terça-feira, 9 de dezembro de 2014

“Madama Butterfly”, última dose da ração anual de três óperas do Rio de Janeiro.



Temporada Internacional do Rio de Janeiro, setembro de 1949. Naquele ano o Municipal do Rio montou 43 óperas, em 261 espetáculos.

por Comba Marques Porto

A ópera “Madama Butterfly”, de Puccini, entrou em minha vida quando fui levada pelas mãos de meu pai ao elenco da temporada lírica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no ano de 1948. O meu papel não poderia ser outro: o do filho sem nome da jovem gueixa (no libreto da estreia da ópera em 1904 o menino foi chamado de Dolore) iludida por Pinkerton, oficial americano, que lhe acena com um amor com direito a casamento e casa no alto de uma colina em Nagazaki, para logo em seguida abandoná-la.

Não foram poucas as récitas em que fui ao palco representando este personagem, muitas delas tendo como “mãe” Violeta Coelho Netto de Freitas, uma das melhores sopranos brasileiras do século XX. Violeta fez história no papel de Cio Cio San, não só pela beleza e intensidade dramática de sua voz, como também por ser uma cantora particularmente dotada para a interpretação teatral. Jamais esquecerei da cena do segundo ato com Violeta, quando Butterfly sofre o choque da pergunta de Sharpless, o cônsul americano: "Pois bem, o que farias, Madame Butterfly, se ele (Pinkerton) jamais voltasse?". Esta é uma das passagens em que a escrita de Puccini mais se torna pungente, comovente, assim como a cena final em que a gueixa despede-se do filho e pratica o arakiri.

O primeiro ato antecipa o drama de Butterfly. Tem ao fim um lindo dueto que apresenta a protagonista, seu encanto com o falso casamento e o suposto amor de Pinkerton. Ela decide adotar a religião de seu marido e passa a chamar-se “senhora Benjamim Franklin Pinkerton”. Todo o engano de que Butterfly é vítima ali se desenha. O segundo ato prende o público pela emoção, ao concentrar a intensidade dramática da ópera: a realidade que Cio Cio San terá de enfrentar. São passados três anos e ela está na miséria. Vive o abandono, mas acredita na verdade de sua (inventada) relação com Pinkerton.   

Curiosamente, muita gente que gosta de ópera em geral rejeita “Madama Butterfly”. Ou, quem sabe, não a percebe musicalmente. A maioria talvez se fixe no enredo - a gueixa que se deixa iludir, baseada na peça de John Luther Long e David Belasco, na qual Puccini se baseou para criar a ópera com libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa. Em verdade, musicalmente esta ópera é mais do que a trama, conquanto o libreto seja muito bem escrito para expressar a verdade concebida por Puccini a partir de uma historieta romântica, porém inegavelmente tocante.

Em “Madama Butterfly”, temos uma escrita musical de certo modo arrojada, plena de silêncios no terceiro ato, a nos revelar um Puccini aberto a novos sons igualmente experimentados em “Suor Angelica” (estreia no MET, em 1918, e no Municipal em 1919). Muito me toca senti-lo como um compositor de fato sensível ao drama íntimo da protagonista, a jovem enganada. Gosto dessa cumplicidade de Puccini com Cio Cio San. No século XIX, em que a ação se passa, isoladas revoltas contra a opressão da mulher ainda caiam no vazio. Assim, é possível fazer uma leitura da “Madama Butterfly” como denúncia de Puccini quanto à violação da dignidade da mulher, agravada pelo fato de estar o americano Pinkerton em missão oficial em terras japonesas, com sua diversidade cultural que ele desconsidera e vê com ironia. Afinal, já chegáramos ao século XX e Puccini era um artista com olhos para o futuro.

Perdi a conta das tantas vezes que me entreguei de corpo e alma a esta ópera, seja como a pequena intérprete do Bimbo, seja como quem não cansa de ouvir e assistir esta ópera. Há uma verdade em Cio Cio San que me comove. Minha amiga Leda Fraguito muito bem observou: o que aparentemente nos incomodaria em Butterfly - uma passividade cega que desafia o senso crítico das mulheres conscientes da opressão feminina – é, em verdade, uma dignidade que apreciamos e se manifesta por sua fé no amor, sua persistência, sua esperança de que o amor triunfe, seja possível, tema caro a Puccini e, romantismo à parte, a todos nós que acreditamos na verdade do amor como expressão humanista. É mesmo de comover a boa-fé que Cio Cio San atribui aos homens que a enganam, notadamente Pinkerton, o estrangeiro vil e covarde; Sharpless, o representante diplomático dos Estados Unidos que, no primeiro ato, desaprova o malfeito de Pinkerton; no segundo ato comove-se com o drama de Butterfly; mas, no terceiro, articula o resgate do filho, ao invés de denunciar Pinkerton, para que o Estado mandasse pagar pensão à mulher e ao filho. Mas se fosse assim, não haveria a ópera...    

