quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Novidades na Gamboa; tudo igual na Cinelândia.




por Julieta Palhares

A edição de O Globo de hoje, domingo, 25 de novembro de 2012, noticia em sua Revista o projeto de recuperação de prédio “no coração da Zona Portuária do Rio” com finalidade de abrigar a Central Técnica de Produções do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O projeto é apresentado pela Presidente Camurati e segundo a matéria, a obra não só atenderá à necessidade de acomodação do acervo do TMRJ como também será um polo de atração turística e uma casa de formação de técnicos em figurinos, cenários, etc. Não parece ser pouca coisa e consta que a obra já vai em ritmo frenético. Ao que se anuncia, o TMRJ passará a ter um Central Técnica de Produções de dar inveja às mais ativas casas de ópera do mundo. 

É isso mesmo? A direção do TMRJ se lança em vultosa empreitada de reconstrução da Central Técnica de Produções, enquanto o palco permanece às escuras para os seus corpos fixos de orquestra, coro e balé!?

 A Presidente Camurati afirma: “quando peguei o teatro, tudo nele estava deteriorado. A recuperação desse núcleo técnico é parte do objetivo que a gestão tem. Não podemos nos preocupar exclusivamente com programação. Isto é uma fundação, mais que um teatro”. (pg. 50, da Revista O Globo).  

Quer dizer que em 2007 a Presidente Camurati “pegou o teatro com tudo deteriorado” e somente agora, na virada para 2013, resolve salvar o que resta de cenários, demais peças cenográficas, figurinos e mais o acervo remanescente do museu outrora instalado no salão Assirius? E esta não teria sido a tarefa do primeiro dia de sua gestão? Sempre é possível fazer o mínimo necessário, independentemente de projetos mirabolantes de vultosos aportes financeiros. (Continua)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Tecnologia muito "além" da arte? Rumo à Gravação Virtual (e outras considerações).




por André Vital

Adoro as enquetes tipo "obras e discos que você levaria para uma ilha deserta", simplesmente porque tenho a resposta na ponta da língua; as obras seriam o Parsifal e/ou ( se pudesse levar duas...) a "Arte da Fuga" do Mestre Bach.

No caso do Parsifal também tenho de pronto a resposta - Karajan DG, a sua primeira gravação digital feita (se bem que não a primeira a ser lançada) -a palavra e o conceito perfeição, bem como a sua realização, são provavelmente para uma realidade inefável,  mas se uma interpretação chegou perto, certamente foi esta!

Não estou falando das óbvias limitações e percalços que atingem 100% das gravações de ópera; tanto o tenor como a cantora que faz a Kundry são mais alvo de críticas do que louvores, e mesmo no caso dos outros solistas, sempre se pode reclamar de alguma coisa...a "Perfeição" a que me refiro está mais para aquele conceito euclidiano do todo ser maior que a soma das partes. Se se pudesse resumir em poucas palavras o fenômeno desta interpretação, seria com a expressão "mensuração áurea"!

Proporções e escolha de tempos, individualmente em cada momento e entre si, do menor micro ao maior macro do universo da obra final wagneriana; equilíbrio (quase) perfeito entre fusão e clareza individual de timbres e instrumentos, ou seja plasticidade e hedonismo numa perfeita aliança.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Frábrica de ilusões. O gênero opereta pode ser bom, mas ópera é muito melhor.




por Comba Marques Porto


         Não fui assistir “A Viúva Alegre” e nem iria, mesmo que tivesse sido apresentada no contexto de uma boa temporada lírica. Eu não iria porque tenho cá minhas diferenças com as operetas. Contudo, venho acompanhando as manifestações dos artistas que participaram da montagem e minha reserva quanto ao gênero em nada impede que os parabenize e agradeça a todo o elenco -músicos, coristas e bailarinos - pelo empenho de fazer sempre o melhor pela arte, apesar de todas as dificuldades que enfrentaram. 

