sábado, 26 de maio de 2012

Hedy Iracema-Brügelmann




De Porto Alegre para a Ópera de Viena 

(atualizado)

Hedy Iracema-Brügelmann
Foto gentilmente enviada por Regine Brügelmann, bisneta de Hedy.

 por 
Henrique Marques Porto 
e Helô Lima

"Quem procura, acha”, diz o adágio popular. Mas, nem sempre o que se acha é o que se está procurando. E não raro o achado inesperado tem relevância. Foi assim que o Ópera Sempre descobriu a até aqui desconhecida, ou esquecida, cantora brasileira Hedy Iracema-Brügelmann (1879-1941). Ela se soma a uma provavelmente extensa galeria de artistas que aos poucos vão sendo reapresentados ao público, como já se fez aqui mesmo com Malvina Pereira, nascida na cidade de Florianópolis-SC, e que desenvolveu consistente carreira na Itália e nos EUA. Aqui

Hedy Iracema-Brügelmann nasceu em Porto Alegre em 16 de agosto de 1879 (algumas fontes indicam 1881). Filha de Emesta e Friedrich Hänsel, imigrantes alemães, recebeu no batismo o nome Hedwig Hänsel. Ainda adolescente perdeu o pai (no Brasil, chamado Frederico), em 1894, vítima de crime político. Hänsel, que era militar, veio para a América do Sul para se incorparar aos batalhões de "Voluntários da Pátria" formados por colonos alemães que foram à guerra Brasil-Paraguai. Com o fim da guerra, decidiu se estabelecer no Rio Grande do Sul. Foi um importante líder da colônia alemã e teve ativa participação na "Revolução Federalista", sangrenta guerra local ocorrida entre 1893 a 1895. Teria sido preso por tropas federais e, quando estava sendo conduzido à prisão, foi assassinado com um tiro nas costas. Outras fontes dizem que ele foi alvejado  em 1889 no jardim de sua casa, na antiga Rua da Figueira, Cidade Baixa, atual Rua Coronel Genuíno.

Hedwig Hänsel casou ainda bem jovem com o comerciante e diretor de banco Theodor Brügelmann. O casal teve um filho, Hermann Brügelmann, nascido também em Porto Alegre, em 1899. Hermann, falecido em 1972, fez destacada carreira política na Alemanha do pós-segunda guerra.

Amalia Iracema Ferrari, irmã de Hedy
Hedy Iracema estudou canto no Conservatório de Colonia, e por sugestão do compositor e maestro Max von Schillings dedicou-se à carreira na ópera, depois de atuar como concertista. Na família havia o precedente de sua irmã mais velha, Amalia Hänsel, também cantora lírica. Estudou canto em Frankfurt e fez curta carreira no Brasil e na europa. Há registros de apresentações suas no Rio de Janeiro. Seu nome artístico era Amalia Iracema Ferrari. O "Iracema" teria sido sugerido por um amigo, Ramiro Barcelos. Casou com o fotógrafo Jacintho Ferrari, do "Atelier Ferrari", cujo trabalho é considerado bastante significativo para a memória iconográfica de Porto Alegre. De tanto fazer cópias de fotos de Amalia, quando esta voltava de suas viagens à europa, Jacintho acabou se apaixonando. Amalia Iracema encerrou a carreira em Porto Alegre, onde se dedicou ao ensino de canto. Faleceu em 1936. No bairro Rubem Berta há uma rua com seu nome.


A adição do nome Iracema para compôr o nome artístico de Hedy teria sido, segundo algumas fontes, por ser este um anagrama da palavra “america”. Mas tendo nascido no Brasil, é possível que seja uma referência ao conhecido romance "Iracema", de José de Alencar, e ao país onde nasceu. Aparentemente, Hedy Iracema-Brügelmann, assim como fez sua irmã, queria indicar no nome artístico o seu país de origem, ainda que ele pudesse soar estranho na europa das primeiras décadas do século passado. O mesmo se pode dizer da alteração do original Hedwig para “Hedy”, este também um nome bastante comum no Brasil. 