Neste ano de 2014, como em anteriores, não tivemos uma temporada de óperas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Apenas montagens esparsas, como a que acaba de ocorrer neste dezembro. Pois é: convida-se a soprano japonesa Hiromi Omura para o papel título e se faz a descortesia de colocá-la em palco num cenário mixa, mambembe, aquele inexplicável murundu ao fundo do palco, aliás, um fundo muito escuro presente nos três atos a limitar o espaço cênico e dramático. Cadê a noite estrelada do primeiro ato? Cadê a parte interna da casa de Butterfly, onde o drama se desenvolve? Lamentavelmente, viu-se um cenário que diminuiu o feito artístico de Puccini e seus libretistas.

A projeção de vídeo na passagem orquestral do segundo para o terceiro ato, mais confunde do que acrescenta. O recurso vem sendo bem usado em grandes montagens de óperas no MET e em casas europeias. Mas é preciso cautela para não se sair a macaquear o que se faz lá fora, quando aqui falta gestão para se ter o Municipal como um verdadeiro teatro de ópera. A projeção, no caso, soou boba, deslocada do contexto cenográfico, aliás, feioso e mal acabado. Se não há verba (será que não há?) para montar boas temporadas de óperas, seria mais digno apresentá-las em forma de concerto. Nem Puccini, um compositor que amava o teatro, nem o Municipal, por sua rica história e, tampouco, nós, o publico pagante, merecemos o que se viu.    

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Magda Olivero não morreu.





Henrique Marques Porto

Faz muito tempo, exatos 50 anos, mas parece que foi ainda outro dia. É que as coisas belas e boas se incorporam às nossas vidas e têm o poder de permanecer no presente.

Em 1964 o Theatro Municipal do Rio de Janeiro realizou sua última grande temporada lírica internacional. Abriu com o Mefistofele, de Arrigo Boito. Cesare Siepi, Flaviano Labò e Magda Olivero no elenco. Magda arrebatou o público na Cena da Prisão. Poucos dias depois subiu a cena a Tosca, de Puccini. No elenco Magda Olivero e GianGiacomo Guelfi, além de Flaviano Labò e do grande Nicola Zacaria no pequeno papel de Angelotti.

Eu tinha apenas quatorze anos quando ouvi a voz de Magda vindo dos bastidores: “Mário, Mário, Mário!”. Apesar do ouvido adolescente, ainda em formação, imediatamente entendi que estava diante de uma grandíssima cantora e atriz. Eu já conhecia razoavelmente bem a ópera pelas gravações de Maria Callas, Renata Tebaldi e Zinka Milanov. Por toda a ópera não consegui despregar os olhos de Magda Olivero, então já uma senhora de 54 anos.

Eu não sabia então, mas jamais voltaria a ver o verismo e a teatralidade de Puccini tão bem interpretados. O segundo ato daquela Tosca foi particularmente inesquecível. Magda e Guelfi estiveram impressionantes! Foi mais do que uma apresentação. Foi uma aula.

Guelfi já se foi. Cesare Siepi também. Nas últimas semanas juntaram-se a eles Carlo Bergonzi e Licia Albanese. Magda morreu hoje, aos 104 anos. Morreu? Morreram? Não. Referências não morrem. Podem até ser esquecidas ou relevadas por algum tempo. Mas em algum momento hão de ressurgir na voz de algum cantor mais atento e inteligente.

A ópera estaria vivendo uma grande crise em nossos dias e existem, inclusive, aqueles que até sugerem um Requiem para ela. Acompanho com boa dose de reserva crítica esse debate. E me pergunto se não seria o canto lírico, e não o gênero ópera, que estaria em crise.

Magda Olivero foi uma cantora única. Formada nos fundamentos da escola de canto de Antonio Cotogni, cantava e atuava com uma arte e uma técnica próprias, o que a coloca entre as vozes isoladas. Ela escapa a qualquer tipo de comparação com outras cantoras. Até o mais radical entre os tolos -aquele que não ouve música, mas faz comparações- não consegue enquadrar Magda em seus esquemas primários.

