segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Cleofe Person de Mattos 100 anos




 Referência musical e também um referencial de identidade feminina.

 por Comba Marques Porto

Neste dezembro de calores escaldantes e chuvas torrenciais é de se invocar as boas tradições cariocas, nas quais, quiçá, se possa encontrar alento para tocar o barco, sem submergir à vaga das dificuldades típicas desta caótica cidade, metida a mega, em que vai se transformando o Rio de Janeiro. Abrigo-me, então, na música e a tenho como mais do que um refúgio -em verdade, uma espécie de guia de sobrevivência. No universo da música estão os meus marcos de evolução cultural e espiritual. Preciosos, por exemplo, foram-me os anos passados como soprano da Associação de Canto Coral junto à querida Cleofe Person de Mattos, musicóloga, regente, professora, pesquisadora e escritora.

No dia dezessete deste mês ocorre o centenário do nascimento de “Dona Cleofe”, como ela era carinhosamente chamada pelas tantas pessoas que a amavam. Esta data passa quase despercebida aqui no Rio. Mas, talvez seja bem lembrada em outras cercanias. Por exemplo, na Alemanha onde nasceu, vive e trabalha o maestro Helmut Rilling, amigo e admirador de Cleofe, diretor da Internationale Bachakademie Sttutgart, desde 1981. Durante os dois últimos anos de Cleofe como regente e diretora artística da Associação de Canto Coral, ela se dedicou a preparar seu coro para o projeto de realizar no Rio, com Helmut Rilling, uma Bachakademie, que consistiria em uma semana de estudos sobre a Missa em Si Menor, de Bach, uma espécie de master class para alunos de todo o país -cantoras, cantores, regentes, musicistas- com a apresentação da obra completa para o grande público no Theatro Municipal no encerramento do evento. Projeto grandioso como grandiosa era a visão de Da. Cleofe quanto à importância do investimento em cultura, particularmente em música. Com a saúde já fragilizada, em 1994, Da. Cleofe teve de se afastar da Associação, o que fez com imensa tristeza, inclusive pela impossibilidade de realizar o projeto com o maestro Rilling. Desde então não mais voltou a atuar. Cleofe não faria por menos: terminou sua vida artística com Johann Sebastian Bach. Sorte de quem teve a inteligência de dar valor aos ensaios da Missa sob a regência de Cleofe durante os dois últimos anos de sua atividade, de quem redobrou a atenção a cada comentário sobre a estética da obra, a cada detalhe por ela ressaltado sobre como cantar Bach, e me lembro de que ela certa vez frisou: “não é o mesmo que cantar o Mario Cavaradossi”, em alusão à ópera, gênero com o qual não muito se identificava. Curiosamente, foi sob sua orientação e inspiração que se formou aquele que em 1999 assumiu a direção do Coro de Theatro Municipal, um conjunto que atua principalmente em óperas, o maestro Maurílio da Costa. O domínio que tinha sobre os segredos da regência coral ele adquiriu precisamente auxiliando Cleofe nos ensaios da Associação de Canto Coral, onde ganhou experiência e desenvolveu seu talento para a direção e a prática da música em conjunto. Para tristeza do meio musical do Rio, o maestro Maurílio despediu-se do mundo no último oito de dezembro, mês do centenário de nascimento de Cleofe. 

Em 1941, ao concluir sua graduação em composição e regência na Escola Nacional de Música, hoje Escola de Música da UFRJ, Cleofe passou a fazer pesquisas sobre a música folclórica, sem esquecer de atender ao pedido do maestro Heitor Villa-Lobos de que se dedicasse também ao canto coral. Assim, em 1941 criou o Coro Feminino Pró-Música. Nos anos seguintes, Cleofe passou a formar o coro misto e, em 1946 ocorre a sessão solene de criação da Associação de Canto Coral no Conservatório Brasileiro de Música. Por quase cinquenta anos ininterruptos, como diretora artística da Associação de Canto Coral, Cleofe manteve vivo o seu laboratório nos proveitosos ensaios do coro, sempre às terças e quintas-feiras, ao cair da tarde. O trabalho de Cleofe resultou, igualmente, em valiosas gravações de obras de importantes compositores brasileiros como Heitor Villa-Lobos (1987-1959), Francisco Mignone (1897-1986) e Padre José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830).

Não lhe tardou ganhar respeitabilidade junto a renomados regentes nacionais e internacionais, tendo, inclusive levado o coro em tournée pela Europa na década de 60. Na cidade do Rio de Janeiro, a Associação participou de incontáveis e inesquecíveis concertos como o realizado em 1950 em homenagem ao 2º centenário de morte do Bach, sob a regência do maestro Hans-Joachim Koellreutter; como o ocorrido na Igreja da Candelária, em 1963, em que Igor Stravinsky regeu a sua “Missa de 1948”; como os do Ciclos Bach, ocorridos entre 1966 e 1970, com o maestro Karl Richter, então titular da Orquestra Bach de Munique. O maestro confiou à Cleofe a missão de preparar o coro para as execuções da Missa em Si Menor e da Paixão Segundo São Matheus, chegando ao Rio poucos dias antes do evento e encontrando o coro prontíssimo para dar conta de todas as dificuldades e belezas das respectivas obras.