Depois de estudar na Alemanha, Hedy voltou ao Brasil por volta de 1904 e aqui permaneceu por alguns meses. Com certeza se apresentou em recitais e reuniões musicais no Rio de Janeiro e em outras cidades. Em 1904, o compositor brasileiro Alberto Nepomuceno já reconhecia o seu talento, dedicando a ela a canção "Ao Amanhecer" (Op. 5 n.1): "À exímia cantora, D. Hedy Iracema. Petrópolis" –escreveu Nepomuceno no alto da partitura. Voltou ao Rio em outras oportunidades, como em 1907, quando se apresentou em recitais juntamente com a irmã, Amalia, acompanhadas ao piano por Alberto Nepomuceno e Barroso Neto, em programas que incluíam canções e árias de diversas óperas.

A estréia em ópera se deu em Stuttgart, em 1910, como Elisabeth, no Tannhäuser, de Wagner. Em 1913, apresentou-se no Royal Opera House, como a Marshallin, no Der Rosenkavalier, de Richard Strauss, papel que também cantou na Ópera de Zurique em 1917. Em 26 de setembro de 1915 cantou o papel título na estréia mundial da ópera Mona Lisa, de Max von Schillings, que também protagnizou em Amsterdan, em 1916.

Sieglinde, em Die Walküre
 Entre 1917 e 1920 foi contratada da Wiener Staatsoper, onde já havia cantado em 1916. Até 1920 cantou, na Staatsoper, entre outras, as seguintes óperas: Aida, O Baile de Máscaras, Carmem, Lohengrin, Parsifal, Der fliegende Holländer, Gli Ugonotti, Martha, Ariadne auf Naxos, Der Rosenkavalier e Elektra.  Atuou também na Ópera de Berlin e em concertos com a Filarmônica de Berlin. De 1920 a 1926 trabalhou no Badisches Staatstheater, em Karlsruhe. Em 1926 sofreu grave acidente, ao cair de uma escada numa apresentação, quebrando uma perna e parte do quadril. Ficou hospitalizada por quase um ano. Tentou voltar aos palcos, mas sentia muitas dores e tinha dificuldades de locomoção. Encerrou a carreira como cantora em 1927, passando a dedicar-se ao ensino de canto em Karlsruhe, onde faleceu em 1941.


Embora o nome de Hedy Iracema não apareça nas pesquisas feitas em sites, blogs e listas dedicados a antigos e esquecidos cantores líricos, é certo que foi uma artista importante e respeitada em seu tempo. Apesar de ter tido uma carreira relativamente curta e de ser praticamente desconhecida no Brasil, seu nome é mencionado em diversas fontes importantes, sendo objeto inclusive de verbete na Enciclopédia Britânica. Atuando na Europa na época da Primeira Guerra Mundial, deve ter tido algum tipo de participação em ações humanitárias. Em 1916 foi condecorada com a Charlottenkreuz (Cruz de Charlotte), instituída naquele mesmo ano por Wilhelm II, último rei de Württemberg (abdicou em 1918), “concedido a todas as pessoas com méritos especiais no cuidado dos feridos e enfermos ou em matéria de interesse geral da guerra” (Wikipedia). De Wilhelm II se diz que era homem de hábitos simples e burgueses, fora dos padrões da realeza europeia. Criou a condecoração e deu-lhe o nome de sua segunda esposa, Charlotte Schaumburg-Lippe.

Elenco da Temporada Lírica do Rio de Janeiro em 1920

Hedy Iracema-Brügelmann esteve no Brasil para as temporadas líricas internacionais de 1914 e 1920 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 1914 cantou Aida e Tosca (esta com Tito Schipa e Mario Sammarco). Em 1920 foi incluída no elenco de cantores nacionais, embora tenha estudado e desenvolvido a carreira na Alemanha. De fato, apresentou-se em repertório brasileiro. No dia 27 de setembro de 1920, em récita de gala, com as presenças do Presidente da República e do Rei da Bélgica, cantou o Salvador Rosa, de Carlos Gomes, com o tenor Francesco Merli e o barítono Carlo Galeffi, sob a regência de Tulio Serafin.

Em 1913, protagonizou a Tosca, em Stuttgart, ao lado de Enrico Caruso, que a ela dedicou uma foto, onde se lê: "Alla signora Hedy Iracema-Brügelmann, souvenir sincere. Enrico Caruso, Stuttgart 1913."   

