sexta-feira, 30 de março de 2012

Malvina Pereira: a soprano que o Brasil esqueceu





 

por Henrique Marques Porto

Não foi fácil encontrar uma imagem de Malvina Pereira no palheiro de fotos que é a grande rede. Mas aí está ela, de quem não se pode mais dizer que é uma cantora "sem corpo", ou sem rosto. A foto é precária, produto das técnicas de clicheria dos antigos jornais, mas é um documento importante e raro, que os brasileiros estão conhecendo somente agora. 
Encontrei-a não aqui no Brasil, que ainda não aprendeu a preservar a própria memória cultural, ou na Argentina, onde Malvina fez sua estréia em 1901. Tampouco encontrei-a na Itália, onde desenvolveu sua carreira e gravou uma das primeiras versões completas de "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini. 
Fui encontrá-la em San Francisco, California, que conservou registros de sua bem sucedida passagem por lá em setembro de 1912. E foi graças ao magnífico Center for Bibliographical Studies and Research (CBSR) da University of California, Riverside, que colocou à disposição do público o projeto California Digital Newspaper Collection.

Malvina Pereira: sucesso em San Francisco, California, em setembro/outubro de 1912
O  CBSR digitalizou periódicos que circularam na California desde 1846. Foi no San Francisco Call (jornal que circulou em San Francisco entre 1890 e 1913), que encontrei matérias com fotos e comentários críticos sobre as atuações de Malvina Pereira. O trabalho de digitalização do acervo está tão bem feito que é possível fazer buscas por nomes citados no conteúdo das matérias de vinte e oito impressos de diversas épocas. E nesse mar de milhares de páginas é possível localizar um simples nome.  

Malvina Pereira é sem dúvida uma precursora. Um nome que precisa ser conhecido e mais estudado. Ela estreou um ano antes de Bidu Sayão nascer! E já fazia sucesso na Itália quando nossa soprano de maior prestígio internacional no século passado ainda brincava com suas bonecas. E a voz de Malvina não fica devendo nada à da prestigiada Bidu.

Os registros sobre sua carreira cessam em 1920. Maior mistério é a sua vida. Sabe-se apenas que nasceu em Florianópolis em 1883 e que foi casada com Ettore Cauli, jornalista italiano que teve atuação na imprensa de São Paulo. Já escrevi para a Secretaria de Cultura de Santa Catarina em busca de outras informações sobre essa ilustre desconhecida da terra, mas ainda não obtive resposta.
O recorte acima, extraído da edição de 05 de outubro de 1912 do San Francisco Call, dá idéia do seu sucesso nos EUA há 100 anos, em matéria assinada pelo crítico Walter Anthony.
Henrique Marques Porto

Malvina Pereira - "Una voce poco fa" - Il Barbiere di Siviglia - Rossini 

domingo, 25 de março de 2012


A verdadeira Diva da ópera
Magda Olivero 102 anos!
 
Magda Olivero aos 100 anos em seu apartamento em Milão
Maria Maddalena Olivero faz 102 anos hoje. Nasceu em Saluzzo, em 25 de março de 1910. Magda Olivero é uma voz e uma personalidade únicas na história do canto. Não há paralelo possível entre a Olivero e as cantoras atuais, ou mesmo entre as cantoras de sua geração.  É um ícone verdadeiro do canto lírico, reforçado pela longevidade que ela alcança serena, lúcida, com saúde e sobretudo ainda produtiva.

Sua longa carreira a transformou em ponto de encontro a unir mais de uma geração de grandes cantores. Cantou com astros da primeira metade do século passado, como Tito Schippa, Beniaminio Gigli e Giacomo Lauri-Volpi; com Mario Del Monaco, Franco Corelli, Giuseppe Di Stefano e Carlo Bergonzi, da geração seguinte; e alcançou Placido Domingo e Luciano Pavarotti. Magda Olivero é a história viva de quase um século de ópera!