Em verdade, a montagem da “Viúva Alegre” veio a calhar justamente no momento em que anda tenso o clima criado ao longo deste ano entre a administração do TMRJ e o público em razão das inconsistentes desculpas para a (não) temporada de 2012, sem contar os problemas entre a direção e seus corpos estáveis, tal como vêm sendo noticiado por vários artistas através das redes sociais e mesmo na grande imprensa. Parece que Franz Lehár surgiu no cenário para amenizar os conflitos, para espairecer. Que seja.  (Continua)

domingo, 2 de dezembro de 2012

Cantores líricos usaram microfones em opereta. Público botou a boca no trombone.






“Ontem fui ver Götterdammerung de Wagner (...) 
Você já viveu sem ter curtido Wagner?”

(no dia 02/05/1993)


“(...) Mas em Wagner só se aplaude quando o maestro executa a última nota. Aí se aplaude de maneira que espantaria a torcida do Flamengo e do Corinthians”.

 (no dia 06/05/1993)


Paulo Francis - O Globo
por Heliana Farah *

Kitcsh, brega e cafona, a maioria das definições desses termos trazem referência a excesso de qualquer natureza. 

O que isso tudo tem em relação às vaias no Theatro Municipal do Rio de Janeiro na última quarta-feira, dia 28/11, e à Voz Lírica? Começarei ilustrando por um episódio narrando o oposto.

Há bem pouco tempo, ainda em novembro de 2012 fui a uma récita da Forza del Destino, de Verdi, num espaço pequeno e apresentada com acompanhamento de piano. O tenor era sublime e logo depois de sua primeira ária começamos a urrar delirantemente e a aplaudir. Duas senhoras umas duas fileiras à nossa frente nos olharam com cara feia e falaram alguma coisa para gente. E com “a gente” me refiro a pessoas que realmente conhecem ópera e tradição operística. Não entendemos, achamos que inacreditavelmente elas não haviam gostado do tenor. No fim da récita, uma outra senhora que estava entre a gente e essas duas nos explicou o motivo da irritação: elas diziam que estávamos nos portando como se estivéssemos no Maracanã! Essas não conhecem nada de ópera e nem leram Paulo Francis! Pois é, ópera sempre atraiu gente metida a besta que gosta de ir para esnobar, muitas vezes nem gosta do gênero, mas se força a gostar, afinal acham chique.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Hora de mudar e renovar.



por Henrique Marques Porto


A área cultural do Rio de Janeiro, particularmente no que diz respeito à música, à ópera, ao balé e ao Theatro Municipal, tem vivido nos últimos dias momentos agitados e de muita tensão. E não é para menos. 


O final do ano se aproxima e até agora o Theatro Municipal não anunciou nenhuma programação, ideia, projeto ou esboço de plano para 2013. O TMRJ está absolutamente paralisado pela falta de iniciativa de seus gestores.  A agenda para o próximo ano está lamentavelmente em branco. 


O assunto vem ocupando amplo espaço em blogs e nas redes sociais, e já chegou à grande imprensa, em duas matérias publicadas no último domingo, dia 18, pelo jornal “O Globo”. Nas matérias, a presidente do TMRJ, a diretora e produtora de cinema Carla Camurati, foi ouvida e teve espaço para dar suas explicações. Não convenceu. Ao contrário, produziu nova onda de protestos e acentuou as campanhas que o meio musical e o público do Rio já vinham fazendo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Um "Andrea Chénier" que honra a produção nacional de ópera.

por Henrique Marques Porto

Que o "Andrea Chénier", de Umberto Giordano, é um título dos mais apreciados pelos amantes da ópera é fato conhecido que dispensa comentários. Igualmente é dispensável lembrar que o Brasil, e o Rio de janeiro em particular, registra em sua história montagens memoráveis desse ótimo exemplar do verismo. Os mais antigos indicam duas montagens da ópera, nos anos 1930, como as mais notáveis: com Claudia Muzio, Beniaminio Gigli e Carlo Galeffi; e outra com a mesma Claudia Muzio dividindo o palco com Giacomo Lauri-Volpi e o barítono Benvenuto Franci. 

Um outro registro que merece destaque data de 1989, realizado na forma de concerto, no Theatro Municipal de São Paulo. Também houve récitas no Rio de Janeiro. A produção foi do "Ópera Brasil", projeto organizado na década de 80 por Fernando Bicudo.

