segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O reencontro do Rio de Janeiro com Mozart



As Bodas de Fígaro

Récita de 22 de novembro de 2015
Fígaro .......................... Felipe Oliveira
Susana .............................. Carla Cottini
Conde de Almaviva ...... Manuel Alvarez
Condessa ...................... Marina Considera
Cherubino ........................ Malena Dayen
Bartolo ............................. Savio Sperandio
Marcelina ....................... Beatriz Pampolha
Basilio ...............................Cleyton Pulzi
Antonio ........................... Frederico de Oliveira
Barbarina ...................... Luiza Lima
Don Curzio .................... Guilherme Moreira
Regente: Tobias Volkmann

por Henrique Marques Porto

Bastante feliz a ideia de montar As Bodas de Fígaro, de Mozart, para encerrar a temporada lírica de 2015 e anunciar a programação de 2016 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Mais feliz ainda foi a opção do TMRJ de convocar elenco nacional e jovens cantores para mostrar ao público carioca essa pérola de Mozart. Qualquer teatro de ópera sério necessita de elenco e repertório próprios para só então pensar em voos mais altos, como a contratação de estrelas internacionais. Temos bons cantores e eles foram chamados. É esse o caminho, sobretudo para vencer em parte o obstáculo da escassez de recursos financeiros. João Guilherme Ripper e André Cardoso acertaram em cheio. Mostraram que é possível produzir espetáculos de qualidade com poucos recursos. Conquistaram a confiança do público carioca. Mas, há muito ainda por fazer. Eles devem estar conscientes disso, e de que não podem decepcionar os cariocas.   

Le Nozze di Figaro é uma ópera que delicia o público -inclusive quem conhece pouco e está começando a se interessar por ópera- com uma sucessão de inspiradíssimas árias, duetos, tercetos, sextetos, ensembles. Até quem nunca ouviu As Bodas de Fígaro se surpreende ao reconhecer árias e temas musicais. "Questa poi la conosco purtroppo..." -deve ter pensado alguém na vesperal de domingo, repetindo a brincadeira feita pelo próprio Mozart, que incluiu uma citação das Bodas na cena final do Don Giovanni, sua composição seguinte.

As Bodas de Fígaro é uma comédia que Mozart controla de forma genial. Não deixa que a ópera descambe para a bufonaria e coloca freios em quaisquer intenções caricatas. Inclui passagens românticas, como em “Dove sono”, ária da Condessa, e até dramáticas como em Hai già vinta la causa, ária de Almaviva, cujo clima antecipa o Don Giovanni.  Graça, sim; comicidade exagerada, jamais.

Aqui, cabe um comentário. Montar Mozart não é da tradição do público, dos regentes e dos cantores brasileiros. Nossa formação musical, desde o século dezoito, recebeu forte influência da ópera italiana e gerou um gosto especial por esse repertório. Mozart, que também compunha “ópera italiana” sempre esteve pouco presente nas programações ao longo do tempo, desde a “Casa da Ópera”, do empresário Boaventura Dias Lopes, dos tempos d’antanho –existiram duas Casas da Ópera, a primeira delas chamada “Ópera Velha”, teatro construído pouco antes de 1748. Mozart aparece em 1821, no Teatro São João, com o Don Giovanni.  

Uma geração inteira de ótimos cantores brasileiros, formados a partir dos anos 1930, dedicaram-se pouco ou quase nada a Mozart. Um desperdício, se pensarmos em vozes como as de Violeta Coelho Netto de Freitas, Ida Micollis, Aracy Bellas Campos, Clara Marise ou Leda Coelho de Freitas, para ficarmos apenas em poucos exemplos de vozes femininas. No centro do nosso repertório tradicionalmente reinam Verdi, Puccini e Rossini. De modo algum é um “defeito”, como alguns críticos já chegaram a apontar. É expressão da nossa formação cultural, um processo dinâmico e sempre em evolução. Atualmente, o público sente a falta de compositores como Mozart, Wagner, Strauss e outros. O problema é que ficamos tanto tempo sem óperas que títulos tradicionais como Andrea Chénier, La Gioconda e até La Traviata serão certamente novidades absolutas para o público, principalmente para os jovens, que ontem alegravam a plateia e os balcões para receber Mozart.   