Em seus 50 anos de carreira Magda levantou platéias no mundo inteiro. Não apenas nos grandes teatros, mas também nas periferias do mundo e nos teatros de província. As artistas "famosas" cantavam apenas no grande circuito e gravavam muito. La Olivero cantava nos grandes centros, mas também nos distantes lugares onde as cantoras de grande fama foram poucas vezes ou nunca puseram os pés, apesar da multidão de admiradores que tinham e das paixões que arrebatavam. Poucos são os que viram ao vivo Maria Callas ou Renata Tebaldi –mais conhecidas pelas gravações e uns poucos vídeos. No entanto, são muitos os que, em dezenas de países de todos os continentes, tiveram contato direto com a arte de Magda Olivero e puderam aplaudi-la desde sua estréia em 1932. Talvez por isso ela tenha se transformado numa unanimidade entre os amantes de ópera.

Tosca. Rio de Janeiro, julho de 1964
Esteve no Rio de Janeiro em 1964 e foi a grande estrela da última grande temporada lírica internacional que a cidade conheceu. Cantou o Mefistofele, com Cesare Siepi e Flaviano Labò; a Tosca, com Flaviano Labò e GianGiacomo Guelfi; a Fanciulla Del West, com João Gibin e GianGiacomo Guelfi (segunda récita com Paulo Fortes); e a Adriana Lecouvreur, com Angelo Lo Forese e Piero Cappuccilli (depois Paulo Fortes). Deixou-nos um presente: doou ao Museu dos Teatros do Rio de Janeiro, que na época estava instalado no Salão Assírio do Theatro Municipal, o vestido que usou em Adriana Lecouvreur, reconhecidamente seu maior papel. Com certeza os atuais responsáveis pelo Theatro desconhecem o fato, apesar de estarem obrigados a zelar pelo patrimônio e conhecer alguma coisa sobre a história da instituição que dirigem. Mas é exigir muito de quem sequer anunciou um único espetáculo de ópera para 2012.


Magda é chamada por muitos de “A última diva do verismo”. Talvez seja mais do que isso. Talvez seja a diva verdadeira, a diva real, aquela que foi possível ver de perto, de quem se pode conseguir a atenção de uma palavra e um autógrafo. Magda não é um mito. É um ícone. Artista sensível e refinada, ela sempre soube cultivar igualmente a humildade e a simplicidade. É assim até hoje, do alto dos seus magníficos 102 anos.

Mas, no palco, vivendo Floria Tosca ou Adriana, era uma explosão, às vezes incontrolável, de sentimentos! Deixava de ser ela mesma para dar vida à ficção. Poucas cantoras foram tão atentas ao texto como Magda. Charles Gounod dizia que “um grande cantor deve ser, antes de mais nada, um grande orador”.  E explicava: “no fundo só há uma arte, a PALAVRA, e uma só função, EXPRESSAR”. Magda Olivero está entre as poucas cantoras que sabiam realizar o que Gounod pedia dos intérpretes. Grande dama do verismo, que Gounod não chegou a conhecer, Magda é a grande mestra do “recitar cantando”.

Atribui-se a Joan Sutherland uma frase que ficou famosa. Por ocasião da estréia de Magda no Metropolitan, aos 65 anos em 1975, cantando a Tosca, uma celebrada cantora teria comentado com Sutherland:
  
“-Ela canta bem, mas ‘divas’ somos nós, não é mesmo?”
Sutherland retrucou:   
"-Não, minha cara. Nós somos apenas famosas. A verdadeira Diva da ópera é Magda Olivero." 

