domingo, 24 de junho de 2012

A ópera em risco




Afinação alta das orquestras é nociva para as vozes 
e pode comprometer o futuro da ópera

por Henrique Marques Porto




O público de ópera está, aparentemente, alheio ao problema. Quase sempre está mais interessado apenas no prazer, no deleite ou simplesmente no entretenimento que a música pode proporcionar. Não tem sabido perceber que, muitas vezes, por trás do mal desempenho de um cantor ou cantora está não o erro ou a falta de talento e musicalidade, mas um problema bem mais grave: a altíssima tonalidade das orquestras, que força para cima as notas de passagem e provoca desordem na técnica e na linha do canto –isso quando não leva ao colapso da voz e ao fim do sonho de carreiras que acabaram de se iniciar.

O "La Verdiano"

O tema vem sendo debatido desde os tempos de Giuseppe Verdi, o primeiro grande compositor a levá-lo a sério e a se manifestar por carta em 1884. Diz respeito à altura da afinação das orquestras. Na época de Verdi e anteriores os compositores adotavam uma afinação, ou um diapasão, em média de 432Hz (uma indicação da frequência da vibração do som por segundo, medida em Hertz).  

Pois a partir do auge do romantismo, sobretudo com Wagner e Lizt, a frequência foi aumentada para 440Hz. Ótimo para as orquestras, cuja sonoridade ficava mais brilhante numa tonalidade mais alta. Wagner, especialmente, se beneficiava deste efeito. A frequência mais alta foi rapidamente adotada pela maioria das orquestras. Isso ainda no século 19. 

Mas e os cantores de ópera? Como ficaram nessa história? Bem mal. A frequência mais alta, em 440Hz ou mais, corresponde a uma afinação da orquestra também mais alta, que pode chegar a meio tom a mais. Parece pouca coisa, sequer perceptível mesmo por ouvidos acostumados à música. Mas faz uma diferença enorme para as vozes, frágeis instrumentos humanos que têm limites, e que não são feitos de metal ou de madeira.  

Em geral, os instrumentistas não se preocupam muito com o tema, a não ser por razões que não têm a ver propriamente com música, mas com filosofia (se é que podemos chamar assim), crenças e esoterismo. É que essa história de frequência a 432Hz é muito mais antiga do que Verdi e o romantismo e já era tratada pelas culturas da antiguidade. O famoso "OM" da cantoria em nota única da Yoga é em 432hz. Por que? Porque 432 Hz corresponderia à vibração da terra, sendo portanto um som que está em relação harmônica com a natureza e com o homem. Enfim, seria uma vibração natural. Mas o que interessa aqui é saber em que medida isto afeta o canto lírico e o desempenho dos cantores. 

Afeta, e muito. Vejam aí nos vídeos os depoimentos de Renata Tebaldi e Piero Cappuccilli. Este exemplifica cantando um trecho de "Oh, de verdani miei", do Ernani, de Verdi, mostrando as notas de passagem (da região grave para a média, e desta para a região aguda). Ao fim, exclama: "-E tutta un'altra storia!". Renata Tebaldi era contundente em relação ao problema. Incluía nos contratos que assinava uma cláusula que obrigava as orquestras a obedecerem a afinação natural, em 432Hz. Caso contrário, não cantaria. 

Lyndon LaRouche, o conhecido eonomista e pensador americano, puxa a fila entre os intelectuais que defendem o "retorno ao LA verdiano". Cantores como Luciano Pavarotti, Placido Domingo, Monserrat-Caballé, Joan Sutherland, Carlo Bergonzi, Christa Ludwig, Birgit Nilsson e dezenas de outros também se manifestaram, além de maestros como Richard Bonynge, Luciano Chailly, Gianandrea Gavazzeni ou Rafael Kubelik. 

Atualmente, quase tudo o que ouvimos em mp3, CD ou DVD tem afinação a 440Hz ou acima. Placido Domingo afirma que as orquestras americanas adotam esse padrão, e que nas orquestras européias a tonalidade é ainda mais alta, se aproximando de 450Hz.  

 Política

Em 1936, Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, baixou decreto nazy estabelecendo 440Hz como padrão a ser adotado na Alemanha e também no mundo. Em 1939 convocou conferência internacional em Berlim para decidir sobre o tema. Apesar da ausência de representantes da França e de um abaixo-assinado com a assinatura de vinte mil músicos contrários a afinação a 440Hz, ela foi aprovada. Em 1978, a ISO (International Organization for Standardization), com apoio das gravadoras é claro, ratificou a decisão de Berlim. A reação veio em 1988, quando o parlamento italiano aprovou decreto restabelecendo naquele país o padrão 432Hz.  Mas a lei caiu no vazio.


