sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"O Crepúsculo dos Deuses" em São Paulo



Götter de Heller


por Comba Marques Porto

O poder inventivo de Richard Wagner materializou-se no Brasil com a montagem do “Crepúsculo dos Deuses” no Theatro Municipal de São Paulo, sob direção musical do maestro Luiz Fernando Malheiro. Pela concepção e direção cênica responde o professor André Heller-Lopes, cujo bom trabalho merece o reconhecimento do público por vários aspectos. Primeiro, pela coragem de uma criação original, diante de tudo que já se fez em montagens da tetralogia, sobretudo, a bela e recente produção do MET, assinada pelo canadense Robert Lepage, que ainda ecoa nos corações, tanto dos que puderam vê-la ao vivo, quanto dos que, graças às novas mídias, puderam assisti-la nos cinemas e agora adquiri-la em DVD já comercializado na internet. 

O “Anel brasileiro” de Heller utiliza elementos de nossa cultura popular e nisto vai um grande acerto de sua concepção que traz à cena a presença de fortes signos de nossa gente. É certo que a saga do Anel trata de temas universais, o que estimula e facilita a liberdade de encenação, sem que se incorra em desrespeito ao libreto. Temas como a apropriação da riqueza, o poder, a traição, o amor estão em todas as culturas. Por outro lado, os personagens concebidos por Wagner podem ser vistos como símbolos de comportamentos igualmente universais e até mesmo atemporais. 


É o herói –Siegfried - que de tão puro torna-se tolo e, de tanto admirar seus próprios feitos, acaba por se deixar enganar pelos espertos Gibichungs. Eis um tipo encontrado nas modernas democracias, inclusive as emergentes. Na vida real o ouro não sai das mãos dos gibichungs. Eles estão aí, espalhados pelo mundo. Cada vez mais, especializam-se em roubar o ouro da terra e a força de trabalho de homens, mulheres e crianças. E lá estão os retirantes no palco de Heller a lembrar a expropriação de nossas riquezas pelos alberichs e gibichungs – verdadeira e internacionalizada  maldição. 

É a mulher – Brünnhilde – que por fidelidade ao amor, torna-se a verdadeira heroína da saga, desafia o poder constituído, sem perder a consciência de seus atos, mesmo os mais extremos. A Brünnhilde de Wagner representa a força interior da feminilidade, essa magia que transforma mulheres em guerreiras. E quantas não são as “valquírias” brasileiras a enfrentar com coragem os dragões de cada dia? E o que não é o amor senão esse destemor, essa gana pela vida que assusta os homens e até inviabiliza muitas histórias de amor? 

Há representações muito expressivas no Götter de Heller. Por exemplo, os figurinos das Nornas inspirados na tradição religiosa africana. Como bem explica Zito Baptista Filho (A Ópera, Ed. Nova Fronteira, 1987, RJ), “são as Norns, fadas ou divindades, filhas da deusa Erda, que se põem a desenrolar um extenso cordão dourado que simboliza o destino”. As Nornas, logo ao início do primeiro ato, fazem a predição da destruição do Walhalla, “devido à traição de que foram vítimas as donzelas do Reno e o próprio Reno, despojado de seu ouro”, conta Zito. Nada mais belo numa encenação genuinamente brasileira do que representar a linha do tempo e a força do destino pela referência às divindades mais populares de nossa cultura – os orixás secularmente e diariamente consultados ao som dos tambores em nossos vivos terreiros de umbanda e candomblé. 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O crepúsculo da ópera no Rio.


"Götterdamerung" em São Paulo. 
Crepúsculo da ópera no Rio.


Eliane Coelho, Brünnhilde no Theatro Municipal de São Paulo

 por Comba Marques Porto

Pela terceira vez na vida a ópera me leva ao Theatro Municipal de São Paulo. Na primeira vez, ainda pequena, fui para fazer o papel do filho de Butterfly, com a soprano Violeta Coelho Neto de Freitas.  Pela segunda vez, na década de 70, fui para um congresso jurídico e, por ótima coincidência, o tenor James Mackraken se apresentava em Otello, de Verdi. (*) Na semana passada, voltei a Sampa para ver Wagner – era a penúltima das seis récitas do “Crepúsculo dos Deuses”, a quarta ópera do ciclo do “Anel dos Nibelungos”, sob a regência do maestro Luiz Fernando Malheiro. Chamou-me a atenção o fato de ter recebido gratuitamente o programa do espetáculo já na porta, ao apresentar meu ingresso. Aqui no Rio paga-se por este material. Para os paulistas tal detalhe pode parecer insignificante. Mas para nós, cariocas, a cobrança do programa pode figurar como metáfora de nosso desprestígio como destinatários da produção cultural de um ente público, o mais belo e glorioso teatro situado na cidade do Rio de Janeiro. 