No vídeo abaixo é possível apreciar os ótimos desempenhos de Aprille Milo, em grande forma como "Madalena"; a vigorosa atuação do tenor Corneliu Murgu no papel título; e no papel de "Gerad" o nosso saudoso Fernando Teixeira, um barítono de voz absolutamente superior, sem favor algum um dos melhores do mundo em seu tempo e uma voz cujo timbre é raríssimo nos dias atuais, como se pode confirmar pelo vídeo.

Andrea Chénier - Umberto Giordano (completo)
Aprille Milo, Fernando Teixeira e Corneliu Murgu
Orquestra Sinfônica Brasileira regida por Eugene Kohn

sábado, 17 de novembro de 2012

Minha recordação de Maria Henriques


Maria Henriques intrepretando a Amnéris, da Aida, de Verdi.

Por Marcos Menescal

            Em 1970 eu tinha treze anos de idade e acompanhava com o maior entusiasmo a minha terceira temporada lírica como frequentador das vesperais do Teatro Municipal. Dois anos antes havia assistido a uma infeliz produção de “Il Trovatore” em que o tenor foi contestado pelo público. Nessa temporada, porém, o mesmo “Trovatore” me proporcionaria uma das mais inesquecíveis experiências artísticas da minha vida.

            Fui ao teatro num domingo à tarde, ansioso por ouvir mais uma vez a belíssima voz do soprano Ida Miccolis que interpretaria a Leonora. Eis que, no início do segundo ato, uma pequena figura de mulher, trajada com as roupas da cigana Azucena, faz jorrar uma torrente sonora como eu nunca havia escutado antes. Fiquei imediatamente subjugado pela potência e a beleza daquela voz e, no decorrer do espetáculo, à medida em que o drama se desenvolvia, fiquei eletrizado com a força da caracterização e a intensidade dramática da intérprete. Só mesmo a valentia do “Di quella pira” do tenor Zaccaria Marques e a incomparável beleza da aria da Miccolis no quarto ato puderam me libertar do encantamento hipnótico em a cigana havia me envolvido.

            Assim era Maria Henriques. Uma voz de mezzo-soprano dramático, verdiano, que só encontra paralelo nas principais vozes do seu registro no século XX. É preciso pensar na Barbieri, na Stignani, na Simionato, para evocar a voz de Maria Henriques.

 
Maria Henriques com Tito Schipa
Voz de extensão completa, capaz de enfrentar óperas ligeiras como “O Barbeiro de Sevilha” ou papéis de contralto como a Ulrica verdiana. Tinha um timbre quente, de rara beleza e uma potência inimaginável. Além disso, era uma intérprete dramática de grande poder magnético. No Teatro Municipal, desde que comecei a frequentar as óperas, só a italiana Bianca Berini a igualou como intérprete de Azucena.

            Dois anos depois, ainda no “Trovatore”, Maria Henriques se despedia do público do Municipal, depois de vinte e cinco anos de carreira. Quando o pano caiu ao final da primeira cena do terceiro ato, em que Azucena é reconhecida e presa, o público, levado ao delírio pela interpretação da cantora, chamava-a insistentemente pelo primeiro nome: Maria! Maria! Como a artista relutasse em comparecer sozinha à ribalta, foi carinhosamente empurrada pelo barítono Lourival Braga para receber uma ovação cuja lembrança ainda hoje me emociona.



Recordare - Requiem de Verdi 
Maria Henriques e Leda Coelho de Freitas



Maria Henriques - "Stride la vampa" - Il Trovatore

Um “caboclo” baixou no palco do Municipal! Em apuros o barítono Sylvio Vieira.

Sylvio Vieira no papel de "Iberê", da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes.
por Henrique Marques Porto

O teatro de ópera, mais do que qualquer outra expressão ou gênero artístico que acontece ao vivo, é pródigo em histórias, casos curiosos e episódios bizarros. Isso talvez se explique pelo fato de ser a ópera um espetáculo de certa forma muito perigoso para os muitos artistas nele envolvidos, principalmente para os protagonistas. A ópera se equilibra naquela desprotegida fronteira que separa o drama e a comédia; a tragédia e a pândega. Um pequeno acidente ou um leve exagero na interpretação pode jogar uma cena inteira para um lado ou outro. Então, o riso prevalece onde deveria existir a lágrima; e a gargalhada franca do público substitui a comoção. Ou vice-versa. 

