sexta-feira, 19 de julho de 2013

"Die Walküre" no Rio de Janeiro. Até onde vai a liberdade de criação na encenação de óperas?




Die Walküre, cenário original do primeiro ato. Bayreuth, 1876.

por Comba Marques Porto

Há duzentos anos, nascia em Leipzig um artista dotado de imenso dom para música e, em especial, para integrá-la à palavra e ao teatro. Na trajetória de composição de suas óperas realizou a Gesantkumstwerk – o conceito de obra de arte total, celebrando tal integração. Libretista de suas próprias partituras, começa a produzir nos anos 1830 e, ao final dos anos 1840, seu alto potencial inventivo volta-se para os elementos da mitologia nórdica, daí resultando a ópera Götterdamerung, O Crepúsculo dos Deuses. Ao tê-la pronta, sentiu necessidade de melhor explicar a saga dos deuses e, assim, escreveu mais duas óperas – Siegfried e Die Walküre, nesta ordem, e, por fim, Das Rheingold, o Ouro do Reno, uma peça mais curta com feitio de prólogo, perfazendo-se, assim, o drama lírico denominado Der Ring des Nibelungen, O Anel dos Nibelungos. Refiro-me, é claro, ao gênio da ópera alemã, Richard Wagner.

Depois de um silêncio de mais de cinquenta anos, ouviu-se a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro dar início aos acordes de A Valquíria, a segunda ópera da tetralogia na ordem usual de apresentação. Sou testemunha do que se ouviu e se viu na recente estreia ocorrida em 17 de julho de 2013 e vou direto aos pontos que gritam por comentários críticos: a concepção, a direção de cena e os cenários assinados por André Heller-Lopes.

Em O Crepúsculo dos Deuses exibido em São Paulo/2012, cenários e figurinos cativavam pelo bom resultado estético, ainda que inexistente vinculação significativa com o libreto. Em A Valquíria, ao contrário, a utilização de elementos das tradições culturais e religiosas brasileiras não funcionou. Estes elementos não guardam relação com o libreto de Wagner e, muito menos, atraem pela beleza. Faltou, principalmente, unidade na linguagem adotada. O cenário horroroso do primeiro ato não está em harmonia com os cenários dos atos seguintes, estes também inteiramente distanciados da concepção wagneriana.

No libreto as ações dos três atos de A Valquíria remetem a espaços abertos: o bosque que cerca a cabana de Hunding (1º ato); a paisagem rochosa e áspera, no alto de imensa montanha (2º ato); os altos montes em que as Valquírias se reúnem (3º ato). Heller-Lopes, ao contrário, fecha o espaço cênico nos três atos, confina a ação do 2º ato a uma sala de ex-votos, matando inteiramente a referência à natureza –elemento essencial que percorre as quatro óperas, com origem na retirada do ouro do Reno (Das Rheingold) e conclusão com sua devolução à terra, ao leito do rio, à natureza, em ato heróico de Brünhilde ao final de O Crepúsculo dos Deuses.  

O Siegmund entra em cena no 1º ato com a cara pintada de palhaço. Por quê? Para quê? Uma sugestão da perda de sua identidade wälse no sofrimento de suas andanças? Ou de que tornara-se um joguete nas mãos do pai, Wotan? Ou será que se pretendeu com a cara de clown posta em Siegmund fazer uma absurda citação de Leoncavallo? Sabe-se lá... Só faltou o maestro atacar os acordes de Vesti la Giubba no momento em que Siegmund fica só no palco. Ora, se é assim na base do vale tudo, o resultado simplesmente pode passar a não valer nada, não prestar.

E o que é a casa de Hunding nesta montagem? Nada a ver com “uma habitação primitiva, rude, construída em torno de uma gigantesca árvore” (Zito Batista Filho, pág. 623, Ed. Nova Fronteira, 1887).  A árvore até está no cenário, mas em absoluto contraste com os demais elementos cenográficos da sala do “apê” do Hunding, talhado como um nouveau riche, um mafioso italiano, um corrupto brasileiro!? Despropositado o grande espelho à direita da sala. Pior ainda a mesa e as cadeiras de forro aveludado, algo que se pode encontrar nas vitrines das piores lojas do ramo moveleiro carioca. E por que tantos homens acompanhando o Hunding no 1º ato? Ah, claro! Para poder exibir os indefectíveis ternos - no caso, fraques - presentes na maioria das montagens modernosas da atualidade. E o que tudo isso tem a ver com a concepção de Wagner para a cena de Hunding no 1º ato? Nada. Nada mesmo.    