É impossível deixar de comparar os desempenhos dos dois centenários teatros. Ambos guardam em suas memórias registros de prodigiosas temporadas líricas. O Municipal de São Paulo, de longe, tem o charme e o brilho do Municipal do Rio. Entretanto, no terreno da ópera, a arquitetura austera da casa paulista brilha com uma temporada lírica bem estruturada, enquanto as portas do reluzente Municipal quase não mais se abrem ao público de ópera. Até agora tivemos apenas três títulos: “Rigoletto”, de Verdi, em cinco récitas; “Griselda”, de Vivaldi, em récita única; “Berio sem censura”, de Jocy de Oliveira, em récita única. Nenhuma outra ópera consta anunciada na programação de 2012. E não se culpe o desabamento dos prédios vizinhos ocorrido no início do ano. É certo que o fechamento temporário do Theatro se justificava para que se apurasse se havia ou não algum nível de comprometimento. Mas, mesmo antes da triste ocorrência, não havia temporada anunciada.  

O Theatro Municipal de São Paulo, vinculado à Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, já apresentou cinco títulos de ópera até este mês de agosto. Em fevereiro: “Magdalena”, de Villa-Lobos, em comemoração aos 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – produção original do Theatre Du Chatelet, Paris, 2010; “Pedro Malazarte”, de Camargo Guarnieri (libreto de Mario de Andrade). Em março e abril, “La Traviata”, de Verdi; em abril, “Idomeneo”, de Mozart; em agosto, “Götterdämmerung” (Crepúsculo dos Deuses), de Wagner. Ainda estão previstas: “Pelléas et Mélissande”, de Debussy, em setembro; “Violanta”, de Erick Korngold, “Eine Florentinasche Tragödie”, de Alexander Von Zemlinsky e “Orfeo e Euridice”, de Gluck, em outubro; em novembro, mais três récitas do “Orfeo”, “Macbeth”, de Verdi (estréia mundial da nova produção de Robert Wilson) e “O Rouxinol”, de Stravinsky.  Terão sido apresentadas ao todo 51 récitas de ópera ao longo do ano de 2012. 

O mistério da pífia programação de ópera no Municipal do Rio desafia explicações por parte do Estado do Rio de Janeiro, ao qual está a casa administrativamente vinculada. Mais que um bem da cidade do Rio de Janeiro, por sua história, o Theatro Municipal é um bem cultural de todo o país. Logo, sua produção é de interesse nacional. Se a ópera está viva em São Paulo, não se justifica que não esteja viva no Rio, salvo se exista um forte empecilho que deva ser revelado, em nome da transparência de conduta que se impõe à administração pública. O administrador nos deve respostas convincentes. Afinal, ópera é cultura e cultura é tema de interesse público. 

Há rumores de que a última reforma teria comprometido a acústica do Theatro. Até onde isto é boato? Até onde isto é verdade? Confesso: pensei que estivesse com problemas auditivos na noite em que assisti o “Rigoletto”. Tudo me soava um pouco mais baixo do que o normal. Por sorte, não há nada de errado com minha audição - no “Crepúsculo dos Deuses” tudo soava com a intensidade que meus ouvidos íntimos da ópera costumam reconhecer. 

Por outro lado, não dá para imaginar que a precariedade da programação tenha origem em mero desinteresse da administração pelo gênero. Em qualquer governo democrático, os responsáveis seriam simplesmente afastados por tal conduta culturalmente desprezível. 

Não será mau voltar a São Paulo para ir à ópera. Mas, meu amor pelo Rio e pelo Theatro Municipal clama por medidas, invoca o poder-dever dos administradores da cultura no Estado do Rio de Janeiro para que a situação atual se reverta e, em nome da rica história do nosso teatro, a ópera não permaneça esquecida.

(*) Walter Neiva, o conhecido cenógrafo e encenador de óperas, em tempo corrigiu minha memória: originalmente citei o tenor Jon Vickers, mas o intérprete do Otello naquela ocasião foi James Mackraken.