Henrique Marques Porto


Mefistofele - ato III

Magda Olivero - Flaviano Labò - Cesare Siepi

Rio de Janeiro 1964


sexta-feira, 23 de março de 2012


Der Rosenkavalier: 

o amor numa visão feminista
"O Cavaleiro da Rosa". Cartaz da produção de 2005 da Opera de Los Angeles
por Comba Marques Porto

O Cavaleiro da Rosa (Der Rosenkavalier) será apresentada no teatro Ópera de Viena no próximo dia 15 de abril. Eis uma ópera inteligente, ousada e bela. Isto diz pouco já que falo de Richard Strauss (1864-1949). Seria esta ópera um anômalo manifesto feminista escrito por um maestro alemão que viria a ser acusado de ter parte com os nazistas? Pode ser que sim, pois a arte dos começos do século XX não mais comportava coerências. A estréia de Der Rosenkavalier deu-se em Dresden, em 1911. Em 1915, a ópera foi apresentada pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com libreto traduzido para o italiano. Consta que, na Europa, foi bem recebida pelo público, porém rechaçada pela crítica especializada, tida como uma ópera chata, obscena e frívola. Strauss foi também acusado de anacronismo, por ter utilizado a valsa em sua partitura, cujo libreto indica ação passada na Viena do século XVIII, sendo que o ritmo somente viria aparecer em meados do século XIX. Em Der Rosenkavalier, a valsa pontua a escrita orquestral e o efeito é ótimo, no sentido de pôr a bailar toda a sensualidade que transborda desta comédia para música, tal como identificada pelo compositor. Se em Salomé(1905) e em Electra(1909), Richard Strauss enfoca a mulher pelos extremos da loucura, da vingança e da crueldade, em Der Rosenkavalier ele reflete sobre a condição feminina no contexto dos costumes vienenses do século XVIII.

 Marie Thérèse (soprano) é a princesa Werdemberg, casada com um Feldmarschall, título de nobreza conferido à época. Daí, provavelmente, o nome de Marechala igualmente dado à Marie Thérèse, cujo marido é só uma referência no libreto.

Sophie (soprano) é uma jovem de 15 anos, filha do plebeu rico Herr Von Faninal (barítono), com a qual o Barão Ochs (baixo), primo da Marechala, pretende se casar para ampliar seu patrimônio. 

Octavian (mezzo-soprano) é apresentado na cena de abertura da ópera sobre a cama da Marechala, na manhã seguinte a uma noite de amor. Na trama, a Marechala indica seu jovem amado, Octavian, para oferecer a rosa de prata em nome do Barão Ochs, um “costume local” inventado pelo compositor, pois não há registro de que este ritual ocorresse na Viena retratada na ópera.

O personagem Octavian não é bem um pajem como outros do repertório operístico escritos para a voz feminina - Oscar, do Ballo in Maschera (Verdi), Cherubino, das Bodas de Fígaro (Mozart) - inexperientes meninos nas artes do amor. Octavian, ao contrário, já se apresenta iniciado nos avançados e mais completos prazeres do amor. Richard Strauss e o poeta Hugo Hofmannsthall, autor do libreto, jamais revelaram a razão pela qual a parte do Octavian foi escrita para voz feminina. Mas O personagem Octavian tem em seu nome Jacinto (cena com Sophie no 2º ato, após a entrega da rosa). Na mitologia grega, Jacinto é um jovem a quem Apolo amava apaixonadamente. Num jogo de remessa de discos, Apolo fere mortalmente Jacinto e a cabeça dele pende para a terra como um lírio. Apolo diz que quer morrer com Jacinto, mas devido à sua imortalidade, passa a cantá-lo à sua lira: “tu te transformarás numa flor gravada com a minha saudade”. Diz o mito que onde vertido o sangue escorrido da cabeça de Jacinto nasceu um lírio da cor roxa, aquela que traz em si a dor impressa. A referência ao mito no libreto pode ser uma pista para entender a voz feminina de Octavian. Apolo e Jacinto, criaturas do mesmo sexo, deparam-se com a intervenção do destino que, pela morte, os separa. Algo semelhante acontece com Marie Thérèse e Octavian,  em suas vozes do mesmo sexo. Só que, neste caso, a separação se impõe pela paixão de Octavian por Sophie. O fato é antecipado no monólogo da Marechala no 1º ato que tem por tema reflexões dela sobre seu envelhecimento e sobre a possibilidade de que o amante, bem mais jovem, possa se apaixonar por outra mulher.

