segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Cleofe Person de Mattos 100 anos




 Referência musical e também um referencial de identidade feminina.

 por Comba Marques Porto

Neste dezembro de calores escaldantes e chuvas torrenciais é de se invocar as boas tradições cariocas, nas quais, quiçá, se possa encontrar alento para tocar o barco, sem submergir à vaga das dificuldades típicas desta caótica cidade, metida a mega, em que vai se transformando o Rio de Janeiro. Abrigo-me, então, na música e a tenho como mais do que um refúgio -em verdade, uma espécie de guia de sobrevivência. No universo da música estão os meus marcos de evolução cultural e espiritual. Preciosos, por exemplo, foram-me os anos passados como soprano da Associação de Canto Coral junto à querida Cleofe Person de Mattos, musicóloga, regente, professora, pesquisadora e escritora.

No dia dezessete deste mês ocorre o centenário do nascimento de “Dona Cleofe”, como ela era carinhosamente chamada pelas tantas pessoas que a amavam. Esta data passa quase despercebida aqui no Rio. Mas, talvez seja bem lembrada em outras cercanias. Por exemplo, na Alemanha onde nasceu, vive e trabalha o maestro Helmut Rilling, amigo e admirador de Cleofe, diretor da Internationale Bachakademie Sttutgart, desde 1981. Durante os dois últimos anos de Cleofe como regente e diretora artística da Associação de Canto Coral, ela se dedicou a preparar seu coro para o projeto de realizar no Rio, com Helmut Rilling, uma Bachakademie, que consistiria em uma semana de estudos sobre a Missa em Si Menor, de Bach, uma espécie de master class para alunos de todo o país -cantoras, cantores, regentes, musicistas- com a apresentação da obra completa para o grande público no Theatro Municipal no encerramento do evento. Projeto grandioso como grandiosa era a visão de Da. Cleofe quanto à importância do investimento em cultura, particularmente em música. Com a saúde já fragilizada, em 1994, Da. Cleofe teve de se afastar da Associação, o que fez com imensa tristeza, inclusive pela impossibilidade de realizar o projeto com o maestro Rilling. Desde então não mais voltou a atuar. Cleofe não faria por menos: terminou sua vida artística com Johann Sebastian Bach. Sorte de quem teve a inteligência de dar valor aos ensaios da Missa sob a regência de Cleofe durante os dois últimos anos de sua atividade, de quem redobrou a atenção a cada comentário sobre a estética da obra, a cada detalhe por ela ressaltado sobre como cantar Bach, e me lembro de que ela certa vez frisou: “não é o mesmo que cantar o Mario Cavaradossi”, em alusão à ópera, gênero com o qual não muito se identificava. Curiosamente, foi sob sua orientação e inspiração que se formou aquele que em 1999 assumiu a direção do Coro de Theatro Municipal, um conjunto que atua principalmente em óperas, o maestro Maurílio da Costa. O domínio que tinha sobre os segredos da regência coral ele adquiriu precisamente auxiliando Cleofe nos ensaios da Associação de Canto Coral, onde ganhou experiência e desenvolveu seu talento para a direção e a prática da música em conjunto. Para tristeza do meio musical do Rio, o maestro Maurílio despediu-se do mundo no último oito de dezembro, mês do centenário de nascimento de Cleofe. 

Em 1941, ao concluir sua graduação em composição e regência na Escola Nacional de Música, hoje Escola de Música da UFRJ, Cleofe passou a fazer pesquisas sobre a música folclórica, sem esquecer de atender ao pedido do maestro Heitor Villa-Lobos de que se dedicasse também ao canto coral. Assim, em 1941 criou o Coro Feminino Pró-Música. Nos anos seguintes, Cleofe passou a formar o coro misto e, em 1946 ocorre a sessão solene de criação da Associação de Canto Coral no Conservatório Brasileiro de Música. Por quase cinquenta anos ininterruptos, como diretora artística da Associação de Canto Coral, Cleofe manteve vivo o seu laboratório nos proveitosos ensaios do coro, sempre às terças e quintas-feiras, ao cair da tarde. O trabalho de Cleofe resultou, igualmente, em valiosas gravações de obras de importantes compositores brasileiros como Heitor Villa-Lobos (1987-1959), Francisco Mignone (1897-1986) e Padre José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830).