Götterdamerung 
Birgit Nilsson/Fischer-Dieskau/Gottlob Frick
 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012


Madame Butterfly: 
ficção ou personagem real?


 por Henrique Marques Porto

Madame Butterfly, a Cio-Cio-San da famosa ópera de Puccini, vem comovendo platéias em todo o mundo desde sua segunda estréia em 1907. A primeira, em 1904, foi um fiasco, como já nos contou o saudoso Oscar Peixoto (Aqui): “O diretor de cena resolveu inovar criando efeitos sonoros especiais para dar mais colorido ao intermezzo do segundo ato. Pretendia que quando os pássaros chilreassem no ambiente japonês do palco, outros respondessem de vários pontos do teatro. Para isso, distribuíra pelas galerias alguns funcionários, munidos de instrumentos que imitavam o pio de passarinhos no momento adequado. Mas o efeito foi bem menos poético do que se esperava. Segundo o depoimento da soprano que fez o papel principal, Rosina Storchio, “graças a uma imprevista colaboração do público, de todos os lados ergueram-se cantos de galos, ladrar de cães, mugidos de vacas e zurros de asnos, como se naquela madrugada estivesse despertando a própria arca de Noé”.

Feitas as revisões -Puccini escreveu mais quatro versões da ópera depois do fracasso inicial- e tomadas precauções contra possíveis excessos de “criatividade” dos encenadores, Madame Butterfly transformou-se em um sucesso absoluto de público e há mais de um século tem presença regular nos repertórios de todos os teatros de ópera do mundo, marcando recordes de representação. Definitivamente o drama da jovem gueixa não cansa o público.

No entanto, há décadas se faz uma pergunta: Cio-Cio-San é um personagem de ficção ou teria existido realmente?

Em 12 de março de 1959, a Folha da Noite (periódico do Grupo Folha) reproduziu pequena matéria publicada pela revista italiana "Musica d'Oggi"

“ROMA (FOLHAS) - Em artigo publicado na revista "Musica d'Oggi", um critico musical japonês, Duiti Miyasawa, oferece novos elementos sobre a possivel origem da "Madame Butterfly" da ópera de Puccini. Sobre os "matrimônios temporários" entre gueixas e oficiais de navios estrangeiros visitantes, que eram tolerados em fins do seculo passado, foram escritas duas historias que se tornaram famosas: "Madame Chrysantheme", de Pierre Loti, e "Madame Butterfly", de John Luther Long e David Belasco. Em entrevista concedida a uma revista japonesa, a irmã de Long, cujo marido era missionario no Japão, afirmou ter sido ela quem contava a verdadeira historia ao seu irmão. Este, posteriormente, contara a uma atriz japonesa que a verdadeira Cio-Cio-san sobrevivera à sua tentativa de suicídio. 

Tomisaburo Kuraba, filho de Glover
Esses fatos foram confirmados pelo diretor e secretario do Museu de Nagasaki. Declarou ele que o verdadeiro nome de "Madame Butterfly" era Tsuru Yamamura. Nascera ela em Osaka, em 1º de janeiro de 1851, e morrera em Toquio, em 23 de março de 1899. Seu filho, Tom Glover (ou Tomisaburo Kuraba) foi levado para Nagasaki por seu pai, um rico comerciante inglês, e tornou-se aluno da irmã de John Luther Long. De acordo ainda com as afirmações do diretor do Museu de Nagasaki, Tsuru e Glover viviam naquela cidade, onde ela era sempre vista com um manto no qual havia o desenho de uma borboleta (butterfly), simbolo de sua familia.
Entretanto, essa versão é contraditada pelo historiador K. Watanabe, de Nagasaki. Afirma ele que o emblema da borboleta era usado por todas as gueixas. Apresenta o historiador outra gueixa, chamada Daté, como a possivel "Madame Butterfly" da vida real.”



O maestro Salvatore Ruberti, italiano naturalizado brasileiro e um nome de grande importância para a história da ópera no Brasil, apresentou outra versão em artigo publicado em 1950 no “Diário da Noite”, do Rio de Janeiro. 