La Olivero foi por muitas décadas a Diva real dos amantes de ópera de todo o mundo. Não cantava apenas no circuito restrito dos grandes teatros. Viajou o mundo todo e emocionou públicos em países e cidades que muitas estrelas –principalmente as atuais- sequer suspeitam que existem. Magda sempre tinha uns minutos, um sorriso e uma palavra simpática para o seu público. Joan Sutherland, em conversa com outra grande cantora, afirmou:
“-Nós somos apenas famosas, minha cara. A verdadeira diva da ópera é Magda Olivero.”


Arte não morre. Magda Olivero não morreu.   


Magda Olivero - Ave Maria - Otello

terça-feira, 15 de julho de 2014

A reconstrução do Theatro Municipal do Rio de Janeiro




Algumas propostas


Por Henrique Marques Porto

O objetivo desse texto é indicar um conjunto de ações e iniciativas mínimas para a reconstrução do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Longe de pretender ser definitivo, o texto tem a intenção de abrir ou estimular o debate sobre o tema. Dispensável fazer o balanço dos últimos sete/oito anos e enumerar os erros, os desmandos e indicar exemplos da péssima administração do TMRJ no Governo em fim de mandato, e que entrará para história como a pior gestão desde sua fundação em 1909.

A palavra “reconstrução” é aqui usada com muito critério e explica, por si, a natureza do trabalho que deve ser feito no Municipal em função do que aconteceu nos últimos anos, e que pode ser definido numa palavra: desmonte. Essa foi a tarefa a que se propuseram a Secretária de Cultura, Adriana Rattes, e a presidente da Fundação Theatro Municipal, Carla Camaruti, ambas produtoras e/ou empresárias  do setor audiovisual. As duas senhoras tinham uma missão: terceirizar o Municipal. A própria ex-atriz Carla Camurati confirmou o objetivo em recente entrevista à revista Valor: "No início da gestão, em 2008, a gente tentou. A Adriana Rattes sabia que era a primeira coisa que ela deveria fazer como secretária de Cultura".

Quebraram as caras. Os funcionários do teatro, com apoio do meio musical e do público impediram a aventura que beneficiaria apenas a pirataria que ronda o belo prédio da Cinelândia.

Por trás da evidente incompetência de quem vem gerindo o Municipal nos últimos anos estão o autoritarismo e as decisões arbitrárias. E um certo espírito vingativo em relação aos funcionários do TMRJ. O mandonismo resulta sempre em incompetência, além de facilitar os mal feitos de toda espécie e o alcance de objetivos muitas vezes desonestos, como o favorecimento de pessoas, empresários, produtoras e pequenos grupos.  

A tarefa agora é tentar, num esforço coletivo, reconstruir essa importante instituição pública que é a Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

A Instituição

A Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro (FTM/RJ) foi instituída pela Lei 1242 de 3 de dezembro de 1987:

Parágrafo único - A FTM/RJ terá por finalidade promover, incentivar e executar atividades culturais, especificamente nos campos da música, dança e representações cênicas, no âmbito de atuação do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, conferindo-lhes flexibilidade e autonomia.
Art. 2º - A FTM/RJ será supervisionada pela Secretaria de Estado de Cultura, terá personalidade jurídica de direito privado, sede e foro na Capital do Estado e duração indeterminada, regendo-se por esta Lei e pelos Estatutos que forem aprovados por Decreto do Poder Executivo.

O objetivo da Lei é claro. A intenção do legislador ao transformar o TMRJ em Fundação, com “personalidade jurídica de direito privado”, foi dar ao teatro autonomia administrativa e financeira, gestão mais ágil e maior capacidade de captar recursos no setor privado, além daqueles previstos no Orçamento Estadual.

A FTM/RJ não vem cumprindo a própria Lei que a criou! E tem sido assim há quase três décadas. Institucionalmente está absolutamente desorganizada, a começar por seus órgãos diretores. O TMRJ sequer tem um Vice-Presidente! Tem sido praxe dos governantes limitar-se a indicar um nome para a presidência da FTM, sem consultar os funcionários do teatro e o meio artístico, e dar de ombros para o resto. 

Assim, o Theatro Municipal costuma ser lembrado mais pela imponência do prédio histórico e menos por sua importância para a cultura do Rio e do Brasil.

Na verdade, o Municipal foi reduzido a mais uma entre tantas unidades da Secretaria de Cultura, como se não fosse a instituição diferenciada que é -um dos maiores, mais belos e mais bem equipados teatros da América do Sul, único equipamento do Rio de Janeiro adequado para encenações de óperas e balés. Teatros menores foram reformados para outras finalidades ou demolidos.  