O contraste entre os personagens Barão Ochs e Octavian diz muito quanto ao olhar feminista da obra.

Sophie é a jovem filha do emergente Herr Von Faninal, rico e doente. No 1º ato, o Barão Ochs vai ao quarto da Marechala falar sobre sua pretensão de casamento com a moça e fica explícito que se trata de um casamento de interesse. O Barão pede à Marechala que indique um cavaleiro para cumprir o ritual da rosa de prata a ser ofertada à Sophie.  Marechala escolhe Octavian, pressentindo que está prestes a perdê-lo para um novo amor.

Elina Garanca: Octavian  


A cena da chegada de Octavian ao palácio de von Faninal (2º ato) representa os requintes do cavalheirismo. Sophie fica encantada pela figura do portador da rosa e diz jamais ter visto algo tão lindo em sua vida. O amor à primeira vista transborda no dueto das sopranos pontuado por intervenções dos sopros, da harpa, violinos e cellos, em clima de expectativa e intensa magia. Esta cena bem pode representar o conflito entre fantasia e realidade que acontece no coração das mulheres. O encantamento de Sophie pelo ritual da rosa não corresponde à realidade do casamento anunciado. A começar pelo noivo, figura que domina a arte do galanteio -  afinal, é um nobre - mas não se preocupa em exercê-la, na medida em que vê o casamento como um ato de negócio. Deslumbrada com Octavian, Sophie, de pronto, diz ao pai que não quer se casar com o velho Barão Ochs. Mesmo sob ameaça de ser mandada para o convento, ela não volta atrás em sua decisão.




A firmeza de Sophie é outro aspecto a ser comentado com relação à temática feminina tal como tratada nesta ópera. Tanto a Marechala quanto a Sophie são mulheres fortes e, note-se, jamais são apresentadas como rivais. Nada que nos lembre Aida X Amneris - que Verdi me perdoe a comparação.   

               Que a Marechala é uma mulher especial não resta dúvida. Compreende a vida e sabe dos percalços do amor. Sempre esteve consciente quanto à possibilidade de “perder” Octavian para uma jovem pronta a casar e quando isto acontece, simplesmente respeita, dizendo algo assim: “eu escolho amá-lo do modo correto e por isto posso amar o amor dele por outra”. Com muita classe, Marie Thérèse revela-se uma mulher perspicaz, capaz de refletir sobre os problemas da condição humana, como o da passagem do tempo. Kobbé, em seu Livro Completo da Ópera (Ed. Zahar, 1994) observa que Der Rosenkavalierpode ser comparada a uma imensa valsa de concerto. Mas não devemos esquecer a extraordinária figura humana que é o personagem da Marechala.”

               O trio final das três sopranos é um dos trechos mais lindos da criação de Strauss. As vozes são círculos prateados que se entrelaçam, como entrelaçados ali estão os destinos da Marechala, de Octavian e de Sophie. Tão bonita quanto a música é a forma civilizada, sofisticada, como as personagens se movimentam na situação. O trio soa-me como uma valsa moderna, envolvente, luxuriante. Música que lembra o rodopiar das relações amorosas, o quanto podem nos escapar pelos dedos. O trio é a celebração da espontaneidade do amor, em contraposição à sua apropriação pelas convenções sociais. Uma visão feminista, pois não?  
                