Mas, às vezes, é um episódio dos bastidores que interfere na performance de um artista e define o destino de um desempenho. O público sequer toma conhecimento do que se passou, e aplaude ou demonstra desencanto, enquanto o mistério fica lá, escondido na meia luz das coxias. É a magia do teatro.

Sylvio Vieira, o grande barítono brasileiro que o Opera Sempre lembrou em recente matéria (leia aqui), protagonizou um desses episódios estranhos de bastidores que não chegam ao conhecimento público, mas que ficam misteriosamente vivos entre as sombras do fundo do palco e animam as conversas nas rodas formadas nos intervalos das óperas.

Sylvio era uma figura muito querida no teatro lírico brasileiro. Homem simples, um brasileiro típico. Era maçon, mas também fazia suas orações católicas. Era, portanto, católico e maçon, mas também adepto do espiritualismo kardecista. Era, assim, espiritualista, maçon e católico, mas também levava fé na umbanda e nos seus bravos Santos, Caboclos e entidades. Pode-se dizer que Sylvio Vieira era um barítono ecumênico.   

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Resgatando a história dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal

por Henrique Marques Porto


As inaugurações dos teatros Colón de Buenos Aires, em 1908, Municipal do Rio de Janeiro, em 1909, e Municipal de São Paulo, em 1911, estimularam e deram um novo e grande impulso às excursões anuais à América do Sul de grandes companhias líricas internacionais, lideradas pelos principais cantores e maestros da época. Com três grandes teatros nas três principais cidades da América do Sul, as empresas de Walter Mocchi, nascido em Torino em 1870 e falecido no Rio de Janeiro em 1955, ganharam impulso. Mocchi era um conhecido militante político, ligado ao partido socialista italiano, mas sempre manteve relações próximas com a música. Em 1898 casou com a soprano Emma Carelli, e depois viria a se casar com Bidu Sayão. Seus empreendimentos na América do Sul ganharam não apenas viabilidade econômica, mas se tornaram um negócio altamente lucrativo.

Walther Mocchi, em pé, com Mascagni
Mochi investia alto em suas aventuras no continente, cruzando o oceano atlântico em longas viagens que duravam dois ou três meses. Além dos solistas e maestros, trazia orquestra, coro, corpo de baile, cenários, figurinos e até os técnicos para as montagens. Os espetáculos vinham completos principalmente da Itália. Os teatros –mantidos pelos governos locais- eram alugados e os empresários, além dos ganhos com a venda de ingressos, ainda recebiam dinheiro referente ao valor dos contratos. Os cachês dos cantores eram baixos, na maioria dos casos, e o lucro era certo. As mega-turnês de Mocchi se concentraram, então, no eixo Rio-São Paulo-Buenos Aires, com eventuais esticadas ao Teatro Solis de Montevideu e ao Real de Caracas. 

Por duas décadas Walter Mocchi dominaria o mercado da música "clássica" na região, trazendo companhias de ópera, orquestras e solistas diversos, mas com atenção especial para a ópera. Gino Marinuzzi, grande regente, também organizou muitas excursões, mas não com a frequência infalível de Walther Mocchi. 

Em 1930, o lucrativo negócio dos empresários sofreu duríssimo golpe. O prefeito de Buenos Aires assinou decreto "nacionalizando" os espetáculos do Colón (no caso, municipalizou, mas Buenos Aires tinha status de “província autônoma”). O decreto tinha por objetivo principal estimular as produções locais de ópera, mas também procurava atender às reclamações do público portenho, insatisfeito com a predominância do repertório clássico italiano. Ao contrário dos brasileiros, os argentinos queriam mais títulos de Richard Wagner, Mozart e Richard Strauss no Colón, apesar de apreciarem com muita paixão a ópera e os cantores italianos.  