A reconstrução

Reorganização administrativa da Fundação.

a) Eleição dos Órgãos de Direção da Fundação: Presidência e Vice-Presidência, Conselhos etc. No caso das Fundações o presidente não é a autoridade máxima na tomada de decisões. Esse papel cabe a um Conselho –Diretor ou Curador.  Esse órgão, que tem poder decisório, é o responsável pelas decisões finais. A Presidência cumpre.  

b) Atualização dos Estatutos e Regimento Interno da FTM. Na verdade, não se sabe ao certo se existem Estatutos e Regimento. Ao longo dos anos ninguém deu bola para isso. Desorganizada, a Fundação Theatro Municipal está com as portas escancaradas para todo tipo de piratas.

1) Recriação da Orquestra Jovem (formação de músicos e prática de conjunto). A Orquestra Jovem foi uma das melhores experiências vividas pelo Municipal. Foi extinta nos anos 70. Seu último Diretor foi o Maestro Nelson Nilo Hack. Seus discípulos ainda estão aí nas estantes das nossas orquestras.   

2) Criação, ou recriação, da Escola de Canto e Canto Coral (formação de futuros coristas e solistas). O TMRJ já contou com a “Escola de Canto Carmem Gomes”. Foi transferida do Municipal para a Escola de Música Villa-Lobos e lá perdeu sua função.

3) Criação da Divisão de Cenografia, Artes Cênicas e Figurinos. Nos anos 50 e 60 o TM tinha um setor de cenografia, dirigido por Mário Conde. Dele saíram nomes como Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãozinho Trinta (este era do corpo de baile e depois se projetou elaborando figurinos).  

4) Redução no curto prazo da enorme capacidade ociosa do TMRJ. Transformado pela atual gestão em casa de aluguel para convescotes variados o TM deve voltar a se dedicar à atividade artística como manda a Lei que criou a Fundação: promover, incentivar e executar atividades culturais, especificamente nos campos da música, dança e representações cênicas”.

5) Eleição direta do Presidente da Fundação Theatro Municipal, por Lista Tríplice, a exemplo do que ocorre nas Universidades Públicas e em fundações federais. Essa medida simples protegeria o Municipal contra as nomeações políticas, que geralmente atendem aos interesses do baixo clero e beneficiam empresas e pequenos grupos de pessoas. 

6) Transparência nas contas do TMRJ, uma verdadeira "caixa preta" recheada de contratos marotos. O TM é mantido por dinheiro público e tem a obrigação de prestar contas ao público. 

Atividades

1) Recriação da Temporada Lírica Nacional, resgatando a “Lei Ary Barroso”, Decreto-Lei 248 de 1948, com o objetivo de revelar novos talentos e dar chances aos artistas jovens –cantores, maestros, bailarinos, músicos, cenógrafos, figurinistas e técnicos.

2) Organização anual de uma Temporada de Concertos com a Orquestra do TMRJ. É absurdo um teatro manter uma orquestra sinfônica de qualidade que vem atuando apenas no fosso, em óperas, balés e eventos isolados. Isso faz mal aos músicos, ao público e à cultura do Rio.

3) Organização de uma Temporada de Balé que corresponda ao nível de qualidade do Corpo de Baile do Municipal, com a renovação da programação e incentivo à produção de coreografias próprias. Desde o início dos anos 80 o TM vem apresentando anualmente a mesma montagem de “O Quebra Nozes”! Um exagero absurdo que beneficia apenas uma ilustre empresária da dança.

4) Aproveitar espaços como o Foyer do Theatro para a organização de programação dedicada à Música de Câmara a preços populares. Público não faltará. Isso já foi feito no passado com muito sucesso. Sem prejuízo da inclusão desse repertório nas programações de concerto para o palco. Os próprios músicos da Orquestra Sinfônica do TM seriam incentivados a formar duos, trios, quartetos etc.

5) Organizar estratégias, com apoio profissional, de captação de recursos no setor privado para complementar o financiamento da área artística. O TMRJ jamais fez isso. Sequer empenhou-se junto ao próprio Governo para conseguir uma posição melhor no Orçamento Estadual.  

Recursos financeiros

Comparativamente a outros teatros do mesmo porte no Brasil, o Municipal do Rio só tem receita menor do que o Municipal de São Paulo. Por descaso do atual Governo, o que não é um privilégio do setor cultural, e por absoluta inoperância (incompetência seria o termo mais adequado) dos gestores do TMRJ. Mas as comparações com o TMSP são estapafúrdias e revelam grande dose de ignorância misturada com ma fé. Na verdade, nos últimos anos, a diferença entre os orçamentos de um teatro e outro não foi tão grande assim. E houve ano em que o Municipal de São Paulo trabalhou com orçamento até menor do que o congênere do Rio. Nem por isso o público de São Paulo ficou privado de óperas e concertos. A diferença é que o teatro de São Paulo tem contado com gente séria e comprometida com a música. John Neschiling, que comanda atualmente o TMSP, não é uma unanimidade entre os músicos e tem consciência disso. Mas ele é competente e não sai por aí fazendo asneiras. 