Soprano lírico-dramático, além de Carlos Gomes, Wagner e Strauss, seu repertório incluía, entre outros, Meyerbeer (Les Huguenottes), Verdi (Aída, Trovador, Otello, Baile de Máscaras) e Puccini (Tosca), papéis que cantava geralmente em alemão. Deixou registros fonográficos com árias desse repertório (sempre em alemão), segundo informam diversas bases de dados. No entanto, essas gravações aparentemente não estão disponíveis comercialmente, e se estão não são divulgadas pelas gravadoras.

Voz lírica, porém robusta, de temperamento dramático. O timbre é claro e bonito, com emissão limpa e segura, que confirmam os fundamentos da escola clássica de canto alemã. Quando ouvimos gravações muito antigas é sempre bom levar em conta que os registros mecânicos das duas primeiras décadas do século passado penalizaram especialmente as vozes femininas, além do acompanhamento orquestral, mais distante da área de captação do som. Feita essa advertência, podemos nos aproximar um pouco mais da arte de Hedy Iracema-Brügelmann.      

Fontes:
1) “Memórias e Glórias de um Teatro”; Edgard de Brito Chaves Jr.
2) Museu de Leipzig.
3) Europeana (www.dismarc.org).
4) Wikipedia.
5) Arquivo pessoal do autor.
6) Arquivos da Família Brügelmann. 


Hedy Iracema-Brügelmann - Lohengrin 
Einsam in trüben Tagen (Elsa's dream)
 

domingo, 20 de maio de 2012


 Dietrich Fischer-Dieskau
(1925-2012)


Dietrich Fischer-Dieskau, baixo-barítono alemão,  morreu na sexta-feira, dia 18 de maio, aos 86 anos. Casou quatro vezes, deixa filhos, e viúva a soprano Julia Varady, com quem se casou em 1977. Obituários diversos informam onde nasceu, como iniciou seus estudos, onde estreou e indicam, ainda, o que todos já sabemos –foi um dos maiores cantores do século passado.  

Talvez seja pouco dizer de Fischer-Dieskau que ele foi um dos grandes. A sua foi uma voz inovadora, capaz de apresentar versões únicas interpretando um repertório vastíssimo, que abrangia a música de câmara e a ópera.  Era uma voz-instrumento, como poucas foram, e a sonoridade desse instrumento não se alterava fosse cantando Schubert, Bach ou Verdi. Voz isolada, que não se pode comparar a nenhuma outra. 

A sólida formação como camerista deu a Fischer-Dieskau a dimensão exata da importância da palavra, do texto no canto. A interpretação dos Lieder exige do cantor atenção redobrada ao texto, muitas vezes negligenciado pelos cantores que se dedicam exclusivamente à ópera. Esse cuidado com o texto é notável quando Dieskau interprreta ópera. Exemplos são suas versões do Falstaff, regida por Leonard Bernstein, e de Rodrigo, no Don Carlo, regido por Georg Solti.  Mas se aproximava da perfeição em Mozart e Wagner.

Dietrich Fischer-Dieskau marcou uma geração inteira de amantes da música e é uma referência para grande número de cantores. Criou um estilo que gerou e continuará gerando muitos seguidores. Se quisermos nos dedicar ao exercício de elaborar uma lista com, digamos, as cinco mais belas vozes masculinas conhecidas, vai ser muito difícil não incluir o nome de Fischer-Dieskau

Com certeza, será lembrado mais por sua atuação no repertório camerista, onde produziu versões paradigmáticas, como o Die Winterreise (Viagem de inverno) de Schubert. Essas deliciosas canções não foram compostas para voz e “acompanhamento” de piano. Na verdade são duos para voz e piano, e a comunhão e o diálogo entre os dois instrumentos é uma imposição. Dieskau sabia disso. 

