quinta-feira, 10 de novembro de 2011


Madama Butterfly

 O cenário de um amor inventado

por Comba Marques Porto


Madama Butterfly passou a ser uma das óperas mais encenadas em todo o mundo, desde quando reapresentada depois da revisão feita pelo compositor, Giacomo Puccini, em razão da rejeição da obra na estreia em fevereiro de 1904.
O libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, apurado na medida certa das rigorosas exigências do compositor, tem como tema central a fidelidade de Cio Cio San à sua paixão pelo oficial americano e à sua crença em que ele voltará ao ninho de amor, mesmo depois de passados três anos de abandono. Nem Susuki, mais amiga do que serviçal, a convence de que não há precedente de marido estrangeiro que tenha regressado. Nada demove Butterfly. Nem o pedido de casamento do rico Yamadori que chega na hora certa para tirá-la da miséria. 
Há quem despreze o libreto desta ópera, baseado em obra do dramaturgo americano, David Belasco (1853-1931). Como inspiração literária, evidentemente, não se equipara a um Otello, de Verdi, assinado por Arrigo Boïto, baseado em obra homônima da Shakespeare. Mas, Puccini e seus libretistas tiveram o mérito de ter colocado em foco uma temática essencialmente feminina, com a qual levam o publico a se identificar e mesmo a se envolver com a dignidade de Butterfly, com a força de sua verdade, o que a torna um personagem profundo, aliás uma representação ficcional de algo que acontece no coração das mulheres – um amor inventado para chamar de seu, a fantasia de que este amor será para a eternidade.
O comportamento machista de Pinkerton, tal como delineado no libreto, é outro ponto interessante. Enquanto Butterfly, do ponto de vista dramático, amadurece ao longo da ópera, Pinkerton vai ficando com cara de menino de treze anos, exposto à sua covardia, à sua vilania proclamada na ária do terceiro ato: “Addio fiorito asil”.
Meu amigo Aloísio Teixeira, certa vez, disse que Puccini apequena os papéis masculinos, ora retratando-os como cafajestes (Pinkerton), ora os expondo à própria fraqueza em relação às personagens femininas.  Faz sentido. Tosca, por exemplo, com suas mãos sensíveis de artista, mata o temível Chefe de Polícia romana, ato que, num plano de coerência, seria mais provavelmente praticado por seu amado, Mario Cavaradossi, em ação com os rebeldes republicanos. Rodolfo não encara o drama de Mimi e disfarça sua covardia num ciúme estapafúrdio, puro artifício inconsciente para não se deparar com a morte estampada na face de sua amada.            
A encenação de Madama Butterfly não demanda mais que o espaço de um jardim, onde se passa o 1º ato, e da pequena sala da casa onde o drama da gueixa Cio Cio San se desenvolve até o desfecho trágico do harakiri. Porém, a casa de Butterfly é mais que um elemento cênico. É a metáfora de sua alma. É o espaço psicológico do abandono, da miséria, da espera, da esperança de que Pinkerton retorne. É o cenário de um amor inventado, da crença na palavra vã do oficial americano que, com o auxílio do agente Goro, promove a farsa do casamento com olhos no desfrute da jovem gueixa. Mais que um exercício insensível de apropriação da mulher, a conduta de Pinkerton retrata a atitude imperialista americana, a violação de valores culturais de um Japão devastado pela fragilidade econômica. O Cônsul dos Estados Unidos, Charpless, adverte Pinkerton de que a moça acredita na veracidade do casamento, mas não deixa de participar da burletta.
Em 2009, Madama Butterfly foi incluída na temporada do MET. A soprano americana Patricia Racette vive o papel-título com muita personalidade e expressiva teatralidade. Mas, nesta montagem, as novidades ficam por conta da concepção cenográfica (Michael Levine), dos figurinos (Han Feng) e da inserção do teatro de fantoches (Blind Summit Theatre, Mark Down e Nick Barnes).