Os solistas de As Bodas de Fígaro são, em sua maioria, cantores jovens e que estão ainda no início de suas carreiras. A eles junta-se o maestro Tobias Volkmann, ainda em início na direção de óperas.

O espetáculo

Casa cheia na primeira vesperal da temporada de As Bodas de Fígaro, que ficará em cartaz até o dia 29 de novembro. Já na conhecida abertura da ópera podemos tomar o pulso do espetáculo, em peça de execução difícil, cujo primeiro desafio fica a cargo dos arcos, naquele esvoaçar de notas rápidas e sorridentes que anunciam a comédia. Na tarde de ontem, um primeiro destaque foi, sem dúvida, para a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, que se saiu magnificamente bem nas delicadezas e sutilidades da música de Mozart, com o mérito de manter a qualidade ao longo de toda a ópera. Uma prova de que a Orquestra da casa deve ser valorizada. Ela e o Coro são a alma do velho teatro. Seu lugar não é apenas no fosso, mas no palco. A propósito, é a Orquestra e o Coro do TM que abrirão a Temporada de 2016 com a Missa Solemnis, de Beethoven.  

Tobias Volkmann foi regente atento, de gestual vibrante, mas sem afetações ou exageros. Abrigou-se na segurança de uma leitura clássica da partitura, o que foi boa e prudente opção. A aparente simplicidade da música de Mozart pode ser perigosa para os regentes e intérpretes, principalmente para os que estão iniciando suas carreiras.

Entre os solistas, o público se encarregou de apontar os destaques da tarde/noite de ontem com a distribuição dos aplausos. Marina Considera, a Condessa, foi muito festejada. Bela voz, belo porte e ótima presença em cena. A ela se juntaram, no gosto do público, o ótimo Don Bartolo, de Savio Sperandio, a Susana, de Carla Cottini, o Almaviva, do mais experiente Manuel Alvarez, o Basilio, de Cleyton Pulzi, e o Cherubino, de Malena Dayen. O Fígaro de Felipe Oliveira também agradou, ainda que tenha demonstrado alguma timidez no início da ópera e revelado incômoda insegurança nos agudos, circunstância que não deve ter passado despercebida do público. Mas prevaleceu o conjunto, no qual ele se encaixou perfeitamente. Uma das graças de As Bodas de Fígaro é que não há um protagonista com maior destaque. O conjunto e o equilíbrio entre as vozes é o mais importante. Mozart parece indicar isso com precisão no final da ópera, com todos os personagens em ensemble substituindo o coro, numa das mais belas passagens de todo o repertório operístico. 

Atuações corretas e eficientes de Beatriz Pampolha, Frederico de Oliveira, Luiza Lima e Guilherme Moreira. 

Cenários simples, bonitos e muito bem concebidos e realizados por Nicolás Boni. A produção vem do Teatro São Pedro. A concepção tem o mérito adicional de acolher bem as vozes (algumas de pequeno volume), fechando as áreas de escape do som. O palco do Municipal do Rio continua sem ciclorama, inexplicavelmente retirado nos anos 1980. A nova direção do TM precisa fazer um esforço para recolocar o equipamento.

Direção cênica inteligente de Livia Sabag, com marcações descomplicadas e eficientes. Sabag entendeu muito bem as intenções de Mozart. E não é nada fácil dirigir a movimentação e o entra-e-sai constante de elenco numeroso.

Que essa Le nozze di Figaro traga bons presságios para a recuperação do Theatro Municipal e o futuro da ópera no Rio. Portanto, bem vindo Mozart! Que volte sempre.