sábado, 27 de outubro de 2012

Assis Pacheco e seus múltiplos talentos. Um artista que faz falta.






por Henrique Marques Porto

Nos anos 1950 Beniaminio Gigli estava se apresentando no Rio de Janeiro. Certa tarde, ouviu-se a bela voz de um tenor que repassava o repertório num camarim do Theatro Municipal. Logo formou-se, próximo à porta do dito camarim, um grupo de ouvintes atentos, principalmente coristas e funcionários do teatro. Julgaram tratar-se do grande tenor italiano e não queriam perder a oportunidade única de compartilhar a intimidade de um ensaio de Gigli. Todos ficaram encantados. Depois de algum tempo a voz calou e a porta se abriu. Para surpresa de todos, quem saiu do camarin não foi Gigli, mas o brasileiríssimo tenor Assis Pacheco! 

Armando de Assis Pacheco nasceu em Itu-SP, em 5 de outubro de 1914. Faleceu no Rio de Janeiro, aos 91 anos, em 2005, depois de longos anos vivendo na cama, vítima do mal de Parkinson. 

Pacheco foi dos poucos cantores líricos brasileiros de sua geração que viveram exclusivamente da arte. A maioria tinha outros empregos para garantir a sobrevivência. Mas, no caso dele, não vivia apenas de música, mas da pintura. Pacheco era ótimo artista plástico e foi um dos nossos mais respeitados retratistas. Sua obra, rica e variada, está à espera de quem se disponha exibi-la ao público. 

Foi precisamente o talento para a pintura e o desenho que o ajudou a iniciar a carreira de tenor. Ainda bem jovem cantava num coral dirigido pelo maestro Francisco Murino, o primeiro a notar as qualidades de sua voz. Murino praticamente o intimou a estudar canto com ele. Pacheco recusou o convite. A família passava por dificuldades e ele não poderia pagar pelas aulas. O maestro respondeu: 
“-Não precisa pagar. Você pinta o meu retrato, e estamos quites.” 

Assis Pacheco. La Bohéme
A carreira começou quando se mudou para a capital. Em São Paulo fez concurso para o Coral Paulistano, onde participou como solista em diversos concertos sinfônicos –Paixão Segundo São João, de Bach, Stabat Mater, de Rossini, Nona Sinfonia de Beethoven, Requiem de Verdi e outros. A estreia em ópera foi em “La Bohéme”, no Teatro Sant’Ana, em 1942. 

Assis Pacheco era vocal e tecnicamente muito bem preparado. Artista sensível e extremamente inteligente, sabia “inventar” para sua voz recursos que a natureza não lhe dera. A voz circulava com facilidade por todos os matizes entre o lírico e o dramático. Cantava o Rodolfo, de “La Bohéme”, num dia e no outro o Cavaradossi, da “Tosca”. Na semana seguinte enfrentava o Radamés, da Aida, o dificílimo Otello, de Verdi, ou as dores desatinadas do Cannio, em “I Pagliacci”. Artista de múltiplos talentos Pacheco atuou, em vários espetáculos, como solista principal, diretor de cena, cenógrafo e figurinista. Quem escreve testemunhou essas proezas em pelo menos dois espetáculos nos anos 60 –Aida e Tosca. Além de ganhar pouco com a ópera, não raro investia dinheiro do próprio bolso para viabilizar montagens que não recebiam as atenções dos administradores do Theatro Municipal. 

Cenário para o "Otello". 1973

Pacheco foi, sem dúvida, o maior intérprete brasileiro de “Pery”. Vestia bem a pele do índio. Aliás vestia-se com muito pouco – nada mais do que uma tanga e umas poucas penas. Num “Il Guarany” montado no Maracanãzinho a preços populares, fui cumprimentá-lo antes do início do espetáculo. “-Estou praticamente nu!” -e riu da ousadia. Modesto, afirmava: "-Sempre fui muito feliz cantando o 'Pery'"

No entanto, na única gravação nacional em estúdio da obra mais famosa de Carlos Gomes, o escolhido foi o tenor paulista Manrico Patassini. Na época o meio musical estranhou e atribuiu a escolha à preferência dos produtores por um elenco de São Paulo. Teria sido um caso de bairrismo. Ou excesso de burrismo, para ser mais direto. Afinal, Assis Pacheco era paulista e jamais perdeu o sotaque de bom ituano. Por causa de uma bobagem o público brasileiro ficou privado de um bom registro em CD da voz de Assis Pacheco e justamente no papel em que ainda não foi superado por outro intérprete brasileiro. 

Além do “Pery”, identificava-se de modo especial com alguns personagens: o Cavaradossi, da “Tosca”; o Andrea Chénier; o Wherther e o Otello. Desempenhando esses papéis a voz de Assis Pacheco crescia, ganhava outros tons e coloridos. Era como se criasse uma segunda natureza. Cantando o Otello, próximo dos 70 anos, no Rio e em São Paulo, realizou verdadeiros milagres, extraindo sons como quem capta água límpida em poço quase seco.  

Já a caminho do final da carreira confessou uma única decepção: gostaria de ter cantado o Sansão de “Sansão e Dalila”, de Saint-Saëns. Por anos estudou o papel e conhecia muito bem a partitura. Jamais obteve apoio aos seus projetos para montar a ópera.

A vida é às vezes muito traiçoeira e reservou a Assis Pacheco um destino que ele não merecia: artista múltiplo, um homem inteligente, sensível e sedutor viveu seus últimos anos paralisado pelo Mal de Parkinson. O conforto veio pela presença de Marisa Mariz, companheira carinhosa e paciente, que se manteve junto dele até o fim. 