Fischer-Dieskau vinha se dedicando ao ensino de canto e era excelente professor. Deixa órfãos um bom número de jovens artistas. Vai fazer muita falta, justamente num período em que são visíveis as mudanças nas técnicas de canto –se é que ainda podemos usar, neste caso, o plural. Dieskau sai de cena quando o canto lírico está cada vez mais pasteurizado e submetido às imposições de regentes e encenadores, que andam servindo ópera como quem serve lanche em fast food

Henrique Marques Porto 


Dietrich Fischer-Dieskau - Masterclass

Fischer Dieskau & Sviatoslav Richter Schubert Lieder

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Il Trittico
Giacomo Puccini
Drama e comédia em três movimentos 


por
Comba Marques Porto 
e Henrique Marques Porto

Il Trittico estreou no MET, em 1918. Como diz o nome, reúne Il Tabarro, Suor Angelica e Gianni Schicchi, as óperas de um só ato escritas por Giacomo Puccini. As apresentações se harmonizam nesta ordem, sugerindo um concerto em três movimentos. O primeiro – Il Tabarro - corresponderia a um andante piu forte. Suor Angelica a um adagio lamentoso e Gianni Schicchi a um allegro muitíssimo vivace.  

Nos respectivos libretos das óperas do Tritico são abordados significativos conflitos e situações inerentes às relações humanas – amor, ciúme, ódio, frustração, preconceito, opressão, mesquinharia, cobiça, delitos e a morte, ingrediente que não poderia faltar em obras do repertório verista, particularmente o de Puccini. 

Em Il Tabarro, a morte se apresenta em cena de um crime passional. Michele (barítono), proprietário de um barco, descobre que sua esposa, Giorgetta (soprano), mantém um romance com Luigi (tenor), um dos estivadores que lhe presta serviços. Desconfiado de que Luigi viria ao encontro da mulher na calada da noite, Michele fica na espreita e o mata. 

Geraldine Farrar, primeira Angelica
Suor Angelica (soprano) vive o estigma do aprisionamento de mulheres em conventos, por suposta conduta dissonante quanto aos costumes tidos como bons entre as famílias nobres italianas do século XVIII - Angelica tivera um filho, solteira. São passados sete anos sem notícias dos seus. Uma visita é anunciada. A Princesa (contralto), tia de Angélica, vem colher sua assinatura em documento relacionado ao casamento de sua irmã. Por insistência de Angelica, com frieza, a Princesa conta que seu filho morrera em decorrência de grave doença. Não suportando tamanha dor, Angelica usa seu saber sobre as propriedades das flores, prepara uma poção venenosa e a ingere. Na hora da morte tem a visão do filho, cena tratada musicalmente por Puccini com beleza e intensidade dramática, a retratar uma espécie de perdão divino quanto ao gesto extremo praticado pela freira.

Giuseppe de Luca, o criador de Gianni Schichi
Em Gianni Schicchi, a morte é abordada em feitio de comédia. Põe o público a gargalhar. Puccini enfoca a cobiça dos parentes quanto à herança de Buoso Donati - personagem fortíssimo, conquanto se apresente, em cena, já morto. Puccini inspira-se em verso do 30º Canto do Inferno, de Dante, onde o nome do personagem-título é mencionado como pessoa que assume a identidade de outra para atingir objetivos naturalmente escusos. No caso, objetivos pactuados com a família do morto, que deixa seus bens para os padres de certa ordem religiosa, frustrando a todos. Schicchi sugere a falcatrua. O morto seria escondido e ele, Schicchi, ocuparia o leito de Buoso para ditar ao tabelião um novo testamento. Entusiasmados, os parentes aceitam a solução. Cada um, ao seu modo, oferece vantagens a Schicchi para obter os melhores quinhões. Ao fim, Schicchi engana a todos, legando a si mesmo os bens mais valiosos do monte hereditário.   

De acordo com a anatomia, a base de nosso coração é formada pelos átrios. Por analogia, é possível imaginar que Verdi seria o átrio direito e Puccini o átrio esquerdo do coração da ópera italiana. Para quem gosta do gênero, rever ou voltar a ouvir Il Trittico é sempre bom e necessário. É estreitar o vínculo com o pulsar do coração da música italiana. Este foi o penúltimo trabalho de Puccini que veio a morrer em 1924, deixando inconclusa a sua Turandot. Em Il Trittico, sente-se que Puccini já se aproxima de uma estética musical mais século XX, em certos pontos, familiar à dos impressionistas franceses como Ravel e Debussy. Em Il Tabarro, Puccini cita Mimi, personagem sua de La Bohème - como fez Mozart na parte final de Don Giovanni que, ao ouvir a execução de um trecho das Bodas de Fígaro, comenta – “esta eu conheço”. A referência de Puccini à sua Mimi soa como um modo de festejar uma linguagem da qual se despedia, ao abrir seu talento às novas construções melódicas de seu tempo. Entretanto, nas três óperas, Puccini, mesmo sensível ao novo, mantém a sua linha de raiz: seu dom de grande melodista, imortalizado nas belas árias que escreveu para todos os registros vocais. 