Para tanto, o decreto criou os corpos estáveis do Colón (orquestra, coro e balé) e endureceu as relações com os empresários. Sem o Colón, as empresas de Walther Mocchi ficavam economicamente inviáveis. A sábia decisão de Buenos Aires se refletiu imediatamente no Rio de Janeiro.

Em 1930, em plena "época de ouro da ópera", o TMRJ apresentou apenas dois espetáculos de ópera! Um deles financiado "pela Sra. Getúlio Vargas"  (Chaves Jr). Um total de apenas 109 apresentações. E nem tudo foi ópera. Num dos espetáculos foi apresentada uma "pantomima", de Fernand Beisen (?) com música de Mário Costa (?), com a participação de "alunos da escola de canto do maestro Salvatore Ruberti" (Chaves Jr.), bailarinos etc. Devem ter sido espetáculos de qualidade duvidosa. 

Em 1931 há alguma reação.  Em setembro daquele ano o prefeito Adolfo Bergamini assinou decreto repetindo em parte o que fez seu colega de Buenos Aires no ano anterior -criou os corpos estáveis do TM e nomeou os maestros e empresários Silvio Piergili e Salvatore Ruberti para organizá-los. Era o fim do reinado de Walther Mocchi. 

Salvatore Ruberti, Beniaminio Gigli e Silvio Piergili

Mas o decreto do Rio, ao contrário daquele que beneficiara o Colón, não "nacionalizou" nada, colocou dois empresários para organizar os corpos estáveis e estimulou apenas timidamente as produções nacionais, numa época em que já tínhamos alguns bons cantores. Carmem Gomes, Sylvio Vieira e Reis e Silva eram os mais destacados. Ainda assim, o TM apresentou apenas sete óperas, num total de 135 espetáculos. Mas trouxe ao Rio artistas importantes: Carlo Galeffi, Lili Pons, Giusepina Cobelli, Ninon Valin e os tenores George Thill e Galiano Masini. Com um detalhe que merece destaque: a "importação" de 54 coristas da Sociedade Coral Argentina. É a tal história, Decreto obriga, mas não cria um coro da noite para o dia. O Ballet e a Escola de Dança do TMRJ já existiam extraoficialmente desde os anos 1920, sob o comando de Maria Olenewa, que também atuava no Teatro de Revista -formou, inclusive, uma companhia própria com o cômico Pinto Filho. A Escola de Dança formava não apenas bailarinos clássicos, mas também dançarinos para o teatro popular que lotava todas as noites os muitos teatros da Praça Tiradentes e adjacências com burletas, revistas e comédias musicais. O TMRJ, como se vê, ultrapassava os limites do chamado “erudito” ou “clássico” e chegava até as camadas populares que pouco iam ao grande e luxuoso teatro que apresentava óperas, concertos, balés e teatro de prosa. O sonho de Artur Azevedo, que não viveu para ver a inauguração do teatro pelo qual tanto lutou, tornara-se realidade. 


A temporada organizada em 1931 por Piergili e Ruberti, italianos que amavam este país e adotaram o Brasil como sua segunda pátria, aconteceu em novembro e início de dezembro -sinal evidente de muito esforço e alguma improvisação. As temporadas internacionais aconteciam aqui quase sempre em junho, julho e agosto, verão na Europa. Mas Piergili e Ruberti conheciam profundamente o mercado internacional, tinham bons contatos e agiam rápido e com argúcia. A imprensa da época registra que Silvio Piergili conseguiu contratar Tito Schipa num navio ancorado em Santos, quando o tenor estava em trânsito para Buenos Aires. Informado da presença de Schipa no porto de Santos, Piergili deslocou-se rapidamente até lá e convenceu Schipa a cantar no Rio. O contrato para quatro apresentações (dois recitais e duas óperas encenadas) foi redigido e assinado numa mesa do bar do navio, num programa teatral que Piergili trazia no bolso! Nas décadas seguintes, a ópera no Brasil se confundiria com o nome e a presença desse maestro e empresário que veio ao Rio pela primeira vez em 1918.

