Rigoletto matou-se ontem no Rio!
O bufão: "diforme", "povero" e agora também suicida.
por Henrique Marques Porto
Enfim o Theatro Municipal do Rio de Janeiro abriu as portas para
apresentar ao público carioca o seu primeiro espetáculo de ópera em 2012. O Rigoletto
que estreou ontem, domingo, dia 08 de julho, foi anunciado em fevereiro, muito
mais como uma intenção do que como programação definida, já que nenhuma
informação foi dada sobre o elenco, o regente e a montagem. Idem em relação aos
outros dois títulos que compõem a “temporada lírica” do TM para este ano –a
opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár, em outubro, e a Traviata,
de Verdi, em novembro, ambas ainda sem elenco. Quer dizer, o plano parece ser
este: primeiro escolhem-se os títulos, depois busca-se o elenco, quando deveria
ser o contrário. De qualquer forma é preciso saudar e elogiar o esforço feito
pela direção artística do TM.
O Rigoletto é um personagem de extraordinária força dramática.
Certamente o maior de toda a produção verdiana, e um dos maiores e mais desafiadores
papéis de todo o repertório operístico. O próprio Verdi comentou assim o seu
bufão, quando a censura da época tentou impedir que ele desse vida à “grotesca”
figura do corcunda:
“Acho belíssimo apresentar esta personagem,
externamente disforme e ridícula e, internamente, apaixonada e cheia de amor.
Escolhi-o exatamente por todas estas qualidades e esses traços originais. Se
forem tirados, não poderei mais compor a música.”
Pois se um barítono que interpreta esse personagem não é
capaz de expressar essas características tão contraditórias –o ser disforme por
fora, e que por dentro é capaz de amar, mas também de odiar e planejar
assassinato- estará retirando do personagem toda a sua força dramática. Quando
isso acontece temos no palco não o grande trágico, mas apenas uma sombra, ou
uma caricatura sua.
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Roberto Frontali |
Foi assim o Rigoletto que Roberto Frontali
apresentou no TM, em tarde chuvosa e de temperaturas baixas no Rio de Janeiro.
O frio parece que alcançou também a inspiração do barítono. Frontali nos
brindou com um Rigoletto de pouca expressividade, fraseado pobre e desempenho
teatral tímido, quase burocrático. A voz é pequena e não se destaca pela beleza
do timbre, mas possui recursos, inclusive técnicos, para superar essas
limitações e se apresentar melhor na pele do bufão.
Verdi e Piave foram generosos. O Rigoletto oferece ao
barítono um punhado de cenas de grande densidade dramática, um texto eloquente
e frases musicais inspiradíssimas. Deram ao protagonista esse primor de cena no
segundo ato, que é o “Non, Vecchio, ti
ingani! Um vindice avrai!”. Nesta frase, ao mesmo tempo tão simplória pela promessa de vingança e tão
imponente, se concentra toda a tragédia do Rigoletto. Cantada com displicência ela
perde o conteúdo e enfraquece o final do ato, no dueto com Gilda. Essa ópera depende muito do protagonista, que conduz todo o
drama. Se acaso ele falha, todo o resto fica comprometido.
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Felice Varesi, o primeiro Rigoleto |
No tempo em que Verdi compôs o Rigoletto os barítonos na
Itália eram também chamados de “mezzo-tenores” –vozes bem circunscritas ao
centro do registro, sem muitos recursos para as notas altas e os graves. Vozes de
timbre mais robusto e colorido mais escuro só apareceriam bem mais tarde,
principalmente com Ricardo Stracciari e Tita Ruffo. No entanto, Verdi escolheu
para criar o seu bufão o barítono Felice Varesi (1813-1889), que segundo a
crônica possuía “voz vibrante, pastosa e
sonora, amplo fraseado, nobre ardor artístico e ímpeto apaixonado”. Foi
para um barítono com essas características que Verdi criou o Rigoletto.
Não parece ser o caso de Roberto Frontali que, se tivesse cantado no século dezenove, provavelmente seria classificado como um "mezzo-tenor". Ele possui outras qualidades, não
aquelas. Bom exemplo foi a cena final da ópera. O agudo na frase “Ah! La maledizzione!” não foi escrito
por Verdi, mas ao longo do tempo criou-se uma espécie de tradição que os
barítonos procuram seguir, embora tenham a opção de cantar como está na
partitura original. Frontali optou pelo agudo, embora não o alcance com
facilidade. O resultado foi o que se ouviu: uma nota meio tom abaixo, que só
impressionou ouvidos menos atentos.