Gianni Schichi: Tito Gobbi e Renata Scotto
Quem passa a se interessar por ópera deve aprender que “O, mio babbino caro” não é uma mera canção italiana; é, sim, uma das mais belas árias escritas por Puccini, para a sua inspiradíssima ópera Gianni Schicchi. Só vendo ou ouvindo a ópera em sua íntegra, para compreender a inserção do texto no libreto e apagar a ideia errônea de que Lauretta canta para um “bambino” (uma criança), como se costuma ouvir dizer entre os que, infelizmente, só conhecem óperas das cenas publicitárias exibidas na TV. Não! A personagem dirige-se ao seu “babbo”, ao seu pai, ao seu “babbino” (paizinho, em italiano), implorando a ele que atenda à família Donati e, quem sabe, assim se viabilize o seu casamento com Rinuccio, sobrinho do morto.  

A ária de Luigi, de Il Tabarro, não costuma ser incluída no repertório de tenores em recitais. É pena, pois ali se vê a denúncia do compositor quanto às agruras da vida dos estivadores. O sentimento de repúdio à opressão está fortemente presente em M. Butterfly e em Tosca. O mesmo tom sente-se em Suor Angelica, vítima do rigor preconceituoso da nobreza italiana a que pertencia. “Senza mamma”, com feição de ária, é o pouco que se conhece de Suor Angelica. Mas o verdadeiro sentido deste trecho só se alcança na fruição da totalidade da peça, para a qual, de fato, exige-se uma sintonia mais fina com o gênero e, particularmente, com a música de Puccini – e, por que não, com a delicada condição da mulher que, por questão de crença ou discriminação, vê sua vida entregue ao claustro de um convento. Puccini é o Chico Buarque da ópera – pode-se dizer. Como poucos artistas, soube cantar a alma feminina, suas fissuras, suas sutilezas, captando com muita sensibilidade os desenhos das finas rendas com que, por vezes, se faz estampar. Consta que ele compôs Suor Angelica sob inspiração das visitas que fazia à sua irmã, Iginia Puccini (1856-1922), que vivia como freira no Monastério de Vicopelago, com o nome “suor Giuglia Enrichetta”.    

Desde 1913 Puccini projetava compor três óperas em um ato baseadas em passagens da Divina Comedia, de Dante Alighieri. Talvez imaginasse que assim conseguiria dar à obra a unidade que pretendia. O resultado final, contudo, foram três óperas baseadas em fontes, inspirações e textos diferentes, sem relação direta entre si. O primeiro libreto a ficar pronto foi o do Il Tabarro, adaptação feita por Giuseppe Adami da peça La Houppelande, de Didier Gold, que Puccini assistira em Paris. Seu interesse era mostrar a Paris nada glamurosa vivida por personagens obscuros, desesperançados e, sobretudo, solitários que trabalhavam e viviam à beira do Rio Sena. Chegou a pensar em uma ópera em dois atos, como consta de uma carta enviada ao editor Ricordi: “Adami mi scrisse che aveva um’idea ottima per uma piccola opera in due atti da unire ad Houppelande, fosse vero! Io sono senza far niente e questo mi secca moltissimo”.

Em 1917 a música para Il Tabarro já estava pronta, quando ocorreram a Puccini as ideias de Suor Angelica, amadurecida depois de uma conversa com Giovacchino Forzano, e Gianni Schichi“ho anche finita uma breve trama su Gianni Schichi”, escreveu ele a Tito Ricordi. Nascia o Il Trittico.

Gianni Schichi, talvez pela força inovadora de sua música e a comicidade da trama ganhou vôo próprio, e se desprende de Il Tabarro e Suor Angelica em muitas montagens. De fato, foi a única a obter sucesso imediato junto ao público. Contudo, era desejo de Puccini que os três títulos fossem apresentados juntos. O maestro tinha razão.  