O alerta de Carlo Bergonzi

  
Em 1993, numa entrevista ao site do Instituto Schiller, o tenor Carlo Bergonzi falou sobre o problema, que definiu como uma ameaça real ao futuro da ópera.  Abaixo, estão selecionados alguns trechos.  A íntegra pode ser lida em: 

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“Gostaria de explicar isso porque são nossos jovens que estão em jogo. Se você está estudando canto nesta afinação alta, você altera todo o espectro vocal. Se você canta a nota de passagem em F, na verdade você está cantando um F♯, que desloca a técnica inteira em meio-tom, desde as notas baixas, as da região média e as notas altas. Não é a posição natural.”
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“O grande maestro Tullio Serafin disse uma vez durante um intervalo de Il Trovatore, em uma conversa entre amigos: "eles estão começando a subir o ajuste, e estou triste com uma coisa: chegará o dia em que verdadeiros cantores já não serão ouvidos. Em vez de tenores, eles ouvirão castrati!" Eu acho que o Maestro Serafin era um profeta.“
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“A tonalidade verdiana é a que precisamos para desenvolver as vozes jovens, e se nós retornarmos a ela voltaremos a ouvir as grandes vozes que existiram em um tempo. Caso contrário poderá ser o fim da ópera.”
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“Quando eu estreei, existiam 100 tenores de primeira categoria e 100 no segundo plano. E os da segunda fileira naquele tempo eram melhores do que os tenores de primeira linha de hoje, por causa da questão do ajuste. Não digo isso para insultar ninguém, mas para salientar: o que mudou hoje? A tonalidade! Em 1951 existiam 200 grandes tenores. Hoje, existem dois e meio!”

Outro documento importante são trechos do discurso de Renata Tebaldi na Casa Verdi, em 1988.

“Agora me pergunto porque desapareceu do mundo a cor da voz de mezzo-soprano; por que já não temos mais barítonos que cantem desdobrando e expandindo a voz, com a cor do barítono autêntico. Todos são barítonos de vozes ‘brancas’, que fazem menos esforço para cantar, pois tendo menos voz do que os outros, eles têm menos dificuldade para subir e superar o obstáculo da afinação da orquestra. Desapareceu o baixo profundo; encontrar hoje e dia um ‘Sparafucile’ para o Rigoletto é impossível; recorre-se a vozes que podem cantar como baixo, mas sem corpo, que não dizem nada. Para não falar do contralto, que saiu de circulação."


A íntegra em:

A carta de Verdi



“Senhores,
Desde que foi adotado em França o diapasão normal (então fixado em 435 Hz), eu aconselhei que o exemplo fosse seguido por nós; e recomendei formalmente a orquestras de diversas cidades da Itália, como a do alla Scalla, que diminuíssem o diapasão, uniformizando-se com a norma francesa. Se a Comissão Musical instituída pelo nosso governo acredita, por recomendação científica, na redução de 435 vibrações do coro francês para 432 -a diferença é muito pequena, quase imperceptível ao ouvido-, eu concordo voluntariamente. Seria grave, um gravíssimo erro, adotar um diapasão de 450 vibrações, como Roma propõe. Eu sou de opinião que a diminuição do diapasão em nada afeta a sonoridade e o brilho da execução; mas dá, ao contrário, algo de nobre, de mais pleno e majestoso do que pode dar os estrilos de uma afinação muito aguda. De minha parte gostaria que uma só afinação fosse adotada em todo o mundo musical. A linguagem musical é universal: por que então a nota que tem nome “La” em Paris ou em Milão deveria tornar-se um “Si bemol” em Roma?”
(Genova 10 de fevereiro de 1884)

A idéia desse artigo é reunir algumas informções e expor o tema ao público brasileiro, ainda que de forma breve e resumida. Thiago Arankam, o tenor brasileiro que vem fazendo carreira no exterior, já se manifestou em sua página no Facebook. “E por que nunca ouvem o que dizem os cantores?” –escreveu Arankam em caixa alta. 

Não ouvem talvez porque o público da ópera ainda está pouco informado sobre o assunto e, portanto, não formou nenhum juízo a respeito. Sozinhos os cantores nada poderão fazer contra o poder do mercado da música e os interesses comerciais dos grandes teatros e das grandes orquestras. Ainda que esses cantores tenham o porte e o respeito que tinham Renata Tebaldi, Carlo Bergonzi ou Piero Cappuccilli. 

Fonte: The Schiller Institute (http://www.schillerinstitute.org/

Piero Cappuccilli compara as diferentes afinações 

Il ritorno al La verdiano

domingo, 3 de junho de 2012

Hedy Iracema-Brügelmam
de Porto Alegre para a Ópera de Viena


Foto gentilmente enviada por Regine Brügelmann, 
bisneta de Hedy Iracema

(texto atualizado) 
AQUI
Il Trovatore - "Tacea la notte placida" (em alemão)

sexta-feira, 1 de junho de 2012



A presença de Iago 
no Otelo de Verdi-Boito 


por Ildefonso Côrtes
 
Otelo, ópera em quatro atos do italiano  Giuseppe Verdi, com libreto de Arrigo Boito, baseia-se na peça  “Othello, The Moor of Venice” (Otelo, o Mouro de Veneza) do inglês William Shakespeare. Penúltima ópera de Verdi, considerada por muitos sua obra prima. Estreou no teatro Alla Scala de Milão em cinco de janeiro de 1887. A ópera é passada na ilha de Chipre, ao final do século XV.

