal! Em apuros o barítono Sylvio Vieira.

Sylvio Vieira no papel de "Iberê", da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes.
por Henrique Marques Porto

O teatro de ópera, mais do que qualquer outra expressão ou gênero artístico que acontece ao vivo, é pródigo em histórias, casos curiosos e episódios bizarros. Isso talvez se explique pelo fato de ser a ópera um espetáculo de certa forma muito perigoso para os muitos artistas nele envolvidos, principalmente para os protagonistas. A ópera se equilibra naquela desprotegida fronteira que separa o drama e a comédia; a tragédia e a pândega. Um pequeno acidente ou um leve exagero na interpretação pode jogar uma cena inteira para um lado ou outro. Então, o riso prevalece onde deveria existir a lágrima; e a gargalhada franca do público substitui a comoção. Ou vice-versa. 

Mas, às vezes, é um episódio dos bastidores que interfere na performance de um artista e define o destino de um desempenho. O público sequer toma conhecimento do que se passou, e aplaude ou demonstra desencanto, enquanto o mistério fica lá, escondido na meia luz das coxias. É a magia do teatro.

Sylvio Vieira, o grande barítono brasileiro que o Opera Sempre lembrou em recente matéria (leia aqui), protagonizou um desses episódios estranhos de bastidores que não chegam ao conhecimento público, mas que ficam misteriosamente vivos entre as sombras do fundo do palco e animam as conversas nas rodas formadas nos intervalos das óperas.

Sylvio era uma figura muito querida no teatro lírico brasileiro. Homem simples, um brasileiro típico. Era maçon, mas também fazia suas orações católicas. Era, portanto, católico e maçon, mas também adepto do espiritualismo kardecista. Era, assim, espiritualista, maçon e católico, mas também levava fé na umbanda e nos seus bravos Santos, Caboclos e entidades. Pode-se dizer que Sylvio Vieira era um barítono ecumênico.   
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Um dos papéis em que mais se destacou foi no “Iberê”, de Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Sempre fazia muito sucesso nessa ópera. Mas houve uma récita, nos anos 1940, que marcou para sempre sua carreira, e cuja história foi repetida durante décadas pelos corredores do velho e, dizem, mal assombrado Theatro Municipal. 
Maestro Jose Torre
Naquela noite, o maestro Jose Torre, italiano radicado no Brasil, fazia a função de maestro interno, orientando os artistas e indicando as entradas em cena com a partitura reduzida nas mãos. Estava para começar o segundo ato de Lo Schiavo e o maestro Torre já tinha a seu lado um compenetrado Sylvio Vieira, na pele de “Iberê” –um índio que originalmente deveria ser um escravo negro, o que sempre provocou uma certa combinação de estilos nos figurinos que vestem o personagem. Sylvio estava concentrado, cabeça baixa e olhos fechados. O maestro Torre observava-o atento. Até que notou que ele estava bem mais concentrado do que devia ou era habitual. O arguto maestro Torre, que conhecia bem o Vieira e era homem já acostumado com o ecletismo cultural brasileiro e suas facetas, notou que Sylvio Vieira não estava propriamente concentrado. Estava, isso sim, inteiramente desligado e fora de si! Respirava fundo e o corpo sacolejava como que perpassado por estranhas vibrações; revirava os olhos e batia levemente com a cabeça. O “sobrenatural de almeida” estava prestes a entrar em cena!

“-Mio San Genaro! O 'Sirvio' pegô o santo!” –exclamou o maestro Torre. 

Sim, o maestro Torre, vivendo há mais de dez anos no Rio de Janeiro, já estava entendido nas manhas da religiosidade brasileira e soube identificar o que estava acontecendo. Atraído pelos cenários, pelo ambiente mágico do teatro e pelo figurino que Sylvio Vieira vestia, um Caboclo de verdade acabara de transformar em “cavalo” o grande barítono nacional! Com um olho na partitura e outro num Vieira em absoluto transe religioso, o maestro Torre não teve dúvidas e decidiu intervir naquela situação. Afinal, uma entidade sobrenatural, ainda que poderosa e respeitável não poderia estragar assim uma função tão importante. E tal qual um Pai de Santo improvisado começou a dar uns passes malucos, intercalados com apelos em que tentava usar o linguajar típico dos terreiros, só que no caso dele ornamentado por bom sotaque italiano.

“-Sai desse cavalo, mio Santo! Sai! Lascia o 'Sirvio', meu santinho! Agora não pode! Questo cavalo é cantô, Caboclo mio, e agora ele tem que cantá! Sai daí!”

O maestro Torre olhou a partitura e não havia mais tempo! Sylvio tinha que entrar em cena imediatamente para cantar o recitativo e ária “Sospetano di me...Sogni d’amore”. Jose Torre não esperou a resposta do Santo, ou caboclo ou quem fosse. Interrompeu os “passes” e apelos, e empurrou Sylvio Vieira com as duas mãos para o palco, com santo e tudo: “-Vai, Sylvio!!”

E o Vieira entrou em cena ainda em transe, deixando o maestro Torre de mãos postas na coxia rezando para seus santinhos queridos. Mas a força do palco e da música são maiores, e a presença do público é poderosa. Cambaleante, meio tonto, Sylvio fez sua entrada corretamente, a tempo, e com voz redonda, segura e bem colocada! E cantou como nunca naquela noite, sendo obrigado a bisar a ária! O público estava impressionado com a interpretação e com o realismo do jogo cênico de Sylvio Vieira. Da coxia, o maestro Torre agora ria satisfeito e aliviado, enquanto guardava carinhosamente na memória aquele mistério dos bastidores.

Ao sair de cena, Sylvio Vieira comentou o sucesso com os colegas que acompanharam aquele pequeno drama de perto e com o maestro que salvara o espetáculo com seus passes improvisados:

“-É que os Santos são meus amigos e me dão proteção, maestro.”

Deu um tapinha no ombro do maestro Jose Torre e seguiu em frente com a bem protegida carreira.  

4 comentários:

  1. Henrique, esta valeu a noite de sábado!
    Bravô para v. também,
    Christina

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    1. Tudo verdade, Cristina. Quem me contou foi uma testemunha ocular muitíssimo confiável -o meu pai. A fonte da história é ele.
      abração

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  2. Maravilha de texto. A história da ópera no Brasil sendo resgatada. Estou feliz por ter encontrado este blog. Sinceramente.
    Ricardo Marino.

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  3. Maravilha, tio. Coisas como essa nos mostram que a sensibilidade para a arte nos aproxima muito de outras conexões.

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