Curiosamente, a Associação de Canto Coral veio a ter sua sede fixada no mesmo endereço da Rua das Marrecas (nº 40) onde originariamente funcionou a escola de música do Padre José Maurício Nunes Garcia, cuja obra mobilizou Cleofe a realizar apuradas pesquisas, do que resultou a publicação em 1970 do “Catálogo Temático das Obras do Padre José Maurício Nunes Garcia” (edição pelo Conselho Nacional de Cultura do MEC, 1970). Cleofe parte do profundo conhecimento da obra do Padre José Maurício e se desdobra em pesquisas sobre a vida do mestre. Em 1997 a Biblioteca Nacional publica “José Maurício Nunes Garcia – Biografia”. Com esta obra, Cleofe arremata sua brilhante carreira dedicada à música.   

Mesmo sem jamais ter erguido bandeiras ideológicas, Cleofe Person de Mattos, em significativos aspectos, conduziu-se em sentido oposto aos padrões comportamentais da mulher de sua época. Afinou sua vida pela incessante busca de conhecimentos, pelo amor à arte, à música. Aos vinte e um anos já estudava música com Oscar Guanabarino (1851-1937), crítico de arte, pianista e dramaturgo. Aos vinte e quatro anos, já concluía cursos de língua italiana e de língua alemã. Enquanto a maioria das moçoilas cariocas perdia-se em devaneios com a realização de um  casamento indissolúvel, Cleofe, aos vinte e cinco anos, regia a Sinfonia n° 7 de Beethoven, em concerto oficial da Escola Nacional de Música. Não era pouco para uma jovem carioca dos anos 1930. 

Fiel às suas metas, Cleofe chega à maturidade como uma mulher independente, forte, apesar de sua aparente fragilidade. Sincera, rigorosa, mas não menos sensível. Não admitia namoricos pelos corredores da Associação. Ao seu modo, soube conduzir a convivência na Associação por longos anos, criando ali um recanto de aprendizado musical, de elevação espiritual e de troca de gentilezas. Mais que regente, ela era a líder natural daquela comunidade artística, ampliada pela constante presença de visitantes -ex-alunos, musicistas e acadêmicos em busca de orientação. Em dia de aniversário de alguém do coro, o ensaio começava pela execução a quatro vozes da saudação escrita por Villa-Lobos com a intenção de que se transformasse no “parabéns pra você” brasileiro -“saudamos o grande dia que tu hoje comemoras...”.


Cleofe detestava louvações e lisonjas. Impacientava-se com burrices e frivolidades. Tinha uma beleza, uma elegância, uma autenticidade que era mesmo só dela. Na década de oitenta, quando a conheci, ainda usava luvas de lã no inverno e de linha no verão. Era fiel ao seu estilo, ao seu livre pensar. Não era mulher de modismos. Só cumprimentava dando “Bom dia”, fosse noite ou fosse dia. Ficamos amigas. Ao fim dos ensaios, eu a deixava à portaria do prédio onde residia sobre a Taberna da Glória. “-Vamos tomar um chopinho? Um só?” -ela perguntava, assim que eu parava o carro. E era um só mesmo -prova de sua determinação.


Por seu jeito em tudo incomum, por suas extraordinárias qualidades intelectuais, Cleofe Person de Mattos criou um novo referencial de identidade feminina. Que sua lisura, sua integridade, sua sensibilidade, sua inteligência, sua independência sejam exemplos de conduta para mulheres e homens que acreditam na educação e na cultura como elementos fundamentais ao aprimoramento da condição humana.

Recomendo um passeio pelo site Acervo Cleofe Person de Mattos (http://www.acpm.com.br/), do Programa Petrobras Cultural, onde muito mais se pode saber sobre a vida e obra da saudosa mestra. 



Matinas de Finados - Padre José Maurício.
Associação de Canto Coral. 
Regência de Cleofe Person de Mattos

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Arte do Canto



Maestro, empresário, musicólogo, ensaísta e jornalista, o maestro Salvatore Ruberti é um dos mais importantes nomes da história da ópera no Brasil. Junto com Silvio Piergile foi um dos organizadores dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Seu nome está ligado a temporadas líricas memoráveis. Por 17 anos foi Diretor Artístico do TMRJ e estava a frente da última grande temporada internacional realizada no Rio, em 1964. Como ensaísta publicou livros sobre Carlos Gomes que são referências indispensáveis, entre eles "Carlos Gomes" (Irmãos Vitale, 1955); "Carlos Gomes, uma obra em foco", com Mário de Andrade, Andrade Muricy e outros (Funarte, 1987); “O Ignorado Carlos Gomes” (Cultura, 1971) e “O Guarany e Colombo, de Carlos Gomes” (Editora Laudes, 1972), e uma infinidade de artigos como o curioso “Maneira pela qual NÃO se deve cantar ‘Come serenamente el mar’, de Lo Schiavo” (publicado na Revista Brasileira de Música. 1940). Ruberti era italiano e amava o Brasil, onde chegou pela primeira vez em 1918, como maestro substituto de uma companhia lírica. Aqui ficou e naturalizou-se cidadão brasileiro. No final da vida, em 1974, batalhava na imprensa pela ópera nacional e pela reedição das obras de Carlos Gomes. Com muita justiça, o maestro Ruberti dá nome a uma praça em Campinas. Por cerca de vinte anos assinou a coluna “Música” no extinto Diário da Noite, um dos jornais mais influentes do Brasil no século passado. Muito do que escreveu é ainda atual. Ou atualíssimo, como este “Arte do Canto”. (Henrique Marques Porto)

Arte do Canto

O que deveriam conhecer os “novatos” sobre a arte do canto.