Contudo, em 1932 o mercado internacional da ópera ainda estava incerto e voltamos ao fundo do poço. Outras duas únicas óperas, ambas com elencos inteiramente nacionais em 110 espetáculos, segundo o livro de Chaves Jr. Aparece pela primeira vez o nome do maestro italiano Jose Torre, um nome importante para a ópera do Rio e de São Paulo, cidade que ele escolheu para morar com a esposa, a mezzo soprano brasileira Julita Fonseca. Está claro que entre 1930 e 1932 não tínhamos estrutura própria para montar uma temporada lírica com dez títulos ou mais, ainda que tivéssemos alguns bons solistas. Por outro lado era enorme a dependência do Theatro Municipal em relação ao poder público e ao então Governo do Distrito Federal. Se o prefeito e os políticos estivessem de mau humor, nada de ópera e concertos. A participação do setor privado era, como hoje, mínima, reduzia-se à compra de frisas, camarotes, cadeiras cativas e assinaturas. 

Mas a partir de 1933 o Theatro Municipal consegue enfim se adaptar à nova realidade do mercado e se recupera. É então que os Corpos Estáveis começam a exibir ao público seus primeiros resultados e a sua importância. Neste ano, apesar de alguns problemas, o TM ofereceu ao Rio uma ótima temporada, das melhores que o velho theatro conheceu, com nomes do calibre de Claudia Muzio, Gilda Dalla Rizza, Giacomo Lauri-Volpi, Ebe Stgnani,  Carlo Galeffi, Beniaminio Gigli, o baixo Giacomo Vaghi (que viria  a se casar com a soprano brasileira Maria de Sá Earp), entre outros. Tivemos "Norma" com Muzio e Ebe Stgnani; Tosca, com Muzio, Alessandro Ziliani e Carlo Galeffi; Traviata, com Gilda Dalla Rizza, Ziliani e Galeffi; e um Andrea Chénier com Gigli, Muzio e Galeffi. Depoimento de quem testemunhou esta récita histórica afirma que foi o maior Andrea Chénier  já encenado no TM.

É em 1933 que chega ao Rio, vindo da Argentina, o maestro Santiago Guerra para assumir a direção do Coro. O maestro Guerra -o Guerrinha, como era carinhosamente chamado- permaneceria à frente do conjunto até 1975.

Como se pode ver, a criação dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal em setembro de 1931 não decorreu de nenhum vício administrativo, empreguismo, corporativismo ou outra motivação negativa. Sequer foi invenção nossa. A ideia foi copiada da Argentina e tinha objetivos claros: 1) necessiadade de adaptação à nova realidade do mercado mundial da ópera; e 2) estimular as produções locais e dar maior autonomia ao Theatro Municipal.

De fato, com orquestra, coro e balé próprios a ópera nacional se desenvolveu rapidamente e em 1937 o Municipal organizou a sua primeira temporada lírica com elencos inteiramente nacionais. Um nome merece destaque nesse verdadeiro salto de qualidade: Gabriela Besanzoni. Desde o início da década de 30 Gabriela vinha mantendo em sua mansão no Parque Lage cursos de canto, música e dramaturgia. De lá saíram, até fins dos anos 40, alguns dos mais importantes nomes do canto lírico nacional, como Violeta Coelho Neto de Freitas e Paulo Fortes, ambos alunos de Gabriela Besanzoni. Ela própria assumiu a direção artística do Theatro Municipal no biênio 1937/1938. Passamos a ter não uma, mas duas temporadas líricas anuais: uma nacional e outra internacional.  E assim seria até fins dos anos sessenta. 

Gabriela Besanzoni, figura dominante da cultura musical do Rio de Janeiro nos anos 1930

Mais adiante foi criada a Escola de Canto do TM (hoje extinta), que formou solistas e mais de uma geração de coristas, fomentando a produção artística local, mas sempre valorizando o convívio com os artistas estrangeiros. Por mais de trinta anos a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal acostumou-se a ser conduzida por grandes regentes em óperas e concertos. O resultado foi que nos anos 60 a Orquestra do TMRJ era o melhor conjunto sinfônico do país, com músicos de primeiríssima qualidade ocupando suas estantes. Só para lembrar, podem ser citados Paulo Moura, Noel Devos e os violoncelistas Watson Clis, Peter Dauelsberg e Eugem Ranevisky, entre muitos outros. O leitor pode imaginar o luxo que era ver e ouvir, por exemplo, a introdução da ária “E lucevan le stelle”, da Tosca de Puccini, executada pela clarineta de Paulo Moura –um som que quem escreve ainda guarda nos ouvidos e na memória.