Uma interpretação corrente do Il Trittico afirma que Puccini teria pretendido apresentar em cada ópera os três universos da Divina Comedia, de Dante –“o purgatório”, “o paraíso” e “o inferno”. Mas, como se pode ver, apenas Gianni Schichi tem relação com a obra clássica de Dante. Contudo, existem dois temas comuns a unir essas óperas: a prisão (física e espiritual) e a morte.

O barco de Michele, em Il Tabarro, é uma espécie de prisão para personagens tristes, solitários e embrutecidos pela vida. “Como é difícil ser feliz...” lamenta Georgetta. “Um saco nas costas e a cabeça voltada para o chão!” –revolta-se Luigi. Prisão também é o claustro em que vive a sofrida Angelica, que lá está não por vocação ao monastério, mas por “penitência”, como acusa a tia. Em cômica prisão – o quarto do finado Buoso Donati - estão também os muitos personagens de Gianni Schichi, família ambiciosa e cínica, refém de um testamento, que chora a perda da herança e não a morte do parente rico –as exceções são Rinuccio, Lauretta, o menino Gherardino e o próprio Schichi, uma espécie de “bom falsário”.    

Em Il Tabarro, a morte trágica, o assassinato cometido por ciúmes, rancor e ódio; em Suor Angelia, a morte sublime, o suicídio perdoado e apresentado como redenção; em Gianni Schichi, a morte cômica que expõe os defeitos dos vivos e se presta à crítica social tratada de forma irônica. 


Já se sabe sobre a estréia de Il Trittico. Mas cabe uma lembrança em relação à Suor Angelica. A ópera teve uma pré-estréia ainda em 1917, em apresentação privada, apenas para as freiras, no Monastério de Vicopelago ou "Monastero della Visitazione", na Toscana, onde Iginia, a irmã de Puccini, era carmelenga (administradora). O próprio Puccini descreveu emocionado, em carta, como foi essa anteprima de sua ópera.(*)

Monastero Agostiniano Vicopelago

"Raccontai loro, con incerta trepidazione e con tutte le precauzioni e le delicate sfumature inspirate dall'ambiente e dall'auditorio, l'intreccio alquanto scabroso del libretto. Erano tutte attente, tutte commosse e con qualche lacrimuccia esclamavano compunte e timide ma sincere: - Poverina, poverina! Come fu disgraziata! Dio misericordioso certo l'ha accolta in cielo e le ha perdonato. Cattiva quella zia così dura... Oh, la mamma che non ha veduto il suo bambino prima che quello morisse!
Si direbbe quasi che le anime dei bimbi indugino a volare in Paradiso, se non ricevono prima il bacio della loro mamma! - Ed altre frasi tenere e commoventi. Io credevo che si scandalizzassero e che mi venissero fuori con qualche uscita di stupore, mi aspettavo anzi, col riserbo di quelle anime pure e timide, un qualche cosa che sapesse di rimprovero, di riprovazione per il troppo ardimento dell'intreccio... Invece trovai soltanto della pietà, della generosa simpatia cristiana aulente di verace ed edificante sentimento religioso. E quando finalmente mi congedai, le monachine mi fecero ala, ed arrivato in fondo alla scala, volsi lo sguardo e le vidi tutte in fila in una spontanea disposizione scenografica tutta vivezza ed espressione, quale nessun coreografo sarebbe mai capace di immaginare, e le nostre coriste e ballerine (Dio mi perdoni la profanazione) tanto meno di eseguire.”


Kobbé, em seu Livro Completo da Ópera (pag. 638) registra que, das três óperas, Suor Angelica é a que menos fez sucesso. Gianni Schicchi, ao contrário, de tão apreciada, teria conquistado autonomia para apresentações isoladas. Nada contra. Porém, as três óperas interligam-se magistralmente sob a assinatura de um compositor que não as uniu por acaso. É necessário, pelo menos por uma vez, apreciá-las em conjunto, não importando o tempo alongado do espetáculo, para melhor entender, musicalmente, o fio condutor dos tais “três movimentos” que Il Trittico sugere. 