Não lhe tardou ganhar respeitabilidade junto a renomados regentes nacionais e internacionais, tendo, inclusive levado o coro em tournée pela Europa na década de 60. Na cidade do Rio de Janeiro, a Associação participou de incontáveis e inesquecíveis concertos como o realizado em 1950 em homenagem ao 2º centenário de morte do Bach, sob a regência do maestro Hans-Joachim Koellreutter; como o ocorrido na Igreja da Candelária, em 1963, em que Igor Stravinsky regeu a sua “Missa de 1948”; como os do Ciclos Bach, ocorridos entre 1966 e 1970, com o maestro Karl Richter, então titular da Orquestra Bach de Munique. O maestro confiou à Cleofe a missão de preparar o coro para as execuções da Missa em Si Menor e da Paixão Segundo São Matheus, chegando ao Rio poucos dias antes do evento e encontrando o coro prontíssimo para dar conta de todas as dificuldades e belezas das respectivas obras.

Curiosamente, a Associação de Canto Coral veio a ter sua sede fixada no mesmo endereço da Rua das Marrecas (nº 40) onde originariamente funcionou a escola de música do Padre José Maurício Nunes Garcia, cuja obra mobilizou Cleofe a realizar apuradas pesquisas, do que resultou a publicação em 1970 do “Catálogo Temático das Obras do Padre José Maurício Nunes Garcia” (edição pelo Conselho Nacional de Cultura do MEC, 1970). Cleofe parte do profundo conhecimento da obra do Padre José Maurício e se desdobra em pesquisas sobre a vida do mestre. Em 1997 a Biblioteca Nacional publica “José Maurício Nunes Garcia – Biografia”. Com esta obra, Cleofe arremata sua brilhante carreira dedicada à música.   

Mesmo sem jamais ter erguido bandeiras ideológicas, Cleofe Person de Mattos, em significativos aspectos, conduziu-se em sentido oposto aos padrões comportamentais da mulher de sua época. Afinou sua vida pela incessante busca de conhecimentos, pelo amor à arte, à música. Aos vinte e um anos já estudava música com Oscar Guanabarino (1851-1937), crítico de arte, pianista e dramaturgo. Aos vinte e quatro anos, já concluía cursos de língua italiana e de língua alemã. Enquanto a maioria das moçoilas cariocas perdia-se em devaneios com a realização de um  casamento indissolúvel, Cleofe, aos vinte e cinco anos, regia a Sinfonia n° 7 de Beethoven, em concerto oficial da Escola Nacional de Música. Não era pouco para uma jovem carioca dos anos 1930. 

Fiel às suas metas, Cleofe chega à maturidade como uma mulher independente, forte, apesar de sua aparente fragilidade. Sincera, rigorosa, mas não menos sensível. Não admitia namoricos pelos corredores da Associação. Ao seu modo, soube conduzir a convivência na Associação por longos anos, criando ali um recanto de aprendizado musical, de elevação espiritual e de troca de gentilezas. Mais que regente, ela era a líder natural daquela comunidade artística, ampliada pela constante presença de visitantes -ex-alunos, musicistas e acadêmicos em busca de orientação. Em dia de aniversário de alguém do coro, o ensaio começava pela execução a quatro vozes da saudação escrita por Villa-Lobos com a intenção de que se transformasse no “parabéns pra você” brasileiro -“saudamos o grande dia que tu hoje comemoras...”.


Cleofe detestava louvações e lisonjas. Impacientava-se com burrices e frivolidades. Tinha uma beleza, uma elegância, uma autenticidade que era mesmo só dela. Na década de oitenta, quando a conheci, ainda usava luvas de lã no inverno e de linha no verão. Era fiel ao seu estilo, ao seu livre pensar. Não era mulher de modismos. Só cumprimentava dando “Bom dia”, fosse noite ou fosse dia. Ficamos amigas. Ao fim dos ensaios, eu a deixava à portaria do prédio onde residia sobre a Taberna da Glória. “-Vamos tomar um chopinho? Um só?” -ela perguntava, assim que eu parava o carro. E era um só mesmo -prova de sua determinação.


Por seu jeito em tudo incomum, por suas extraordinárias qualidades intelectuais, Cleofe Person de Mattos criou um novo referencial de identidade feminina. Que sua lisura, sua integridade, sua sensibilidade, sua inteligência, sua independência sejam exemplos de conduta para mulheres e homens que acreditam na educação e na cultura como elementos fundamentais ao aprimoramento da condição humana.

Recomendo um passeio pelo site Acervo Cleofe Person de Mattos (http://www.acpm.com.br/), do Programa Petrobras Cultural, onde muito mais se pode saber sobre a vida e obra da saudosa mestra. 



Matinas de Finados - Padre José Maurício.
Associação de Canto Coral. 
Regência de Cleofe Person de Mattos