Como alertado no início, não tive a pretensão de esgotar o assunto. Também não tenho a arrogância de achar que essas propostas ou ideias sejam as melhores ou as mais adequadas. Tenho apenas duas certezas: 1) é preciso debater com seriedade e de forma organizada o futuro próximo do Theatro Municipal; e 2) Os funcionários do TMRJ e o meio musical do Rio de Janeiro devem ser os protagonistas da reconstrução do Municipal. Apoio e participação do público não faltarão.

Daqui a três meses o Rio elegerá um novo Governador. Da mesma forma como tantos outros segmentos sociais, os músicos e os amantes da música precisam se preparar e estar dispostos a influenciar nas decisões do futuro governante.    

terça-feira, 15 de abril de 2014

Modernices na ópera, até quando?


"Carmem". Primeiro ato. Em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

por Comba Marques Porto

Se tudo na vida tem limites, indago: quando terão fim as transposições ou releituras de libretos de óperas por diretores de cena e figurinistas para a locação da trama em tempos modernos, até mesmo quando se trata de temas nada universais, como em Il Trovatore, de Verdi? É o que eu chamo a “mania dos homens de terno” que já se torna lugar comum em encenações de ópera pelo mundo afora, o que, aliás, vem despertando sonoras vaias, como aconteceu com a Carmen de 2009 no Alla Scala de Milão.  

Há, sem dúvida, honrosas exceções, experiências bem sucedidas de aggiornamento em encenações. Em lista que não se esgota, cito dois exemplos de acertos que muito me tocaram: a Traviata da Netrebko em Salzburg/2005 e o Parsifal do Jonas Kaufmann no MET/2013.

Violações à integridade das obras

Não se trata, pois, de recusar liminarmente tudo que se inventa. O problema, ao meu ver, reside no “como se inventa”. Parto do princípio de que não é dado aos diretores de cena e figurinistas o direito de violar a originalidade da obra feita de música, libreto e notas sobre as ações e cenas. Não faz sentido a direção de cena querer se sobrepor aos autores da obra ou recriar o libreto com o propósito de atualizar a ópera ou torná-la mais palatável ao público, supondo-se que a mania de colocar tudo ambientado nos séculos XX/XXI, com estranha fixação nos anos 40, obedeça a tal propósito.

O pior é quando a coisa resulta mambembe, feiosa e, especialmente, apartada da inteligência teatral inerente à obra, como se deu na montagem da Carmen de Bizet/Meilhac/Halévy ora em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.    

Dom José de terno novo e a cigana de poucos feitiços

O Don José, da Carmen de Bizet (consta que o de Merimée é um tanto diferente), apresenta-se como um soldado, um aldeão. Na concepção de Allex Aguilera, ora comentada, o personagem entra em cena no 1º ato com pinta e traje de um oficial nazista, nada a ver com o soldado que se rende aos feitiços da cigana. Nesta montagem, o mesmo Don José aparece ao final num terno de risca de giz, agora com pinta de político ou diretor de estatal brasileira. O que significa isso?

Na cena do dueto final, tal como consta do libreto, Don José ronda a praça e as amigas Frasquita e Mercedes aconselham Carmen a tomar cuidado. Destas frases depreende-se que Don José esteja visivelmente abalado, pronto para cometer um ato de loucura. Na montagem ora apreciada, aparece-me um Don José em seu terno engomado, senta-se à mesa de um bar para conversar com Carmen. Mesa de bar com direito a garçom e tudo! Ou seja, a intensidade dramática do dueto em muito se perdeu. Não se construiu o necessário andamento dramático que conduz ao desfecho.  

A célebre "Habanera" do 1º ato é cantada por Carmen no segundo andar do cenário, ao canto esquerdo do palco. Será que a escolha desta marcação se deve ao desejo de chamar atenção do público para o cenário tal como inventado ou para “explicar” a sua finalidade?

No 1º ato, de acordo com o libreto, Carmen entra em cena junto com as demais operárias da fábrica de cigarros, em intervalo da jornada laboral. Não faz sentido ela cantar a Habanera encarapitada no alto de uns andaimes. Aliás, o cenário estruturado em andaimes ou plataformas de ferro interligadas por escadas carece de significado cênico no contexto da obra.