Savatore Ruberti

Asselin(*), o notável pensador francês, disse que: “as duas categorias de indivíduos insuportáveis são: os homens que creem serem gênios e as mulheres que se acreditam irresistíveis”. Evidentemente ele não conhecia os cantores e, de modo especial, os cantores falhados, de outro modo os teria posto no topo da lista de sua coleção de insuportáveis. Porque todos, indistintamente todos, acreditam que são dotados de qualidades excepcionais -inatas, dizem eles- que os indicam para as mais importantes interpretações dramáticas. Ainda não aprenderam a emitir algum som que preste e já sonham e querem cantar óperas, e as mais difíceis e mais inadequadas a seus meios vocais.

“Eu sinto fortemente as personagens de Manon Lescaut e Violeta, de Tosca e de Norma” –diz uma- e tenho certeza de as poder interpretar magnificamente”.

Entretanto não sabe que suas qualidades vocais estão muito longe das que se exige daquelas partes; e se, acaso, ela sente aquelas personagens, o público não as individualizará nunca se forem interpretadas por ela. Para cantar o papel de Manon Lescaut, de Puccini, é preciso ter voz para prodigalizar, assim como para a Tosca e para a Norma; é necessário técnica perfeita, conhecimento de cambiantes, de entonação, musicalidade miraculosa. Quanto á Traviata, todo cuidado é pouco no adestramento da voz, principalmente quando se pensa que as dificuldades não são somente as que derivam da agilidade, mas ainda do acabamento daquelas melodias que são pedaços d’alma sobre as asas do canto.

As óperas foram compostas para serem cantadas e não para serem sussurradas ou berradas. Verdi, Puccini, Bizet, Bellini queriam o canto de uma bela voz para suas melodias, assim como requeriam aos instrumentistas sons belos e harmoniosos. Quando Wagner pedia à orquestra para “dégager la melodie” fazia-o com a intenção de ver aparecer uma fonte especial de beleza sonora através das harmonias instrumentais; não pensava sequer na possibilidade de ter que suportar um violino surdo, um oboé estridente, uma clarineta irritante; antes e acima de tudo queria um belo som para determinada frase musical, e ao mesmo tempo pedia um volume sonoro capaz de elevar-se da trama sinfônica para poder-lhe sobressair, para dominar.

Não é bastante ter-se por soprano dramático; é preciso não tornar-se soprano trágico, e a tragédia dessa voz recai sobre a ópera e a aniquila inevitavelmente.

Numa ária, num dueto, numa ópera enfim, não existem pontos difíceis, passagens perigosas, notas muito graves ou muito agudas. Há unicamente a música, que deve ser executada, interpretada como foi escrita pelo autor e, portanto, sem restrições de técnica ou de voz.

É inútil sofismar, afirmando que a Traviata está mal escrita para a voz de soprano, porquanto no primeiro ato se requer um soprano ligeiro ao passo que no resto da ópera é necessária uma voz mais ampla e robusta, isto é, pelo menos a de um soprano lírico. São quezílias estas de quem não tem voz verdadeiramente teatral. A Patti (Adelina Patti) cantava a Traviata e a Aida, e Verdi ficava contentíssimo. Por que? Porque a Patti tinha uma voz de teatro e não um fiozinho de voz, e depois porque sabia deveras cantar.

Quando me dizem que o final da ária de Madame Butterfly, “Um bel di vedremo”, é perigoso por causa da palavra “aspetto” em um si bemol, dá-me vontade de rir. E pergunto de mim para mim: mas será possível que um soprano que deveria cantar bem a entrada de Cio-Cio-San, no primeiro ato, emitindo um belo re bemol superagudo e finalizar o dueto do mesmo ato com um do sustenido, também superagudo, deve preocupar-se com um si bemol agudo, que tem as duas melhores vogais para o canto –“e” e “o”?

É verdade que se me objetará que não são muito fáceis nem aquela entrada nem o final. Mas então responderei que não se deve cantar Madame Butterfly quando não se é dotada de notas agudas de fácil emissão e volume amplo, e quando não se tem uma boa escola de canto; assim como não se deve ter a petulância de querer cantar Norma ou Manon Lescaut, ou Tosca ou Trovador, se a voz não é de bom volume. Seria o mesmo pretender executar com o violino a parte de um violoncello, ou com o oboé a de um clarone.

Cada papel deve ser cantado com voz adequada. Forçar a natureza, impondo esforços excessivos para a própria voz, significa condenar os próprios dotes vocais a um deperecimento cada vez mais acentuado, reduzindo o volume, a extensão da gama, fazendo aparecer inesperadamente aquele chevrotement que é o fim da atividade artística de muitíssimos cantores.