Em 1871, Verdi termina Aida, encenando-a com estrondoso sucesso. Decide, então, encerrar sua bem sucedida carreira de compositor de óperas, sendo à época o mais popular e certamente o mais rico compositor da Itália.

Aos olhos de editor de suas obras, Giulio Ricordi, pareceu-lhe um desperdício tanto do talento de Verdi como de possíveis lucros. Armou-se, então, uma espécie de trama para impedir a aposentadoria precoce de Verdi e tentar induzi-lo a compor nova ópera.

Por valorizar, sobremaneira, os aspectos dramáticos numa ópera, ele era extremamente seletivo na escolha de seus libretos. Somente um libreto de qualidade excepcional o atrairia após quase dez anos de afastamento. Admirador conhecido de Shakespeare, mas com o precedente do sucesso aquém do esperado de Macbeth  -ópera da juventude, estreada em Florença 1847- que causou em Verdi muita mágoa, pareceu a Ricordi, ao amigo maestro Franco Faccio e a Arrigo Boito, compositor e grande libretista, uma idéia capaz  de demover  Verdi de sua decisão de aposentar-se. A ópera seria baseada no Otelo de Shakespeare. Boito começa a trabalhar no libreto. 

Pronto  o libreto, Verdi começa a compor em segredo. Terminada sua música, ele arroga-se, inclusive, o direito de adiar a estréia até o último momento. O sucesso foi enorme, confirmando o acerto das ideias que inspiraram a nova ópera. Verdi teve de retornar ao palco umas vinte vezes, atendendo aos aplausos do público. 


Arrigo Boito com Giuseppe Verdi
Em sua gestação, tanto Verdi como  Boito quiseram dar-lhe o nome de Iago ao invés de Otelo, que afinal, prevaleceu como título de peça. Tudo devido ao tratamento dado por Boito ao personagem e também à participação de Verdi na concepção musical da parte do vilão. Embora condensando a trama em 800 linhas ao invés das 3500 originais, Boito manteve-se bem fiel à concepção de Shakespeare,  mantendo  o cerne do  drama. A criação do  Credo, ária do segundo ato para Iago, inexistente em Shakespeare, é uma indicação clara de que se pretendia dar ao personagem uma relevância maior no enredo.



Neste Credo, Iago se diz criado por um Deus cruel, semelhante a ele próprio, nascido da vileza dum germe ou de um átomo vil. É mau porque é um homem que sente o lodo primevo dentro de si. Desfila a seguir diversas afirmações em que se define como ser intrinsecamente mau, torpe, capaz de, sem nenhum remorso, cometer todas as vilezas.

Da maneira como Boito e Verdi engendraram o personagem, não é surpresa que, saindo do espetáculo, a maldade de Iago nos impressione mais que a triste sina do mouro de Veneza. O que o motivaria a destruir a confiança de Otelo em sua mulher? Ou a tomar atitudes que ele sabe que conduzirão à morte de uma inocente, um homem que trai a todos ao seu redor? 

Há inúmeras teorias que não cabe aqui comentar. Iago faz de tudo para atingir Otelo, atiçando-lhe o ciúme, chamado por Shakespeare de “green eyed monster” (monstro de olhos verdes), numa clara alusão à uma Desdemona de olhos verdes. À medida que Iago enreda Otelo em sua teia de intrigas a linguagem de ambos assemelha-se cada vez mais, levando-se  a uma interpretação mística do mouro, como que possuído pela espírito maligno de Iago. A ponto de Otelo, quando deslinda toda a intriga que o leva a assassinar  Desdemona,  exige de Iago mostrar-lhe os  pés, para saber se não se trata do verdadeiro diabo.

As maquinações de Iago, como fomentar rivalidades entre oficiais de Otelo, mentir sobre um sonho que teria ouvido da boca de Cassio num alojamento em que ambos dormiam,  forjar uma prova da traição de  Desdemona através do lenço presenteado por Otelo e outras maquinações existentes no Iago de Shakespeare foram sublinhadas na ópera e musicalmente acentuadas por Verdi dentro do contexto do libreto.

Além da maldade inata, há o rancor de  Iago contra Otelo  por tê-lo preterido em favor de Cassio. Há a inveja por ser ele o Doge de Veneza, guerreiro vencedor, negro e casado com a loura linda de olhos verdes, e apaixonada pelo marido a ponto de romper com o pai por sua decisão de casar-se com ele.

O gênio de Shakespeare com sua trama eletrizante e a contribuição que a ela deram Verdi, no auge de sua inspiração e maturidade artísticas, e Boito, exímio em sua arte, conferiram à opera este caráter  de obra prima musical, que, seguramente, está entre as obras de arte que dignificam o poder criador do homen e a própria condição humana.

Tito Gobbi - "Credo in un dio crudel"