Os corpos estáveis do Theatro Municipal foram fundamentais para o desenvolvimento da arte lírica no Rio de Janeiro e mesmo em outros Estados. A existência da orquestra, do coro e do balé viabilizaram diversas iniciativas independentes que promoviam montagens de óperas que mesclavam cantores profissionais, iniciantes e artistas amadores. Violeta Coelho Neto de Freitas, a grande soprano brasileira (para muitos uma voz superior à de Bidu Sayão) estreou numa dessas empresas em novembro de 1934, no Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca, na zona norte do Rio. O tradicional clube tijucano organizou naquele ano uma temporada lírica com quatro títulos: “Cavaleria Rusticana”, “I Pagliacci”, “Barbeiro de Sevilha” e uma grande produção, “Aida”. Os espetáculos foram romanticamente ao ar livre, num bosque que existia ao lado do Clube. No elenco nomes como os de Sylvio Vieira, Asdrubal Lima, o tenor Machado Del Negri, o baixo Lisandro Sergenti ou o barítono Ernesto De Marco –todos cantores profissionais- ao lado de estreantes e alguns amadores. À frente da empreitada estava um nome que quem escreve conhece bem: o crítico Henrique Marques Porto, meu pai, que na época era também Diretor Social do Tijuca Tênis Clube. Incentivada por ele, Violeta estreou na “Cavaleria Rusticana” e em 1938 faria a sua estreia no Theatro Municipal, pelas mãos de Gabriela Besanzoni, no papel que marcaria sua carreira, “Madame Butterfly”, ao lado de Antônio Salvarezza (tenor), Julita Fonseca (mezzo) e Sylvio Vieira. Ao se despedir dos palcos em 1959, Violeta Coelho Neto de Freitas lembrou de sua estreia em 1934 e escreveu numa foto que dedicou a Marques Porto: “Ao meu descobridor o carinho e o agradecimento de...”

Nota do jornal "Diário Carioca" de 11 de novembro de 1934

O ousado empreendimento de 1934 do Tijuca Tênis Clube, que não foi único, e tampouco isolado, só foi viável porque o Theatro Municipal cedeu a orquestra, o coro e o balé, além de parte dos cenários e figurinos, maestros, encenadores e técnicos. 

Hoje, os grupos de jovens cantores encenam óperas de forma precária, com muito esforço, acompanhamento apenas de piano, cenários e figurinos improvisados, em espetáculos muitas vezes arriscados que podem comprometer o futuro de carreiras ainda nascentes. O que faz o TMRJ diante disso? Nada. Fecha as portas, dá de ombros. Cego, não vê o futuro. Paralisado, não consegue produzir cultura, recriar-se, transformar-se. 

A atual crise de produção do Theatro Municipal pode ser resolvida consultando a própria história do teatro. Mas é preciso conhecer essa história e se debruçar sobre ela para identificar os caminhos do presente e do futuro. 

Os Corpos Estáveis do TMRJ não são um problema, como alguns equivocados maldosamente afirmam. Muito ao contrário, são uma solução! Um caminho a seguir é dar-lhes condições dignas de trabalho, meios para a dedicação integral à arte e promover profissionalmente cada um de seus membros, sejam músicos, coristas ou bailarinos. Essa é uma política cultural que não onera os cofres públicos, ao contrário de alguns projetos milionários e ineficientes. Depende mais da boa vontade, do compromisso sincero com a cultura, com a música, a ópera e o balé, e da inteligência e determinação dos administradores públicos. 

Fontes:
1) Edgar de Brito Chaves Junior, "Memórias e Glórias de um Teatro"
2) Arquivo pessoal do autor.