Olhando em torno, de casos patológicos de tal gênero que acabo de indicar, descobre-se uma porção. Quantas esperanças perdidas, quantos sonhos desfeitos, quantas vozes destruídas!

Nenhum exagero existe nestas minhas palavras. É uma verdade, amarga se quiserem, mas infelizmente confirmada a cada dia e do modo mais inexorável.

(Publicado no “Diário da Noite”, na coluna “Música”, em 21 de junho de 1951)


(*) Pode ser uma referência a Olivar Asselin -ensaísta, pensador, polemista e jornalista- que não era francês, mas canadense.  

Fonte:
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional 
http://hemerotecadigital.bn.br/

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

"Billy Budd", o mergulho de Benjamin Britten na “narrativa interior”.





“...a maldade é depravação da natureza, e a natureza ‘natural’ é mais forte do que a natureza depravada e pervertida”.
(Hannah Arendt)

por Henrique Marques Porto

“Billy Budd, marinheiro”, subtítulo “Uma narrativa interior”. Foi assim que o americano Herman Melville (1819-1891) nomeou sua última e inacabada obra -um conto ou romance curto, ou ainda novela, segundo alguns. O manuscrito foi achado depois de sua morte e só foi publicado nos Estados Unidos em 1924. Apesar de ambientado na Europa, no contexto de uma guerra entre Inglaterra e França, o conto parece que tinha outro endereço: a nascente república americana e sua sociedade ainda em formação.

Billy Budd (ou "Baby Budd", como o personagem é tratado) é uma história cuja trama aborda praticamente tudo - o Mal versus o Bem; o Poder; o Estado; o Direito, a Justiça e a Lei; os mistérios da alma humana; as relações interpessoais e coletivas; a inveja; os desejos reprimidos e até o erotismo.

O centro dos conflitos nos quais se envolve o personagem Budd é, sem dúvida, a luta do bem contra o mal. Mas não faltam subtextos ao conto de Melville, o que enseja várias leituras e interpretações. O mais aconselhável, contudo, é ficar com todas elas, porque os temas estão interligados. No pano de fundo da história sopram os ventos dos ideais da Revolução Francesa e a ideia-força “o homem bom por natureza”

Hannah Arendt recorreu a “Billy Budd” em seus estudos sobre o Mal (a “banalidade do mal”). Melhor citá-la, deixando ao leitor a reflexão.

“Não há nada de trágico no confronto em si (Claggart x Billy Budd); a bondade natural, embora “tartamudeie” e não se consiga fazer ouvir e entender, é mais forte do que a maldade porque a maldade é depravação da natureza, e a natureza “natural” é mais forte do que a natureza depravada e pervertida. Essa parte da história é grandiosa porque a bondade, por ser parte da “natureza”, não age com brandura, mas se afirma com força e até com violência, de maneira que ficamos convencidos: apenas o ato de violência com que Billy Budd golpeia até a morte o homem que levantou falso testemunho contra ele é cabível, eliminando a “depravação” da natureza. (...) Nas palavras de Melville, a compaixão é incapaz de estabelecer “instituições duradouras”.

Foi nesse mar tempestuoso e de águas tão profundas -a “narrativa interior”- que Benjamim Britten lançou sua música. Mas, antes de tratar da ópera, e até para conhecê-la melhor, são necessários alguns comentários sobre Herman Melville, mais conhecido do público pelo clássico “Moby Dick”.

Em Billy Budd, de certa forma Melville retoma personagem anterior. Ele próprio. Em 1849 publicara o livro autobiográfico “Redburn, his first Voyage” (Redburn é nome de um dos personagens de Billy Budd), onde narra sua experiência como grumete. O jovem e refinado Melville conviveu com o ambiente rude, grosseiro e não raro sórdido, de um navio. Nesse livro e em outros –inclusive em Billy Budd- há referências claras a intenções ou a relações homoeróticas, como menções a encontros furtivos entre marujos sob as velas e nos cantos escuros do navio. Já em “Moby Dick” ele aborda a homofobia, relacionando-a ao racismo.

Com audácia e muita habilidade na escrita, Herman Melville foi dos poucos autores de sua época a abordar o tema da homossexualidade e da homofobia, tabus absolutos no século dezenove. Segundo várias fontes, Jean Genet teria se inspirado em Billy Budd para escrever o ácido “Querelle de Brest”. Diga-se a propósito que Melville era homossexual, condição que encobria nos véus de um casamento e filhos. Benjamin Britten também era. Seu companheiro de toda a vida, e também parceiro musical, foi o tenor inglês Peter Pears, que conheceu em 1936, e que atuou na estreia de Billy Budd. E também um dos libretistas, Edward M. Forster, era homossexual. Ora, direis, com tantos gays na parceria, parece claro que Billy Budd pode ser definida como uma ópera gay. E de fato já foram realizadas montagens da ópera que acentuam esta abordagem.

Mas é preciso ter alguma prudência na classificação. A trama é tão densa que rejeita simplificações, sob o risco de cair na cilada de identificar uma floresta tendo apenas a visão de uma única árvore. De fato, não há no texto, tanto no conto como na ópera, qualquer menção direta sobre a sexualidade de Budd ou de qualquer outro personagem. A bombordo ou a estibordo.