O fantoche criado por Mark Down e Nick Barnes

Da primeira vez que assisti o DVD fiquei zangada. Não aprovei a concepção de representar o filho de Butterfly por um boneco com cara de japonês careca, quando consta textualmente do libreto que o menino tem cabelos louros e olhos azuis. Recentemente, revi o filme e, melhor refletindo, percebo que minha desaprovação, em verdade, deveu-se mais ao fato de ter me sentido pessoalmente afrontada pelo fantoche do que propriamente à questão da ruptura da encenação com a previsão do libreto para o papel do filho da Butterfly. Explico-me. Eu representei o filho da Madama Butterfly em sucessivas temporadas líricas cariocas, entre 1948 e 1951 e esta vivência artística me deixou marcas profundas. De lá vem, com certeza, o meu amor pela ópera, não fosse também o vínculo de amor com meu pai projetado no estímulo dele à minha cultura musical e ao gosto pela ópera. Uma experiência que não deixou de ter seus riscos. Sempre me indago: como posso ter sobrevivido do ponto de vista psicológico, tendo vivido inúmeras vezes a intensa cena da despedida - “Tu, tu, piccolo iddio...” - e tendo assistido o reiterado suicídio de “minha mãe”, ainda tão pequenina, quando, por óbvio, não sabia separar o que era ficção do que era realidade?
Naquela época ainda não havia maior preocupação com a exposição de crianças a situações traumáticas como a que se vê na Madama Butterfly. Nas inúmeras montagens de que participei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro sempre estive presente na cena que culmina no harakiri, talvez uma das passagens mais carregadas de dramaticidade dentre as óperas de Puccini. É bem verdade que havia a marcação para Butterfly me vendar os olhos. Mas, na atenção de seguir a sequência no acompanhamento exato dos compassos orquestrais, vez ou outra, sopranos não ajustavam a venda em minha pequena face. Movida pela natural curiosidade infantil, eu espichava os olhos e compartilhava da dor, do gesto extremo de Madama Butterfly.
O filho fantoche na encenação do MET/2009 parece uma solução politicamente mais adequada – nada de expor crianças a evento emocional tão forte. Mas, não é só isso. O trabalho do Blind Summit Theatre chega ser comovente pelo efeito teatral extraído com a manipulação do fantoche, êxito que poucas crianças intérpretes do papel tenham obtido desde 1904 até hoje. No mais, cenários, iluminação e figurinos belíssimos, concebidos na medida certa do que é essencial à plena realização estética da obra.  
Em verdade, a história de Madama Butterfly tem ênfase no que se passa no coração da personagem-título. Afinal, o que mais existe além da verdade de Butterfly, do seu obstinado desejo de voltar ao clima da primeira noite de amor? Das óperas de Puccini, esta talvez seja a que mais se destaque pela abordagem intimista, distanciando o compositor do verismo presente talvez em La Bohème ou mesmo em Il Tabarro e Suor Angelica. Um amor assim tão inventado quanto o de Butterfly desafia os pressupostos da realidade. Olhada a trama por este ângulo, representações alegóricas, tais como as utilizadas na referida montagem do MET em 2009, não agridem o espírito da obra. A licença poética, a inventividade de se levar o teatro de fantoches para o teatro contido na ópera, a integração desta linguagem ao conjunto da encenação e, sobretudo, o bom resultado estético obtido falam mais forte a quem abre o coração para o deleite da ópera. A quebra da observância literal do libreto perde importância.             

Madame Butterfly - Final - Patricia Racette     

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Requiem de Hector Berlioz:
a Grande Messe des Morts

Hector Berlioz (1803-1869)
Algum visitante poderá perguntar: e por que não o Requiem de Verdi, se o tema do blog é a ópera? Talvez por isso mesmo, porque ficaria óbvio demais -pensei. E porque o Requiem verdiano é quase uma ópera. E escrevi "quase" para atenuar a afirmação e me dispensar de maiores explicações e análises.  
Uma das mais belas e impressionantes obras do repertório clássico é a Grande Missa dos Mortos, o Requiem de Hector Berlioz. Berlioz criou uma peça verdadeiramente monumental. Achou pouco  apenas uma orquestra e um conjunto coral. Dobrou naipes, acrescentou conjuntos de metais, escreveu para dois ou três coros (cerca de 300 vozes,) podendo ser mais dependendo do regente. Tímpanos são no mínimo oito, podendo chegar a dezesseis! Todos juntos não cabem nem na maior sala de concertos do mundo. Massa orquestral imensa que precisa ser alojada em parte dos camarotes, na platéia ou nos balcões dos teatros.
Não se imagine, contudo, que com uma orquesta e coro dobrados Berlioz produziu um Requiem apenas grandiloquente e barulhento. A Grande Messe des Morts é também uma obra delicada, cujo contéudo é uma visão esperançosa e tranquila da morte, embora com abordagem dramática como em todo o romantismo. Se nas missas barrocas encontramos a busca do "superior", de Deus, nos românticos temos a sua aceitação e a afirmação da existência divina a comandfar o universo, a vida e também a morte. É assim com Beethoven na Missa Solemnis, e também com Berlioz nessa obra grandiosa.
A passagem mais espetacular do Requiem de Berlioz é sem dúvida o Dies Irae, quando Berlioz faz soar as mil trombetas e trovões do Juízo Final. Confira a passagem nessa versão regida por Sir Colin Davis. Repare que são 12 tímpanos e um bumbo soando juntos! Mais coros e metais triplicados. Massa orquestral superlativa capaz de arrepiar até o ouvinte menos sensível.

Aqui na versão de Sir Colin Davis a frente da Bavarian Radio Symphony Orchestra e do Bavarian Radio Symphony Chorus, dirigido por Herwig Saffert.
Hector Louis Berlioz - Requiem opus 5  (Requiem, Kyrie, Introitus, Dies irae, Quid sum Miser)


Mas, como é Dia de Finados, e para não ficarmos sem Verdi -que afinal ilustra esse espaço com sua imagem- aí está a íntegra de uma das melhores versões de seu Requiem, de 1967, com Herbert Von Karajan a frente da Orquestra e do Coro do Teatro alla Scalla. Os solistas são Leontyne Price, Fiorenza Cossoto, Luciano Pavarotti e Nikolai Guiaurov.

Giuseppe Verdi-Requiem