No 4º ato as duas estruturas postas respectivamente à direita e à esquerda do palco se acoplam para dar a ideia do grande portal da arena fechado enquanto ocorre a tourada. Aí viu-se o palco excessivamente às escuras. Foco apenas em Carmen que vem à cena trajada de socialite carioca pronta para um baile no Copacabana Palace, num longo branco à rigor, com direito à carteira de cetim, look anos 60. A iluminação restrita ao foco alcança a tal mesa de bar que ambientará o embate final entre Carmen e Don José.  Aliás, me pergunto o porquê de tantas marcações paradas para o papel de Carmen nesta montagem? Sem movimento e agilidade corporal a Carmen perde sua expressividade, diria a mezzo-soprano Gabriela Bezanzoni (1888-1962), grande intérprete do papel.

Carmen e a violência contra a mulher

Consta que Alex Aguilera teria afirmado em entrevista que pretendeu com esta montagem chamar atenção para a "violência contra a mulher". O libreto é óbvio e não precisaria de realce quanto a tal ponto: Carmen é vítima, sim, de um ato de violência praticado por Don José por não aceitá-la livre como ela é e enfaticamente se declara. O paralelo entre a tourada real e a tourada metafórica resta evidente na obra, como bem observou Henrique Marques Porto em sua crítica publicada no blog Ópera Sempre.    

O fato é que a proposição central da obra vai bem além do tema da violência contra a mulher que está englobada na abordagem do confronto maior entre a liberdade individual e as convenções sociais, o sentido do amor, o que não se restringe à questão da fidelidade amorosa a partir da ideia de apropriação da mulher pelo homem em nome do amor. Carmen não ama a ninguém – si je t’aime, prends gárde à toi” – se eu te escolho como objeto do meu amor, cuide-se!

Na obra Carmen simboliza uma liberdade instintiva, indomável. Ela é mais que uma mulher de carne e osso. A Carmen é uma bela metáfora. Nada melhor, é claro, do que representá-la numa personagem feminina singular e corajosa, como fizeram Bizet/Meilhac/Halévy – uma mulher que intimida os homens e os tem sob seu domínio. Uma ideia de mulher que, na história da ópera, faz um belo contraponto às sofredoras Leonoras verdianas.  

Ante à morte anunciada, Carmen enfrenta Don José porque em verdade, encarna o desafio ao destino. Sua liberdade interior afronta tudo, é maior que a própria morte.   

“... Mais si tu doigt mourir, si le mot redoutable est écrit par le sort
recommence vingt fois, la carte impitoyable répétera: la mort ...”
(Ária das Cartas) 

Diante da insistência de Don José Carmen jamais ne cédera!” Libre elle est née et libre elle mourra!  

Escamilo e a morte de Don José

Não li o romance do Merimée, não sei qual é o fim lá previsto para o Don José. De todo modo, o correto é considerar a obra de Bizet/Meilhac/Halévy e com base nesta posso afirmar que não faz o menor sentido a última cena tal como concebida na montagem ora comentada, em que Escamilo passa a navalha no pescoço de Don José. O que se quis dizer com isso? Seria vingar a violência contra a mulher? Não creio porque isto não faz o menor sentido.

No mais, a ideia de justiça com as próprias mãos não é acolhida pelo movimento feminista. Não se quer o justiçamento dos homens que matam mulheres por razões sentimentais nem por razão alguma. Postula-se, sim, a prática de políticas públicas de educação para a cidadania e, particularmente, a aplicação de medidas de prevenção e de punição pelo Estado, visando-se coibir a violência contra a mulher.

O desastre cênico do 4º ato da Carmen produzida pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi, de fato, além do que se pudesse esperar com esse assassinato de Don José por Escamilo. Mais um trabalho em que o essencial da obra é sacrificado como são os touros sacrificados nas arenas espanholas. Quem perde com isso? Principalmente o público jovem que busca a ópera e a encontra desfigurada de sua verdade artística.  

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A estreia de “Carmem” no Municipal do Rio de Janeiro



Ilustração da cenografia de Allex Aguilera para a Carmem.

por Henrique Marques Porto


Voltando para casa ontem, no início da madrugada, o ônibus parou repentinamente fora do ponto. Foi solidariedade do motorista para com uma mulher simples, que carregava uma bolsa grande. Ao subir ela agradeceu a gentileza do motorista (era o último ônibus da linha) e disse: "-Não podia perder esse ônibus. Estava ganhando um dinheirinho no teatro municipal...tá tendo ópera lá..."