No entanto, a atração de natureza homoerótica é sugerida no conto de Melville e foi mantida na ópera, ainda que discretamente. A começar pela inegável sensualidade da descrição do personagem central, Budd, e as reações dúbias ou de estranhamento que sua presença provoca na tripulação. Pode-se dizer que também a homofobia está presente como subtexto, como nas referências feitas por Glaggart a respeito da "necessidade" de eliminar o “bonitão” Baby Budd. E a homofobia é, em essência, uma expressão do “mal”, tal como referido por Hannah Arendt, e também uma forma de exercício do poder, de dominação ideológica e cultural, e meio de controle social. É igualmente uma expressão da alma e do caráter humanos.

A trama e a ópera

“Baby Budd” é bem jovem, não sabe a idade que tem, nem qual é sua origem. É bonito, puro, sensível, bom e dono de uma franqueza e sinceridade, aparentemente ingênuas, que são perturbadoras para o ambiente de um navio, onde valem mais a sabujice, a esperteza e a violência. É marinheiro de um navio mercante cujo nome é “Direitos Humanos”. Um oficial do navio de guerra inglês “Indomável” (no conto de Melville “Bellipotent”, que em arcaico significa “Poderoso na Guerra”) escolhe Billy para servir no navio de guerra. Os nomes desses navios -quase antônimos- dizem muito sobre o conteúdo da trama. Na nova embarcação Budd logo atrai as atenções de todos, especialmente do contramestre Claggart homem rancoroso, de origem misteriosa e índole perversa. Contudo, o também misterioso Billy Budd é frágil. É gago, mas não sofre de uma gagueira qualquer. Ele só gagueja diante de situações difíceis ou sob grande pressão psicológica, quando não sabe explicar com palavras a situação com a qual se confronta. Claggart é seu oposto e, por manifestação do mal, inveja ou por desejo reprimido acusa Billy de fomentar um motim. Acareado com o acusador, Budd não consegue se defender com palavras, gagueja muito e, por fim, enfurecido se expressa com violento soco que mata o contramestre. O capitão Fairfax Vere (Vere, do latin verus, veritas) assiste a tudo e tem íntima convicção sobre a inocência de Billy. Mas, a compaixão é incapaz de estabelecer “instituições duradouras”. E é em nome destas instituições, que Vere personifica, e não propriamente por matar Claggart, que Billy Budd é condenado à morte por enforcamento. Antes de morrer grita: “-Viva o capitão Vere!” Uma espécie de brado de inocência e libertação. Vere passará o resto de seus dias remoendo-se em culpas pela morte do jovem belo, sincero, puro e desafiador. É ele quem conta a história de Billy Budd -e seus próprios dramas de consciência- no Prólogo e no Epílogo da ópera.

Benjamim Britten poderia ter naufragado nesse mar de temas, repleto de subtextos. Não compôs uma obra superior, mas foi feliz. A música é fiel aos climas e situações do conto de Melville, em que pesem as adaptações do texto original feitas pelos libretistas Forster e Crozier, com a particiação do próprio Britten. A vida rude da marujada oprimida e brutalizada pelos oficiais está bem expressada na música eloquente que Britten criou para o coro masculino, a quem encarregou de apresentar o primeiro tema logo no início da ópera. Nas intervenções de Glaggart, a música é rascante e sublinha a "natureza depravada" e má do personagem. Em contraste, ele reservou para o protagonista e também para o personagem Fairfax Vere passagens líricas e melodias ternas, como Billy in the Darbies –única que pode ser classificada como sendo uma “ária” que, contudo, soa como um lied. Britten percebeu a inspiração deste tema e o desenvolveu e explorou com sabedoria.

Não se espere de Benjamin Britten uma ópera com a mesma estrutura de uma obra do repertório clássico. Ele buscava precisamente uma outra linguagem para o melodrama e se sentia a vontade no ambiente do experimentalismo. Em Billy Budd o sinfonismo é dominante. Mas foi feliz de tal forma que basta ouvir a música para identificar não apenas os climas, mas um ou outro personagem, conferindo-lhes caráter e identidade musicais.

A montagem do Theatro Municipal

A récita de ontem, dia 21, recebeu um público modesto -muitas poltronas vazias em todos os setores; algo como meia casa ou pouco mais. Pois quem não foi perdeu um ótimo espetáculo. Mas ainda há tempo de conferir Billy Budd nas duas últimas récitas programadas.

Elenco homogêneo e eficiente sob a batuta experiente e sempre segura de Isaac Karabitchevsky. Ótimo desempenho do Coro do Theatro Municipal (apenas vozes masculinas) e dos meninos do Coro Infantil da UFRJ. A Orquestra Sinfônica do Municipal andou assustando no primeiro ato, quando sopros e metais pareceram não se entender muito bem, mas se recuperou mais adiante. Aqui é preciso que se faça uma ressalva: até onde se sabe, os ensaios com a orquestra foram insuficientes e essa é uma partitura que precisa ser mais bem trabalhada pelo regente e pelos músicos. Exemplo: nas sequências em que Budd gagueja, Karabitchevsky poderia ter tirado maior partido das possibilidades rítmicas oferecidas e que devem estar indicadas na partitura.  