Der Rosenkavalier - Trio Final
Elisabeth Schwarzkopf, Sena Jurinac, Anneliese Rothenberger


quinta-feira, 15 de março de 2012

A ascenção do tenor João Gibin e os bastidores de um concurso de canto


“A notícia da inclusão no elenco artístico da temporada lírica oficial do tenor paulista João Gibin nos faz recordar uma longínqua noite de 1951, quando no Teatro Municipal do Rio, depois de várias apresentações de jovens cantores concorrentes ao prêmio “Grande Caruso”, sagrou-se vencedor João Gibin, desconhecido barítono de São Paulo.

João Gibin
Não foi uma vitória unânime a de Gibin -dois votos favoráveis e um contra-, nem uma vitória fácil, pois vários fatores perturbaram aquele rumoroso concurso.
Deve-se notar que se apresentaram para o certame canoro quase todos os melhores valores da América Latina e que a seleção foi demorada, trabalhosa e frequentemente agitada. O grupo de finalistas era formado por ótimos concorrentes. A escolha, portanto, não era fácil, visto que em cada um era obrigatório reconhecer qualidades dignas de serem tomadas em consideração. O Juri era composto pelos maestros Eleazar de Carvalho, Salvatore Ruberti e o americano Hugo Ross.

A finalíssima se realizou perante um público compacto que apinhava toda a sala do Teatro Municipal, e que acompanhava com grande interesse o desenvolvimento do concurso.


Súbito se teve a sensação de que um único duelo artístico teria que ser resolvido pelo Juri, e os participantes eram: um barítono mexicano e o brasileiro João Gibin. Evidentemente os torcedores de Gibin eram em maior número. Em compensação aqueles do barítono mexicano eram mais aguerridos e tinham preparado com rara habilidade as forças que poderiam levar o seu preferido à vitória. 

A comissão julgadora se encontrava em sérias dificuldades, e havia um detalhe perigoso: como decidir, se, aparentemente, o mexicano e o brasileiro se equivaliam? Disse aparentemente. Enquanto o mexicano havia suscitado unanimidade de consensos, cantando a entrada de Figaro, do Barbiere di Seviglia, de Rossini, Gibin tinha se afirmado com a ária verdiana do Ballo in Maschera”, “Eri tu...”.

Eis o que conseguimos saber sobre a reunião final dos membros do júri naquela noite memorável e que iria dar as palmas da vitória a um barítono para consagrá-lo mais tarde como tenor de fama internacional, depois de uma via crucis tremenda.

Hugo Ross, ex-abrupto, se declarou favorável ao barítono mexicano; o maestro Salvatore Ruberti, ao contrário, ponderou que, em vista da perfeita execução do trecho cantado por Gibin, não se devia por em dúvida que este jovem paulista possuía qualidades vocais muito superiores do que as do seu adversário e que os outros componentes do júri verificariam isto se observassem os detalhes da execução e examinassem minuciosamente os “pro” e os “contra” dos dois concorrentes.

Foi naquela divergência de opiniões que o maestro Ruberti fez notar aos seus colegas que, em sua opinião, a voz de Gibin não era perfeitamente uma voz de barítono e que dela podia, em um futuro próximo, se bem dirigida, surgir talvez em sua plenitude um tenor de grande eficiência sonora.

Maestro Salvatore Ruberti em 1964

Mas –disse um dos membros da comissão julgadora- devemos então aprovar um barítono na expectativa incerta de um futuro tenor, quando temos já um barítono com todas as qualidades deste registro vocal?”
A resposta do maestro Ruberti foi cortante.

“A um barítono que cantou a cavatina de Figaro com voz ondulante, ritmo idem e com agudos poucos convincentes prefiro sempre um cantor que sabe “frasear”, que possui voz plena e registro agudo seguríssimo. Enviemos Gibin à Escola do Scalla, deixemo-lo estudar seriamente e tentemos obter um tenor. A minha é uma esperança em marcha, a vossa um curvar-se sobre a mediocridade que seguramente terá as asas cortadas ao nascer.”