É verdade, está tendo ópera no Municipal do Rio de Janeiro. Não é muito comum, mas está. Uma raridade que até o povo simples já sabe que é.

Carmem, de Georges Bizet, estreou ontem, dia 10, quinta-feira. Casa cheia, mas não inteiramente lotada, como costuma acontecer quando títulos muito populares ocupam o palco. O espetáculo foi dedicado à mezzo soprano Carmem Pimentel, falecida em 26 de março. Ponto para a direção do TM, pela atenção e pela justa homenagem.

A montagem

Se eu me dispusesse a contar para aquela senhora do ônibus o que foi o espetáculo que ela não pode ver, resumiria brevemente assim: entre mortos (mais mortos do que o de costume) e feridos, as maiores vítimas foram Georges Bizet e os libretistas Meilhac e Halèvy.

Tentarei ser igualmente breve sobre a “leitura” de Allex Aguilera, responsável pela cenografia e direção de cena: trabalho monótono, feio, que cansa o espectador, com uso abundante dos manjados clichês que vêm marcando atualmente muitas montagens de óperas. Parece uma colagem do que se vê por aí. Ao repertório de clichês e truques fáceis para seduzir os espectadores menos atentos juntaram-se alguns equívocos evidentes. Os mais flagrantes foram:

1) A “Canção do Toreador”
Aqui o toureiro Escamilo fez sua estreia como falso cantaor flamenco, com direito a acompanhamento de duas guitarras e carron (mudos e sem ritmo, é claro). "Votre toast" é outra coisa, e o público sabe disso.  

2) A “Ária das Cartas”

Na verdade é uma cena, que exige portanto ação teatral. Contrariando o texto, a Carmem dessa montagem ficou de pé, parada, sem consultar as cartas do baralho –aquelas que, segundo Carmem, “não mentem nunca”. Ao lado, Frasquita e Mercedes fazem o mesmo. Para elas as cartas indicam “fortuna” e “amor”. Elas riem. Para Carmem indicam a morte, que ela entende como um presságio. Luisa Francesconi cantou como cantaria num concerto. Um desperdício. Renderia muito mais com os recursos de algum jogo cênico. O público reagiu com aplausos tímidos. Terá sido por uso abusivo de linguagem estranha ao teatro de ópera? Talvez, já que a ópera vem sendo contaminada pela linguagem dos musicais made in Broadway e off Broadway. Ária ou cena de ópera não são como as canções de um musical. Ópera é teatro! Não é musical nem cinema. Mas, essa é uma questão que está ficando cansativa. Por enquanto, as montagens de tom provocativo têm rendido lucros aos seus autores –quanto mais polêmicas forem, melhor para o diretor. O tempo dará conta disso tudo. Mas, ficam duas advertências: não se deve ter a pretensão de ser maior ou melhor do que os autores da obra; e o que hoje é lucro, amanhã poderá reverter em prejuízo.

Resta um último comentário. O diretor Aguilera resolveu reescrever o final da ópera, que ficou assim: Jose mata Carmem, confessa o crime e se entrega à polícia. Carmem e Jose estão sozinhos em cena, mas ele se penitencia assim mesmo. Enquanto Jose se entrega para ninguém, o cenário abre e aparece Escamilo, que acabara de matar um touro, e corta a garganta de Jose, fazendo “justiça” com as próprias mãos. Sangue na areia, nos personagens principais e em abundância no fundo da cena, tingindo tudo de vermelho. Quase respinga no maestro e na orquestra, que nada tinham a ver com aquilo! O final da Carmem, na verdade, são duas “touradas” simultâneas –entre Escamilo e o touro; entre Carmem e Jose. O “touro” morre nas duas.

Ainda que admitamos a possibilidade de tal desfecho, colocando-o na conta da “criatividade” ou da “inovação”, resta um confronto com o texto da ópera. No ato anterior, Jose e Escamilo duelam a navalha. O toureiro leva a melhor e submete Jose. Os contrabandistas e Carmem chegam e separam os brigões. Então Escamilo diz, no estilo comique, que seu ofício é matar touros, não homens.

Le torero (Escamilo)
Tout beau!
Ta vie est à moi, mais en somme,
j'ai pour métier de frapper le taureau,
non de trouer le coeur de l'homme!

Posso estar sendo traído pela memória, mas esse texto foi excluído da montagem de ontem.