Em tempo. Essa matéria já tinha sido postada quando me chegou a informação de que o Coro e a Orquestra do Theatro Municipal receberam as partituras de "Billy Budd" há apenas 1 (um) mês. Foi esse o tempo que os conjuntos tiveram para ler, estudar, decorar e ensaiar uma ópera difícil, que não conheciam, para ser apresentada no Brasil pela primeira vez. Bem mais grave foi o tempo dedicado aos ensaios. Foram apenas duas semanas de ensaios em sala e outras duas para ensaios de cena. Em Billy Budd, o Coro (os marinheiros) tem protagonismo. Conclusão: com apenas duas semanas de preparação, Orquestra e Coro tiveram que se superar. E conseguiram. Daí que eventuais falhas devem ser consideradas pelo público. Nestas circunstâncias, só cabem elogios ao Coro e à Orquestra do Theatro Municipal. Fecha o pano.     

Excelentes os cenários de Diego Siliano e ótima direção de cena de Marcelo Lombardero. O único senão fica por conta das muitas cortinas para troca de cenários, que quebram o ritmo teatral. Fica registrado que houve problemas de organização, por parte do Theatro Municipal do Rio, no transporte de cenários e figurinos, que vieram de Santiago-Chile. Lombardero, um profissional sério que conquistou a confiança e o respeito de todo o elenco, com certeza teve muito trabalho para montar o Billy Budd no Rio. Não podia ser diferente num teatro onde a programação de ópera tem sido atividade eventual nos últimos anos, ao contrário do que faz o Municipal de Santiago do Chile que, mesmo depois de sofrer um incêndio, manteve a sua programação porque tem compromisso e respeita seu público.  

Entre os solistas destacou-se o excelente barítono Leonardo Neiva como Budd. Tanto cênica como vocalmente compôs muito bem o personagem, numa partitura difícil, cantada num idioma (inglês) desfavorável para cantores de sua formação. 

O tenor Roger Honeywell (Fairfax Vere), voz bonita e segura, o barítono Hector Guedes (Glaggart) e Homero Velho (Mr. Redburn) mantiveram o nível. Apareceram também com grande eficiência: Daniel Soren, Rafael Thomas, Ciro D’Araújo, Weber Duarte, Marcio Marangon e Ivan Jorgensen.

O tenor Ivan Jorgensen merece um comentário adicional. Jorgensen já demonstrou que tem voz, musicalidade e formação para assumir papéis de maior destaque. É jovem mas já poderia ter subido ao palco do Theatro Municipal como protagonista de um papel principal. Se alguém duvida não precisa sequer fazer um teste. Basta conferir seu desempenho em Billy Budd, como o Novato (marinheiro castigado pela chibata) na bela sequência para tenor e coro. Artistas se fazem e crescem no palco, e é função dos teatros revelar os bons valores. Existem muitos no Brasil, e Ivan Jorgensen vem puxando a fila há muito tempo. 

domingo, 13 de outubro de 2013

Artistas e público do Rio de Janeiro se unem em defesa do Theatro Municipal.



por Henrique Marques Porto

O Theatro Municipal do Rio de Janeiro –o mais importante e tradicional teatro da Cidade –tem sido assunto frequente aqui no Blog. Infelizmente, não para comentar a programação, mas para denunciar suas mazelas e a comprovada incompetência de seus principais administradores. 

A contratação, no início do ano, do maestro Isaac Karabitchevsky trouxe alguma esperança de mudança na situação. Não mudou nada.  O maestro aceitou a incumbência menor de “programador de temporada” e não assumiu a direção artística do Theatro, como foi anunciado na época de sua chegada. O cargo estratégico é ainda ocupado oficialmente pelo antigo titular, seu colega Silvio Viegas. Karabitchevsky, um nome respeitado, dá sinais de que se acomodou aos esquemas implantados desde 2007 pela presidente da Fundação Theatro Municipal, a Sra. Carla Camurati, cuja permanência no cargo por tantos anos é absolutamente inexplicável e desarrazoada.  

O resultado está aí: estamos chegando ao fim do ano com mais um balanço negativo, não muito diferente do apresentado nos anos anteriores. Tivemos mais do mesmo, ou seja, quase nada. Nem os bicentenários de Verdi e Wagner, festejados no mundo inteiro, serviram de inspiração aos dirigentes do Theatro. No Rio, os dois gênios da música não receberam a atenção que mereciam. Agora, “Inês é morta”. Outra oportunidade como essa só daqui a cem anos. No caso da ópera, a "temporada" fechará com “Billy Budd”, que lembrará o centenário de Benjamin Britten, e que se somará a “Aida”, de Verdi, e “Die Walküre”, de Wagner. Três títulos em doze meses; um bolinho com uma única vela para cada aniversariante, servidos com as desculpas esfarrapadas de sempre, que mais escondem e sugerem desconfianças do que explicam.

De positivo mesmo há a firme reação dos artistas com o apoio do público. Depois de muita luta os funcionários do Theatro conseguiram do Governo do Estado a autorização para a realização de Concurso Público para preencher as muitas vagas abertas, mas a conquista só beneficiará os corpos artíscos. As áreas técnica e administrativa não foram contempladas. O último concurso foi em 2001. Ainda assim, foi uma vitória importante, um grande passo na defesa do maior teatro do Rio de Janeiro.