 Thomas Glover e Tsuru Awayiva, que era chamada "Madame Butterfly" ou "Cio-Cio-San"

“Entre 1860 e 1870, Nagasaki, mais do que outra cidade japonesa, era o paraíso dos estrangeiros: haviam belas mulheres, vinhos excelentes, festas grandiosas. O dinheiro corria a rodo, porquanto florescia o tráfico de armas que os europeus importavam em grande quantidade. Entre os estrangeiros mais ricos havia um comerciante inglês, Thomas Glover, que levara consigo, de Osaka, uma belíssima geisha, O-Tsu-ru, filha de um samurai, Jasube Naganishi, de Tokada, o qual abandonando a espada e os preconceitos fundara a “Away Tea House”, casa que teve grande fortuna. Glover e O-Tsu-ru, segundo Chimanaqui e outros estudiosos japoneses, casaram de acordo com o rito religioso local e a cerimônia se passou como na ópera de Puccini, num pavilhão que dominava a Baía de Nagasaki. Daquela união nasceu um pequeno e os três se transferiram para um magnífico palacete onde O-Tsu-ru recebia, com grande luxo, as maiores personalidades japonesas e os estrangeiros mais influentes de passagem por Nagasaki. Em suma, era um “salão literário” em que se misturavam duas culturas, a ocidental e a oriental.

O-Tsu-ru, que tinha completando o seu nome com o acrescentar-lhe Awayiva, do nome da casa de chá fundada pelo pai, tornou-se O-Tsu-ru Awayiva e tomou para emblema de sua casa uma borboleta.

Nas recepções ela vestia sempre um luxuoso “kimono” com grandes borboletas em vistosas cores nas mangas. Por isso, os estrangeiros, aos quais era difícil pronunciar o seu complicado nome preferiam chamá-la “Madame Butterfly”. E também Madame Butterfly tornou-se para os japoneses: O-cho-san.

No cimo da colina que tem a seus pés o porto de Nagasaki, depois da morte da Puccini, foi elevado um monumento para celebrar a dolorosa Madame Butterfly e o musicista genial.

E o embaixador do Japão na Itália, no dia em que o corpo de Puccini era trasladado da clínica de Bruxelas, mandou depositar sobre o esquife uma enorme coroa de crisântemos, com uma fita em que havia os dizeres: ‘Em memória de Butterfly’. Poesia da Arte e da Vida!”

Não terá sido por acaso a homenagem do embaixador japonês. Afinal, personagens de ficção não mandam flores, ainda que isso seja possível em ópera.  

Mas, na verdade, Thomas Glover não teve apenas um filho –no caso uma única filha com Tsuru, sua esposa. De um romance com uma desconhecida moça, também japonesa, Glover teve um filho chamado Tomisaburo Kuraba, cuja paternidade ele assumiu, e que frequentou sua casa como um membro da família. Sabe-se pouco sobre sua mãe. Seria esta outra e esquecida jovem a verdadeira “Madame Butterfly”? Talvez.

Esses relatos, todos bem documentados, sugerem que as histórias de duas mulheres se combinaram na criação da Cio-Cio-San, da ópera de Puccini -a ex-gueixa Tsuru, esposa de Thomas Glover, que viveu confortavelmente e sem dramas pungentes, e que usava o símbolo da borboleta, e a misteriosa mãe de seu segundo filho, que pode ser a gueixa Daté mencionada pelo hostoriador Watanabe, de Nagasaki.

O edifício em estilo oriental da Mansão Glover, com a Baía de Nagasaki ao fundo.

A mansão construída por Thomas Glover numa colina diante do porto de Nagasaki é hoje um museu. É composta por duas construções, uma em estilo ocidental, outra em estilo oriental. É este cenário real que tem inspirado desde sempre os diretores nas encenações de Madame Butterfly. Em seus jardins existem duas estátuas. Uma em homenagem a Giacomo Puccini, com uma borboleta pousada num ombro. A outra é um monumento à Madame Butterfly, que evoca a soprano japonesa Tamaki Miura no papel que a tornou famosa.

O monumento à Madame Butterfly e a estátua de Giacomo Puccini na Mansão Glover

Verdadeira ou obra de ficção, Butterfly é um poderoso personagem, único na história da ópera. Se você não for até ela, ela chegará até você, porque expressa os sentimentos mais simples, aqueles que afetam de algum modo todas as pessoas. Emociona e vai continuar emocionando o público por muitos e muitos anos. 

Um bel di vedremo - Felicia Weathers - Opera Imaginaire