(*) Em Vicopelago estão guardados os manuscritos da partitura de "La Fanciulla del West", com uma dedicatória de Puccini à sua irmã Iginia: "Alla mia Monachina Iginia affettuosamente Giacomo Torre del Lago 23 Gen 911".

Fontes:
1) Kobbé, o Livro Completo da Ópera
2) http://www.magiadellopera.com/benvenuto.html. Agradecimentos a Maurizio Tagliabue 

Barbara Frittoli - Suor Angelica - Cena Final




Paulo Fortes - Gianni Schicchi




Carlo Tagliabue e Clara Petrella (dueto) - Il Tabarro 

terça-feira, 15 de maio de 2012


"Der Rosenkavalier", O Cavaleiro da Rosa: 
uma ópera vienense.


Wiener Staatsoper em 15 de abril de 2012

 por Ildefonso Côrtes

         A obra que Richard Strauss (1864-1949) designou “comédia para música” passa-se numa região ensolarada do século XVIII, antídoto para as tragédias Salomé e Elektra, suas últimas produções.
Libreto do poeta e amigo, Hugo Von Hofmannstahl, colaborador frequente que lhe escreveu dizendo: “a obra, numa certa medida corresponderá à sua individualidade artística, na combinação que apresenta de grotesco e lírico”. Strauss entusiasmou-se pelo enredo, passado na velha Viena sob a imperatriz Marie Therèse.

Elīna Garanča

O tema lembra as tramas arquitetadas por Lorenzo da Ponte, musicadas por Mozart. Situações burlescas como numa pantomima. Alguns elementos do texto: amores proibidos, ânsia de nobreza, travestis, casamento por imposição paterna, ciúmes, paixão, poesia, desprendimento, reunião amorosa e muito ridículo.
Strauss e Hofmannstahl estavam determinados em escrever a grande comédia operística alemã para o século XX, como os “Mestres Cantores” de Wagner o foi para o século XIX e “Bodas de Fígaro” para o século XVIII de Mozart.

sábado, 12 de maio de 2012


Minha iniciação nos prazeres 
do mundo da ópera

por Ildefonso Côrtes 

          Deixem que me apresente. Gosto de ópera desde 10 anos de idade. Fui iniciado nestes mistérios pelo meu primeiro guru no assunto, o querido Henrique Marques Porto, crítico musical que escrevia para jornais e produzia programa de rádio sobre música, apaixonado pela ópera, rara sensibilidade para as belezas do canto lírico, meu tio-avô.
          O templo de minha iniciação localizava-se em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, numa casa jardinada, quintal onde plantas, árvores e flores vicejavam alegres ao sol carioca.
          Passava muitos fins de semana lá, onde Tio Henrique, homem do mundo, viajado, organizava festins de Sardanapalo, opíparos banquetes. Grão sacerdote da boa música e da boa mesa preparava suntuosas peixadas, mariscadas afrodisíacas, rabadas lascivas, dionisíacas feijoadas. 

O crítico musical Marques Porto, o "tio Henrique" (à direita) com o baixo Nicola Zaccaria