No dia 24 de outubro, quinta-feira, às 13 horas, artistas e público têm um encontro marcado nas escadarias do Theatro Municipal, na Cinelândia. Quando artistas precisam sair à rua em defesa da Ópera, do Balé e do Concerto no Theatro Municipal, que para essa finalidade é mantido pelos impostos pagos pela população, é porque a situação é muito grave mesmo. O Sindicato dos Trabalhadores em Entidades Públicas da Ação Cultural do Estado do Rio de Janeiro-SINTAC está divulgando a seguinte “Carta à População”:

“Os artistas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro vêm a público manifestar sua insatisfação com a atual gestão da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A Temporada Oficial dos Corpos Artísticos vem sendo diminuída e depreciada a cada ano, desde a posse da atual gestão em 2007.
As temporadas dos espetáculos  realizados tradicionalmente pelos Corpos Artísticos vêm sendo substituídas por exibição de filmes. 
O Theatro Municipal não é CINEMA.
Os projetos sociais realizados pelos Corpos Artísticos da FTM/RJ foram desativados: “Espetáculos para as Escolas Públicas”; “Domingo a Um Real”; “Ópera ao Meio Dia”.
O reconhecimento de Direitos dos funcionários vem sendo desrespeitado constantemente. Os quadros de pessoal da FTM/RJ estão completamente esvaziados, necessitando de concurso público para todas as áreas: Artística, Técnica e Administrativa. É urgente a reposição salarial para os servidores do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A atual gestão vem tratando com extremo descaso os artistas, técnicos e administrativos. A falta de comprometimento com a Temporada Oficial da FTM/RJ é um atentado contra a cultura pública e um destrato com a população do Rio de Janeiro."

Sindicato dos Trabalhadores em Entidades Públicas da Ação Cultural 
do Estado do Rio de Janeiro-SINTAC 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A estreia de Arturo Toscanini no Rio de Janeiro. Lenda e realidade.




por Henrique Marques Porto

Em outubro de 1886 a coluna “Variazione artistica”, do periódico La Riscossa, de Parma, publicava notícia de um evento “miraculoso” ocorrido no Rio de Janeiro quatro meses antes -a estreia como regente de Arturo Toscanini, em 30 de junho no Theatro D. Pedro II, que receberia o nome “Theatro Lyrico” depois da proclamação da república, em 1889. Vale a pena transcrever um trecho da matéria publicada pelo jornal de Parma, que logo repercutiu em toda a Itália e em boa parte da Europa.

“A Rio agisce uma compagnia di canto italiano, della quale fa parte la celebre Nadina Bulicioff, il tenore Figner, il basso Roveri, eccetera. Si era dato il Faust com splendido successo. Tutti i giornali portavano al siete cieli gli artisti, ma si mostravano poco soddisfatti del diretore d’orchestra, certo Leopoldo Miguez, brasiliano, il quale a quanto pare, mostro di non avere né pratica, né capacitá per dirigere la magnífica orchestra che gli era stata affidata. Come si passarono le cose no si sa precisamente; il fato è que il signor Miguez, punto nel suo amor próprio, mentre stava per andare in scena l’Aida, scrisse una bela lettera di congedo al impresari, uno del quali il signor Superti (...) ebbe l’infelice Idea di sotituire il diretore dimissionario. Non l’avesse mai fatto!”

Theatro Lyrico (antigo D, Pedro II), onde Toscanini estreou
È vero. Foi imprudente o empresário Carlo Superti. A reação da crítica e do público do Rio foi de revolta bem maior do que ele poderia imaginar. O maestro Leopoldo Miguez era homem muito respeitado e admirado. E não apenas nos círculos musicais. Em sua carta de demissão, o maestro Miguez denunciou que nos bastidores da companhia italiana o clima era de franca hostilidade e conspiração contra ele, que fora convidado pelo próprio Superti. A companhia já se apresentara em São Paulo sob a condução de Miguez, e a crítica especializada paulista tratou com reservas a sua regência. Contudo, a saída de Leopoldo Miguez naquelas circunstâncias irritou o público carioca, para quem não cabiam dúvidas a respeito: estava ferido o brio nacional.

O público foi para a estreia de Aida com ânimo belicoso, disposto a desagravar publicamente Leopoldo Miguez. Diga-se a propósio que Miguez era homem discreto e avesso a escândalos. Demitiu-se por carta, recolheu-se e não consta que tenha incentivado nenhum tipo de protesto a seu favor.

O empresário Superti, que também era regente, tentou assumir o posto de Leopoldo Miguez. O público não permitiu. Superti foi recebido por uma onda de vaias, protestos e assovios, “che duro la belezza de mezz’ora” –segundo o exagerado escriba de “La Riscossa”. Superti teve que abandonar o pódio e apareceu no palco um outro empresário, de nome Rossi, para dar explicações. Sequer foi ouvido. O público reagiu com maior violência, interrompendo o início da récita.

Pelas bordas da confusão insinuou-se a lenda. O jornal de Parma descreveu assim “o milagre” para seus leitores: “Subitamente abandona o seu posto na orquestra um jovem primeiro violoncelista, que dá o sinal para a orquestra”. Surpreendido pela atitude audaciosa e incomum de um jovem músico de apenas 19 anos, o público silenciou, domado pelo inusitado regente e seduzido pela música de Verdi. Era o início da lenda de Arturo Toscanini.