A atuação dos solistas    

Luisa Francesconi
Muitas cantoras sonham viver Carmem. Poucas podem. Luisa Francesconi tem uma bonita e bem projetada voz, que necessita, contudo, maior apuro na afinação, mas sua Carmem não chegou a empolgar. Ficou muito distante da personagem multifacetada, contraditória, sedutora e enigmática que mobiliza as fantasias masculinas. É difícil vestir a pele de Carmem, mas Luisa é jovem e tem tempo para aprimorar seu desempenho.

Quem roubou a cena foi a soprano Ekaterina Bakanova, que fez a modesta Micaela crescer diante da falta de vibração da Carmem de Luisa Francesconi. No entanto, a opacidade de um personagem tão forte como Carmem não terá sido por culpa da protagonista, embora ela não tenha dado demonstração de possuir dotes especiais de atriz. Luisa com certeza rende muito mais em papéis mais adequados à sua voz e à sua personalidade artística. De uma forma geral, todos os intérpretes, e até o Coro, foram prejudicados pela concepção do diretor de cena.

Ekaterina Bakanova
A russa Ekaterina Bakanova –que já havia se apresentado no Municipal na Nona de Beethoven- foi a grande surpresa da noite. Trata-se de uma cantora de qualidades excepcionais, com chances de formar em curto espaço de tempo entre as grandes solistas atuais. Em 2015 estreará no Royal Opera House, cantando a Musetta, em La Bohéme. Micaela é um papel modesto a quem Bizet confiou uma ária que caiu no gosto do público, “Je dis que rien ne m'épouvante”. Bakanova presenteou o público do Rio com uma belíssima e sensível interpretação da ária, conquistando os maiores aplausos da noite.


Fernando Portari, carioca e bem conhecido da plateia do Rio, não esteve ontem em sua melhor noite, mas soube compensar uma ou outra indecisão com a larga experiência e o domínio de palco que possui. Portari é um cantor seguro, que domina perfeitamente os recursos de sua voz e sabe até onde pode ir com ela.

O Escamilo do barítono lituano Valdis Jansons apareceu discretamente no rit “A canção do Toreador”. Não por culpa dele, como já se disse. Cresceu no terceiro ato, quando se pode notar segurança técnica, bom fraseado e musicalidade.

Lucia Bianchini (Frasquita), Daniela Mesquita (Mercedes), Geilson Santos (Remendado) e Marcelo Coutinho (Dancario) -todos membros do Coro do Theatro Municipal- compuseram um quarteto de altos e baixos. Engana-se quem imagina que esses pequenos papéis são fáceis. Não são e devem ser mais valorizados. O quinteto (com Carmem) do segundo ato é uma passagem de execução difícil, que exige mais ensaios que, suspeito, tenham sido insuficientes. Com certeza vão melhorar nas demais récitas.

Participações eficientes e corretas de Daniel Germano (Zuniga) e Leonardo Páscoa (Morales).

Sempre graciosa a participação das crianças no coro do primeiro ato, a cargo do Coro Infantil da UFRJ. Um número menor de componentes talvez facilitasse o desempenho do conjunto.

Muito boa a participação dos dançarinos de Flamenco, coreografados por Eliane Carvalho. Toda a cena da dança cigana, no início do segundo ato, uma passagem muito aguardada pelo público, dependeu deles.

Muito feios os figurinos de Fabio Namatame. Essa combinação de bege-alcatrão com cinza e tonalidades de azul já deve estar cansando até o olhar pouco exigente de quem acompanha a novela das sete.

Fiquemos com a música de Bizet. Saíram-se muito bem a Orquestra Sinfônica do TM e o maestro Isaac Karabtchevsky. Os pequenos deslizes em um naipe ou outro não chegaram a comprometer o conjunto.

O Coro do TM esteve bem, mas com alguns desencontros no início do terceiro ato (cena da montanha). Foi pena o diretor de cena não ter valorizado mais a presença do conjunto no palco. O povo é um componente importante na Carmem concebida por Bizet. Esconder o Coro atrás de um telão no último ato, substituindo a ação em cena por muitos minutos de projeção de um vídeo foi uma ideia infeliz. Não funcionou, ainda que inspirada pelas melhores intenções. O desafio do teatro é resolver as cenas no palco, com as ferramentas do teatro. A projeção de vídeo é uma opção acessória. Jamais poderá substituir por inteiro a ação teatral e a movimentação cênica.    

É possível que daqui a sei lá quanto tempo a ópera seja um gênero cultivado por um público reduzido. Posso até imaginar a hipótese extrema de que sobrevivam apenas alguns poucos títulos. Pois se isso acontecer não tenho dúvidas de que Carmem estará entre eles. A noite de ontem, com todos os senões que se pode apontar, confirmou isso.