Pouco antes, na mesma cena, quando Rigoletto confirma que o
corpo à sua frente é o de Gilda e não
o do Duque de Mântua, ouviram-se risos
vindos dos balcões. Quem estava mais próximo do palco pode notar que por pouco essa
estranha reação quase tirou a concentração do experiente Frontali e da jovem
Artemisa Repa. Do quê riram afinal? Logo depois, os mesmos risonhos espectadores
aplaudiram vibrantemente o final cinematográfico da ópera concebido por Pier
Francesco Maestrini.
No espetáculo de ontem, o destaque do elenco foi sem dúvida o
tenor Fernando Portari, cuja atuação ficou uns pontos acima do conjunto. Portari
demonstrou domínio perfeito do papel, com voz segura e bem projetada, e
fraseado correto e inteligente. Cenicamente também esteve muito bem, interpretando
o personagem segundo a prescrição do próprio Verdi: “o Duque tem um caráter nulo e deve ser um libertino; não é, porém,
repelente”. Cantando em sua cidade natal, Fernando Portari confirmou mais
uma vez ao público carioca as razões do seu sucesso em importantes palcos do
exterior.
Gilda foi a jovem soprano albanesa
Artemisa Repa. É soprano lírico, o timbre é agradável, mas a voz –talvez pela
impetuosidade da juventude- ainda se projeta de forma desigual, notadamente nos agudos.
Apresentou uma versão correta do “Caro
nome”, com pequenas indecisões nas coloraturas que tentou fazer. Pode
construir melhor esse personagem. Tem boa voz e muito caminho pela frente.
Sávio Sperandio e Adriana Clis deram qualidade aos irmãos
malfeitores Sparafucile e Madalena. Sávio se ressentiu de não ser
um “baixo profundo”, desejável para o Sparafucile,
mas afinal esse é um registro vocal em extinção –se é que já não está extinto. O
famoso “Quarteto” do último ato foi
talvez o melhor momento de toda a ópera, com ótimas participações de Adriana e
Portari. O Monterone, geralmente
cantado por um baixo, coube ao barítono Manuel Alvarez, uma voz que merece ser
melhor aproveitada. Há alguns anos se apresentou muito bem no Paolo, do Simon Bocannegra, com elenco de nível internacional.
O regente português Osvaldo Ferreira deu alguma consistência à
frágil sonoridade da combalida Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal. Ferreira conduziu com sobriedade o conjunto, amparando os solistas. A orquestra
precisa, com urgência, convocar concurso para preencher as estantes vazias
–ocupadas por músicos contratados- e organizar uma agenda própria de concertos.
Ficar apenas tocando no fosso, acompanhando óperas e balés desestimula individualmente
os músicos e não dá personalidade ao conjunto.
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O cenário concebido por Alfredo Troisi para o segundo ato do Rigoletto. |
Excelentes os cenários de Alfredo Troisi e a direção de Pier Francesco
Maestrini, que foram buscar inspiração nos ambientes de uma mansão da família de Maestrini no bairro de São Conrado. Isso talvez explique alguns pequenos excessos nos elementos
cênicos. Em algumas cenas do primeiro ato o palco ficou um tanto poluído,
desviando a atenção do público para o mais importante que é a música e a atuação dos
solistas. Pequenos ajustes na marcação de palco seriam desejáveis,
particularmente na cena de Monterone, que deve ser mais valorizada pela importância que tem em toda
a trama.
Pier Francesco é competente seguidor da onda atual de
combinar efeitos de projeção e iluminação. Mas também coloca no palco muitos
elementos das montagens tradicionais, certamente uma herança deixada por seu pai,
Carlo Maestrini, cujo trabalho o público carioca conheceu na temporada lírica de
1964.
Destaque para a excelente iluminação de Jorginho de Carvalho
que, sem favor, pode dividir com Maestrini os elogios à montagem. Figurinos bem
concebidos por Francesca Chinelli.
Maestrini, contudo, criou nesta montagem um novo destino para o Rigoletto. No final,
depois da constatação terrível da confirmação da maldição de Monterone, o bufão enrola uma corda ao pescoço
e comete suicídio, afogando-se no rio onde planejara lançar o corpo do Duque. A cena, uma projeção de vídeo, repete a abertura da ópera, com o corpo do bufão afogado boiando no rio. Uma imagem de efeito que agradou ao
público, mais acostumado com a TV e o cinema do que com o teatro. Não chega a
ser uma invenção arbitrária de Maestrini, mas a solução é duvidosa. Terá sido antes uma
concessão fácil aos apelos de efeito da projeção, com toda a boca do palco transformada em tela de
cinema. Uma coisa é combinar no palco os vários recursos disponibilizados pela
tecnologia, outra bem diferente é a substituição pura e simples da linguagem
teatral pela cinematográfica, com projeção de vídeo, transformando o palco num
grande telão. Pobre bufão, agora também suicida.
Não foi um espetáculo musicalmente empolgante, mas que
agradou e merece a atenção do público, que ontem não chegou a lotar o Theatro Municipal.