          Após estas comilanças, a iniciação na ópera com acesso integral aos libretos em italiano ou francês. Simples, descontraído, brincalhão, junto ao equipamento de som, ele, muitas vezes em cuecas, olhar rútilo, rosto expressivo, face crispada, regia a partitura em suas nuances, caudalosamente, com gestual que descrevia a música, de forma exuberante, entremeado do canto representando a cena, como se no palco estivesse. A trama, as expressões mais enfáticas, a história da criação da ópera inserida em seu contexto histórico já havia sido esmiuçada a priori em longas conversas que precediam as audições.
          Puccini era um dos autores favoritos – Butterfly, Bohème, Tosca, Turandot, Soror Angélica, Manon Lescaut eram sorvidas no texto original.
Os sete filhos já haviam sido inoculados pelo vírus da ópera e alguns se sucederam, no Municipal, nos papéis infantis de Butterfly, Soror Angélica e Gianni Schichi.
Além do canto verdiano, que igualava o de Puccini, Andrea Chenier de Giordano, Thaís, Werther e Manon de Massenet, Cavalleria Rusticana e I Pagliacci, a inseparável Cav-Pag de Mascagni e Leoncavallo, eram as óperas mais ouvidas. Fui descobrindo as Leonoras, Amneris, Aidas, Gilda e Rigoleto, Azucena, Manrico, Nathanael, Violeta Valery, Alfredo Germont, Dom Alvaro, Enzo Grimaldi da Gioconda de Ponchielli.
Fui apresentado ao Verdi amadurecido de Otello e Falstaff que compunham a fase madura do mestre italiano.
Wagner, Mozart, os mestres do bel canto, Donizetti, Belini, foram-me chegando paulatinamente. Adolescente que era, a ópera tomou-me de assalto com a observação das descobertas que me enchiam de prazer. Quando completei 15 anos de idade, surpreendi meus pais com o presente de aniversário escolhido: uma gravação, na íntegra, da Cavalleria Rusticana, com Maria Callas – Santuzza, Giseppe Di Stefano – Turidu, Tito Gobbi – Compadre Alfio, com a orquestra do Scala de Milão conduzida pelo doce e sagaz Tulio Serafim, pai musical de Callas. O presente, que não se encontrava facilmente no Rio de Janeiro, teve que ser importado.
Outra paixão diferente me consumia: o Flamengo do tri-campeonato de 42/43/45 e com minha participação nos estádios, torcedor apaixonado, no tri-campeonato de 53/54/55 de Sinforiano Garcia, Pavão, Dequinha, Doutor Rubis, Jordan e o angélico paraguaio Fleitas Solich, técnico que acalmava os jogadores na concentração, tocando piano. Ao invés do “mais querido”, no presente, optei pela diva Maria Callas, paixão de toda minha vida futura.

Tenor Assis Pacheco
Ainda na década de 50, vinham ao Brasil os monstros sagrados da cena lírica internacional: Mario Del Monaco, Tagliavini, Gian Giacomo Guelfi, Simionato, Fedora Barbieri, Elizabeta Barbato, Boris Christoff, Magda Olivero. Assisti a todos de pé, atrás de colunas, no chão, na galeria, na última hora, em lugares vagos. Tudo pela influência do Tio Henrique junto à Administração do Teatro. Assisti a ensaios e, quando possível, mais de uma récita. Acompanhei também os passos, com mais intimidade, dos nossos Colósimo, Paulo Fortes, Violeta Coelho Neto de Freitas, Assis Pacheco, Glória Queiroz, Clara Marise, Fernando Teixeira.


Formei-me Engenheiro Naval em 1958, pela antiga Escola Nacional de Engenharia (hoje UFRJ), satisfazendo a outra paixão da infância, os barcos e o mar, paixão que cultivo até hoje.
Como Engenheiro militante em estaleiros brasileiros, por dever de ofício, viajei por quase todo o mundo. A mesma unção religiosa dos verdes anos me levou - mais amadurecido e melhor conhecedor - a assistir espetáculos fascinantes em Praga, Viena, Salzburgo, Novo York, Londres, Hamburgo, Düsseldorf, Colônia, Milão.

Coluna de Ildefonso em "A  Notícia". Idéia do tio.
Hoje, do alto dos meus setenta anos, a música em geral e a ópera em particular, encheu minha vida de uma emoção estética que me comove e gratifica. Bendigo os anos em que pude conviver com o velho tio, aprender tanto e hoje, agradecer-lhe este tesouro de prazeres que foi o legado de vida que ele me deixou.
Na catedral desta crença, rezo fervoroso em várias capelas: a da música sinfônica com os mestres da Idade Média, Renascença, Barroco, Romantismo, Clássico, impressionistas, a música sacra e coral e a de câmera que um velho amigo, Dr. Hélio de Lima Carlos, cardiologista, vaticinou-me certa vez: “Ao final você vai descobrir os prazeres refinados da música onde sem percussão, pirotecnias orquestrais, poucos instrumentos fazem a música cingir-se ao essencial. Nada de excessos, só o filé mignon” como ele, jocosamente, me dizia. Anos depois vi cumprir-se a sua profecia, a música de câmera me tem conduzido a encantamentos inexcedíveis.


Tenho a paixão pela música como meu “leit-motiv” vital e faço coro às sábias palavras do Artur da Távola, grande conhecedor de música, quando disse: 
“Música é vida interior. Quem tem vida interior nunca está só”.