por Henrique Marques Porto
No dia 26 de março faleceu no Rio de Janeiro, aos 97 anos, a mezzo soprano Carmem Pimentel, uma das artistas mais queridas e respeitadas da ópera no Brasil, e também uma das que mais atuou em nossas temporadas líricas, nacionais e internacionais.
Conheci Dona Carmem ainda menino, em 1956, figurando como o filho de Cio-Cio-San, em “Madame Butterfly”, de Puccini, que teve apresentações no Theatro Municipal e no antigo Teatro República, com Clara Marisi, Alfredo Colosimo (depois Assis Pacheco), Peter Gotlieb (depois Sylvio Vieira), Carmem Pimentel, Geraldo Chagas, Guilherme Damiano e Carlos Walter. A regência foi do maestro Santiago Guerra, com cenários de Fernando Pamplona e direção cênica de Carlos Marchese.
Criança em palco de teatro –principalmente em meio às complicações da montagem de uma ópera- pode ficar meio solitária e perdida nos bastidores se os adultos do elenco principal não lhe derem alguma atenção e carinho. Mas, com Dona Carmem no elenco, qualquer criança tinha garantidos os afagos e as atenções necessárias para descontrair e encarar tudo como uma grande brincadeira, mesmo num drama pesado como “Madame Butterfly”, onde o menino ou menina “testemunha” a cada récita o suicídio da “mãe”. Mas, nos anos 50 e 60, Carmem Pimentel era quase a Susuki oficial nas muitas montagens que tivemos da ópera de Puccini. O amparo estava assegurado. O título desse artigo poderia ser: “Susuki faleceu ontem no Rio de Janeiro”.
Da montagem de 1956 de “Madame Butterfly” guardei na memória muitos momentos -pequenos flashs de cenas dos ensaios e das récitas. Cenas de bastidores e de palco. Um, em particular, minha memória guardou como um filme, em sequência inteira. Nas montagens daquela época a criança ficava mais tempo em cena, desde a entrada até o final do segundo ato. E permanecia em cena na execução do Coro a bocca chiusa e no interlúdio (o amanhecer) que faz a passagem para o último ato. Saía de cena no colo da protagonista, que embala o filho adormecido, e voltava para o final da ópera.
No final do segundo ato, na marcação de Carlos Marchese, o diretor de cena, os três personagens (Cio-Cio-San, Susuki e o filho) deveriam ficar em pé, com os rostos colados ao shoji, à espera da chegada de Pinkerton. Cai a noite. Clara Marisi, a Cio-Cio-San, abria com o indicador um buraquinho no shoji, para que o filho também pudesse olhar o Porto de Nagazaki. Um pequeno detalhe que em teatro faz muita diferença. A cena acentuava a solidão dos três personagens. Nos ensaios, Carlos Marchese orientou: a criança deveria buscar o colo de Susuki e adormecer pouco a pouco. Então, lá fui eu para o colo de Dona Carmem, que já se acomodara no chão. Cio-Cio-San permanecia de pé. O resto da cena quem fez a direção foi Dona Carmem, sussurrando baixinho no meu ouvido.
“-Agora, finja que está com sono...isso...Feche os olhos devagarinho... Agora, durma...”
O colo de Carmem Pimentel era acolhedor. Dos bastidores vinha a música sublime e comovente do famoso Coro. Fim do ato.
Chegou a vez de tantas e tantas antigas crianças, como aquela que eu fui, acolherem Carmem Pimentel no aconchego da memória -o colo que podemos lhe oferecer- para que seu sono, agora eterno, seja tranquilo e sereno como eram os nossos na fantasia do palco de um teatro.
"Agora durma..." Durma em paz, Dona Carmem.
"Agora durma..." Durma em paz, Dona Carmem.
Dueto das Flores - Madame Butterfly
Carmem Pimentel e Clara Marisi
Carmem Pimentel e Clara Marisi