Foi então que o ilustre maestro Ross reafirmou a sua confiança e, portanto, manteve o seu voto a favor do mexicano. Eleazar de Carvalho tentou mediar o dissídio, mas encontrou tenaz resistência nos dois antagonistas. E diante da vontade firme do maestro Ruberti em desejar fazer imediatamente, na sala do Teatro Municipal, uma declaração pública das razões técnicas e artísticas que o haviam induzido a dar o seu voto a Gibin, decidiu, como Presidente do Juri, acompanhar o maestro Ruberti, consagrando vencedor o cantor brasileiro.

O maestro Hugo Ross, irritadíssimo, abriu a porta e retirou-se, sem dizer uma palavra. Reapareceu depois, ainda amuado, no camarote, de onde o maestro Eleazar de Carvalho anunciou ao público a decisão do Juri.

E foi assim que João Gibin iniciou o seu caminho para a glória. Como dissemos, não foi fácil a sua jornada artística. Por um longo tempo ele teve que cantar como barítono na Escola de canto do Scalla. Só depois é que tomou o rumo certo, o único caminho que devia conduzí-lo ao triunfo, mantendo-se tranquilo, seguro, confiante no registro de tenor, e de tenor dramático! O que lhe permitiu debutar na Ópera do Estado de Viena, em 1958, escolhido por Karajan para desempenhar o dificílimo papel do Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. Em 1959 cantou a Turandot, no Scalla, com Birgit Nilsson. Em seguida foi uma ascenção contínua e gloriosa. O Covent Garden, de Londres, convidou-o para cantar com a Sutherland a Lucia; no Maggio Musicale Fiorentino apareceu em Luisa Muller, e nos maiores teatros líricos do mundo interpretou sempre magistralmente, na opinião unânime do público e da crítica, Boris Godunov, Eugen Onegin, Kovantchina, Katarina Ismailova (de Shostakovich), Aida, Forza Del Destino, Don Carlo, Simon Bocannegra, Bataglia di Legnano, Fanciulla Del West (que gravou com a Nilsson e a orquestra e o coro do Teatro Scalla), Bohème, Tosca, Il tabarro, Carmem, Doctor Faust (de Busoni), Norma, Andrea Chènier (que cantou com a Tebaldi e Ettore Bastianini) etc.

Sempre sonhara cantar Il Guarany, de Carlos Gomes. Este ano seu sonho se realizará de forma esplêndida, pois cantará essa ópera em sua terra sob a direção do famoso maestro Francesco Molinari-Pradelli e tendo a companhia de um elenco incomparável: Gianna D’Angelo como Cecy; Piero Cappuccilli, como o Gonzalez, e Nicola Zaccaria como Don Antônio. Uma constelação de artistas do Scalla de Milão que terá a sustentação do corpo coral do Teatro Municipal, dirigido por Norberto Molla, também do Scalla, e da orquestra da casa, saída de uma série de concertos sinfônicos triunfais, além de dois magos do espetáculo: os cenógrafos Attilio Colonello e Carlo Maestrini. Outro elemento de grande eficiência será a participação do Corpo de Baile do Municipal, sob a direção de Vaclav Weltchec.

João Gibin será acolhido em sua terra como um triunfador entre os triunfadores do mundo lírico atual. O principal responsável por sua vinda ao Rio de Janeiro não é outro senão o visionário maestro Salvatore Ruberti, atual diretor artístico do Teatro Municipal, o mesmo que em 1951 percebeu um grande tenor na voz de um desconhecido paulistano que cantava como barítono.”



Henrique Marques Porto
Junho/1964  
Obs: 
O texto acima foi lido em fins de junho de 1964 no programa "Música, sempre música", na antiga Rádio Mundial, do Rio de Janeiro. Ia ao ar semanalmente às terças-feiras, com trechos de óperas e concertos. O programa era produzido e apresentado pelo crítico Henrique Marques Porto (1898-1969).

João Gibin - La Fanciulla del West