Mas a história real foi menos romântica. Nessa época, Arturo Toscanini, como costuma acontecer com todo jovem músico, passava por dificuldades financeiras e dependia dos minguados cachês que lhe pagavam. Para agravar a sua situação pessoal, estava com dívidas vencidas e precisava pagá-las. A excursão à América do Sul tinha chegado em boa hora, portanto. A viagem era penosa, mas ele precisava ganhar aquele dinheiro. Se a estreia de Aida fosse cancelada e a companhia desfeita por conta daquele episódio, o prejuízo seria de todos -empresários, cantores e músicos.

Em meio à confusão, toda a Companhia se reuniu no palco para tentar salvar o espetáculo. Alguns solistas, com apoio dos músicos, sugeriram que se fizesse uma tentativa com o violoncelista Toscanini. Afinal, ele conhecia bem a partitura e até ajudava os solistas ensaiando-os ao piano durante a viagem. Além do mais tinha a vantagem de não ser alvo direto dos protestos do público carioca. Arturo -provavelmente já com o semblante sério que o caracterizaria- recusou o convite inesperado. Não era regente e, diante daquela circunstância particularmente difícil, não estava disposto a assumir a arriscada função. Mas seus colegas da orquestra e os solistas insistiram. Não havia alternativa: ou ele aceitava os riscos do encargo ou a companhia seria desfeita ali mesmo. 

Foi então que prevaleceu o senso prático e realista de Arturo Toscanini. Ele precisava do dinheiro que receberia e seus colegas também. Assumindo a direção da orquestra, receberia até bem mais. Foi assim que tomou a decisão e se dirigiu ao pódio, sob a pressão das circunstâncias, dos colegas e diante de uma platéia furiosa. 

Conta a lenda que um segundo episódio cativou o público logo no início da ópera. O jovem Arturo repentinamente fechou a partitura e teria regido toda a ópera de cor. E teria feito isso não por capricho ou excesso de autoconfiança. É que o palco no início da Aida recebe muita iluminação -é manhã no ensolarado Egito, e Ramfis e Radamés estão no exterior do templo. A orquestra ficava muito próxima do palco e Toscanini simplesmente não conseguia ler a partitura. Fecho-a e pronto. Deve ter voltado a abri-la, mas o público, de olhos atentos no pódio desde o início, guardou com atenção e interpretou a seu modo o gesto do jovem maestro e, com sabedoria, concluiu: aquele jovem era bem mais do que um simples regente substituto improvisado na função por um incidente lamentável. 

Oscar Guanabarino
No dia seguinte, o respeitado e temido crítico Oscar Guanabarino, de “O Paiz”, tratou do episódio em sua coluna. Depois de muitos circunlóquios dedicados a explicar aos leitores seu respeito e amizade por Leopoldo Miguez, descreveu brevemente os acontecimentos que provocaram o incidente da noite anterior, mas sem dramatizá-los. E explicou que não comentaria a atuação dos solistas, dadas as circunstâncias da turbulenta estreia. Referiu-se apenas ao tenor Bertini, que não teria se saído bem no Radamés. Mas guardou palavras elogiosas para a regência de Arturo Toscanini. “Deu ele sobejas provas de habilitações, sangue frio, entusiasmo e vigor”.



Foi elegante em relação a Leopoldo Miguez: “Para nós, que desejamos ver elevado o nível da educação artística da nossa sociedade, preferimos ver o nosso amigo Leopoldo Miguez na ingloriosa tarefa de professor, transmitindo o que sabe, a vê-lo no estrado de regente de orquestra, lugar de muitas glórias, muitos louros, mas tudo efêmero”.

Segundo Guanabarino, as vaias do público duraram cerca de quinze minutos, e não a “belezza de mezz’ora”, apontada pelo repórter de La Riscossa. Depois das turbulências da estreia de Aida, Toscanini assumiu definitivamente a direção da orquestra da companhia e regeu os demais espetáculos programados. O seguinte foi La Favorita, de Donizetti. Guanabarino disse mais: que Toscanini já vinha se preparando para a regência, apenas preferia que fosse um pouco mais adiante.

Arturo Toscanini permaneceu no Rio de Janeiro por mais de dois meses. Em agosto de 1886 alguns solistas da mesma companhia se apresentaram em concerto, com acompanhamento de piano. Numa peça, decidida de improviso em substituição a uma ária de I Puritani, Toscanini acompanhou o solista com leitura à primeira vista. Guanabarino assinalou um detalhe: mesmo sendo primeira leitura, “fez a transposição de meio tom”.

Tudo pode ser “efêmero” na vida de um regente -havia escrito antes Oscar Guabarino referindo-se a Leopoldo Miguez. Não era o caso de Arturo Toscanini.

Fontes:
1) Andrea Della Corte: “Toscanini, visto da um critico”; Bibliotca Storica Della ILTE; 1958.

2) Biblioteca Nacional; Hemeroteca Digital Brasileira. 

Arturo Toscanini - Aida - Primeiro ato