Contudo, mesmo preso à cama, resistiu. Sua amiga e também cantora, a mezzo Carmem Pimentel, contou-me comovida sobre uma visita que fez a Assis Pacheco. Carmem foi advertida por Marisa Mariz de que poderia frustrar-se. Afinal, dada a natureza da doença, ele sequer poderia reconhecê-la. A boa dona Carmem entendeu, mas decidiu correr o risco. Aproximou-se do leito e apenas disse:
“-Pacheco...”
A resposta veio na forma de um longo e quase sufocante silêncio.
Até que ele moveu lentamente e apenas um pouco a cabeça e balbuciou:
“-Car..mem...” 

Assis Pacheco, o irmão mais famoso do também talentoso maestro Diogo Pacheco, teve uma das mais longas e dignas carreiras da lírica nacional. Um nome cuja lembrança é motivo de orgulho, e também de muita saudade. Uma personalidade como a dele faz muita falta ao atual ambiente musical do Rio de Janeiro. 


Fontes:
1) "Assis Pacheco", Série Memória; Fernando Zerzottini
2) Arquivos pessoais do autor

Assis Pacheco - "E lucevan le stelle" 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O barítono Sylvio Vieira num filme dirigido por Humberto Mauro em 1944





 por Henrique Marques Porto


Sylvio Vieira
O barítono Sylvio Vieira (1899-1970) foi um dos mais importantes cantores líricos brasileiros. Ao lado da soprano Carmem Gomes e do tenor Hélio Reis e Silva formou, ainda na década de vinte do século passado, o primeiro trio de cantores brasileiros de qualidade. Com eles nossos teatros podiam dar conta de alguns dos principais títulos do repertório operístico –“Aida”, “Tosca”, “Il Trovatore”, “La Traviata”, “La Bohéme”, além “Il Guarany”, “Lo Schiavo” e outros. O mundo vivia a "época de ouro" da ópera, mas para os cantores líricos brasileiros aqueles foram tempos heróicos pela falta extrema de recursos de todo o tipo, a começar pelas pouquísimas possibilidades de estudo sério e criterioso.

O paulista Sylvio Vieira iniciou a carreira no então fervilhante teatro de variedades do Rio de Janeiro, atuando em operetas, comédias musicais e revistas. Mas logo dedicou-se também à ópera. Em 1921 estreou no “Faust”, de Gounod, no Teatro São José, em São Paulo. Por algum tempo cultivou os dois gêneros. Gravou algumas canções populares –valsas, modinhas e até sambas. Jamais deixou de cultivar o nosso rico cancioneiro popular. 

Em 1924, depois de cantar “La Bohéme” no Municipal do Rio com o elenco da companhia de Walter Mocchi, ouviu a seguinte observação de Mario Sammarco, o grande barítono italiano: “-Peccato! Questo é um tenore que s’esbaglia a cantare da barítono!!!” 

Outros nomes respeitáveis, como o maestro Vincenzo Bellezza, fizeram a mesma observação e Sylvio empolgou-se com a possibilidade e até conseguiu uma bolsa para se aperfeiçoar na Itália, mas foi prudente: “-Não é uma resolução, antes uma condição vocal. Vou à Itália, onde já tenho um contrato que me permite e garante os estudos pelo período de um ano.” –afirmou a um jornal em 1930.

Sylvio Vieira. Scarpia
Pois Sylvio Vieira foi para a terra de Caruso para se tornar tenor dramático e de lá voltou o barítono que sempre fora, só que mais experiente e sábio. Sabedoria que deve ter-lhe sido útil nos anos seguintes, quando contracenou com grandes estrelas internacionais nas temporadas líricas do Rio e de São Paulo. Sylvio compunha muito bem, por exemplo, o papel de “Scarpia”, na "Tosca", de Puccini. O que lhe faltava de recursos vocais sabia compensar com o talento de ator e o bom jogo cênico. 


Outro papel que marcou a longa carreira de Sylvio Vieira foi o Iberê, de “O Escravo”, de Carlos Gomes.   

Há anos sabia da existência de um curta-metragem dirigido por Humberto Mauro em 1944, com uma cena do IV ato de “O Escravo” –o recitativo e ária “Sospetano di me...Sogni d’amore”, que Sylvio já havia gravado em estúdio em 1931. A ficha técnica do curta pode ser consultada nos arquivos do Ministério da Cultura. Mas, o filme mesmo não está disponíbilizado para o público e só foi localizado numa fonte do exterior -circunstância que denuncia o fato de que a burocracia cultural está sentada em cima de um riquíssimo acervo que afinal pertence ao público. É também um flagrante do descaso com que o patrimônio cultural brasileiro é tratado, notadamente quando o tema é a música e a ópera em particular.  
 
Não se trata de um documento qualquer. O tema é Carlos Gomes, a direção é de Humberto Mauro, a locução é de Edgar Roquete Pinto, o barítono é Sylvio Vieira, com o maestro Santiago Guerra regendo a Orquestra e o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Estava engavetado e esquecido há muitas décadas, como esquecidos estavam o diretor e sobretudo o intérprete. Não estão mais.

Sylvio Vieira despediu-se dos palcos no início dos anos 60, depois de atuar como "Sharpless" em 1959, em "Madame Butterfly", no espetáculo em que também se despediu da carreira a sua amiga Violeta Coelho Neto de Freitas. Do mundo despediu-se em fevereiro de 1970.  

"O Escravo"
Barítono Sylvio Vieira
Direção de Humberto Mauro  
1944