terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A voz lírica de Oscar Peixoto

Oscar Peixoto. Novembro de 2011
A partir de meados dos anos 30 e ao longo das duas décadas seguintes o Brasil formou, no Rio e em São Paulo, uma geração de cantores que viabilizou a organização de temporadas líricas de qualidade com elencos inteiramente nacionais. Rio, São Paulo e outras praças passaram a contar com tenores, sopranos, barítonos e meio-sopranos que davam conta do repertório tradicional, sobretudo o italiano e o francês, abrangendo o romantismo oitocentesco, os veristas, alguns modernos e óperas compostas por compositores brasileiros. Os principais títulos de Verdi, Puccini, Massenet, Gounod, Bizet, Rossini, Donizetti, Giordano, Mascagni, Leoncavallo e outros eram montados todos os anos nos teatros municipais do Rio e de São Paulo. Decretos das prefeituras das duas cidades –há muito tempo revogados- obrigavam os teatros a organizar temporadas líricas com elencos nacionais, sem prejuízo das temporadas internacionais, que ficavam a cargo dos empresários. Nesse período, nossas casas de ópera estavam integradas ao circuito lírico internacional. O público já se acostumara a receber anualmente as grandes estrelas da ópera mundial e os cantores brasileiros em formação se beneficiavam com essas presenças.

Os espetáculos com elencos nacionais tinham nível, e os cantores que se destacavam eram geralmente convidados para atuar ao lado das estrelas internacionais em espetáculos de altíssimo grau de exigência artística e técnica.
Entre os tenores cariocas os que mais se destacaram nos anos 50 foram Assis Pacheco, Alfredo Colósimo, Zacaria Marques e Roberto Miranda –nessa ordem. Havia ainda Constant Moret, um tenor de voz lírica, artista sério e esforçado, mas de escassos recursos vocais. Fez carreira irregular e limitada.
Os quatro primeiros tinham qualidades, vocações e temperamentos diferentes. Assis Pacheco era vocal e tecnicamente o mais bem preparado. Artista sensível e inteligente, sabia “inventar” para sua voz qualidades que a natureza não lhe dera. A voz circulava com facilidade por todos os matizes entre o lírico e o dramático. Cantava o Rodolfo, de La Bohéme, num dia e no outro o Cavaradossi, da Tosca. Na semana seguinte enfrentava o Radamés, da Aida, ou o dificílimo Otello, de Verdi.  Idem com os demais, mudando apenas o repertório e a ousadia das escolhas –uma virtude que só Assis Pacheco possuía. Além de Pacheco, apenas Zacaria Marques se aventurava no Otello, por exemplo. Pacheco cantou até depois dos setenta anos. E cantou bem, em versões do Wherther, de Massenet, e do Otello, sempre muito elogiado pela crítica.

Roberto Miranda foi um tenor lírico que fez curta carreira. Já no início dos anos 60 pouco atuava. Tinha um grave problema de dicção que afetava seu rendimento. Falava e cantava com acentuações linguo-lábio-dentais –assim como fala o ex-jogador Romário. Cansava os ouvidos do público. Seu maior mérito estava na facilidade de emissão dos agudos. Mas uma ópera não é feita só de agudos.
Com Zacaria Marques acontecia algo semelhante. Tinha todos os agudos e não os temia. Ao contrário, gostava deles. O agudo, o dó de gavetão, de peito, era o seu momento. Contudo, uma característica aproximava Zacaria e Miranda: a natureza não lhes deu beleza de timbre. Miranda tinha mais formação técnica, Zacaria era um cantor intuitivo, impulsivo, que confiava nos pulmões e na potência de sua voz. 
Alfredo Colósimo era um tenor lírico com temperamento dramático. Era eficiente no repertório verista e nos papéis mais leves, como o Pinkerton, da Butterfly. Mas sempre cantava com muita felicidade o desesperado Cânio, do I Pagliacci.  No início da carreira fez, com sucesso, incursões ao repertório dramático, na pele de tenor heróico, cantando títulos como o Trovador e a Força do Destino.  Mas ficou no meio desse caminho. Fez longa carreira e depois dedicou-se ao ensino de canto. Com mais de oitenta anos ainda cantava, mas apenas para os alunos, amigos e em recitais amadores.
No início dos anos sessenta surgiu no Rio um tenor lírico-ligeiro de qualidade, João Alberto Person. Em 1964 fez muito sucesso numa Traviatta com elenco internacional, ao lado de Gianna D’Angelo e Piero Cappuccilli. Se quisesse poderia até ter tentado carreira internacional. Era jovem e sua voz tendia, com o amadurecimento, a se fixar no repertório de tenor lírico, abandonando o ligeiro. Mas se desencantou com os bastidores intriguentos da ópera, se retirou dos palcos e foi tratar da vida.

Como se pode ver, a cultura do canto lírico brasileiro, nos seus melhores momentos, não chegou a produzir um legítimo tenor dramático e tampouco um legítimo tenor lírico. Assis Pacheco, Colósimo e Zacaria, com limitações, qualidades e recursos diferentes, cobriram essas lacunas.

Hoje conheci uma voz que poderia ter sido esse tenor lírico legítimo que nunca tivemos nos elencos cariocas. Ouvi-a num trecho da Martha, de Flotow. Voz generosa, de timbre claro, bonito e agradável, boa dicção e fraseados bem construídos, evidenciando a musicalidade. Voz formada nos fundamentos da velha e segura escola clássica de canto italiano.
Com esta voz não precisaríamos importar Nemorinos para o Elixir do Amor e poderíamos ter tido com maior frequência um Des Grieux, da Manon, ou um Nicias, da Thaïs. Jules Massenet agradeceria. Donizetti também.

Ouvindo-o foi possível especular sobre algumas de suas influências ou referências artísticas. Cito intuitivamente Beniaminio Gigli e seu sucedâneo artístico, Ferruccio Tagliavini, além de Tito Schipa. Este pela busca da naturalidade da linha de canto; aqueles pelo estilo de fraseado e a emotividade do cantar. 
Contudo, nem sempre os caminhos da vida são transversais da grande avenida da música e conduzem direto até onde está o canto. As trilhas e rotas que levam ao palco são incertas, mal sinalizadas e confusas. E a vida -ah, a vida- com seus múltiplos atalhos e becos, se encarrega de encaminhar a outro destino muitos dos que nasceram com voz para cantar, como fazem os pássaros, e não apenas para falar, como fazem os humanos que nasceram sem o dom especial e raro do canto. 
Foi por isso, só por isso que Oscar Peixoto não foi ser cantor de ópera na vida. E foi também por isso que o Rio ficou sem o seu legítimo tenor lírico.
Azar do público que não o ouviu! Sorte minha que o conheço!

(escrito em 03 de junho de 2010) 
Oscar, um amigo querido do blog, faleceu hoje de madrugada nas vésperas de completar 78 anos. Homem gentil e amável como poucos homens são. Inteligente e sensível, passou pela vida colhendo o que de melhor há nela: a beleza e o amor. Deixa-nos o que colheu, além de muita saudade. 
Henrique Marques Porto

Oscar Peixoto- M'appari- Martha, de Flotow




Oscar Peixoto - "Lamento di Federico" - "L'Arlesiana", de Cilea