A sala dos ex-votos que ambienta o 2º ato invoca a tradição cristã cujo Deus não guarda sintonia alguma com os deuses humanizados da mitologia nórdica. Os ex-votos remetem à fé e às crendices do povo brasileiro. Mas não há povo na Valquíria! Vive-se ali o destino dos deuses, a caminhada para o ocaso dos deuses, os conflitos de Wotan, suas encrencas matrimoniais, seus amores mal resolvidos, seu aprisionamento no próprio poder que engendra – poder que era absoluto, e que agora é ameaçado pelo nibelungo Alberich.

Se era para dar ênfase ao elemento religioso, um terreiro do candomblé faria mais sentido. Pelo menos traria a invocação da floresta, elemento do libreto. Encenações deste tipo sugerem a pretensão do diretor de disputar com o criador da obra, o que é grave. E querer tirar essa onda logo com Wagner, tão cioso dos detalhes na realização de seu ideal de Gesantkumstwerk? Até onde vai a liberdade de criação na encenação de óperas? E como deve reagir o público quando esta criação deixa de ser uma possível leitura do libreto para se transformar em verdadeira mutilação da obra?

Sorte do diretor é encontrar um público, por assim dizer, generoso como o que tivemos na noite de estreia de A Valquíria, a ponto de aceitar um Siegmund entrando em cena com a cara pintada de palhaço, como se tivesse acabado de sair da função num circo mambembe. Eis um exemplo de encenação e figurino que só ajudaram a piorar a situação do tenor búlgaro Zvetan Michailov. Em que pese o currículo exposto no programa, sua performance inexpressiva em termos vocais e cênicos não agradou, tanto que foi o menos aplaudido ao final.

A soprano Eliane Coelho como Brünhilde, no alto de sua experiência e com seu inegável carisma artístico, fez um bom 3º ato, em contraste com a atuação de Licio Bruno que não realizou a contento os conflitos e a fúria de Wotan. Seu desempenho vocal, na verdade, antecipa a queda dos poderes do deus supremo e seu Walhalla. Eiko Senda surpreendeu em Sieglinde. Denise de Freitas, com voz brilhante, como que talhada para cantar Wagner, nos brindou com uma Fricka muitíssimo segura e de forte intensidade dramática. A popular Cavalgada das Valquírias contou com a participação de jovens e promissoras cantoras líricas nacionais. Pena é ver esta cena confinada ao exíguo espaço criado pelo diretor, quando se tem à disposição o vasto palco do nosso Theatro Municipal.       

A orquestra se apresentou composta de músicos predominantemente jovens e o bom resultado obtido pelo maestro Luiz Fernando Malheiro deve ser reconhecido, sobretudo se levada em conta a ausência de uma atividade continua de óperas, marca dos tempos mambembes – e a palavra me volta! - que temos vivido na cidade do Rio de Janeiro.   




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quinta-feira, 4 de julho de 2013

Violeta Coelho Netto de Freitas




A voz que vinha da alma


por Henrique Marques Porto

Os artistas de todas as áreas têm razão quando afirmam que para iniciar e construir suas carreiras é preciso ter, além de vocação e talento, muito estudo, oportunidades e uma boa dose de sorte.

A estreia de Violeta Coelho Netto de Freitas, em 1934, no Rio de Janeiro, parece que reuniu todas essas condições. 

Violeta, filha do escritor Coelho Netto, nascida em 30 de julho de 1909, já era conhecida do público bem antes de estrear na ópera. Ainda adolescente, com apenas 13 anos de idade, o nome Violeta Coelho Netto já aparecia nos jornais. Mas, não nas editorias de cultura e arte ou nas colunas sociais e sim nas páginas esportivas. Violeta praticava natação e participou desde muito jovem de vários torneios e campeonatos. Nadava pelo Fluminense Futebol Clube e pelo Clube de Regatas Guanabara.  No dia 5 de março de 1922, por exemplo, ela venceu a prova dos 50 metros rasos para meninas, numa “Festa Aquática” organizada pelo Clube de Regatas Guanabara na enseada de Botafogo. 

Quatro anos depois voltava com destaque ao noticiário, mas agora nas colunas dedicadas às artes. Com 17 anos, Violeta dançava e se apresentava em público. Já começara a cantar e sua voz chamava a atenção. 


Nessa época, Bidu Sayão já fazia sucesso e recebia as atenções do poderoso e influente empresário Walter Mocchi, com quem se casaria pouco tempo depois. Numa declaração aos jornais, Mocchi elogiou a voz de Bidu e também a da jovem Violeta Coelho Netto, que se apresentava apenas em clubes e saraus privados. Procurada por um repórter do jornal “A Noite”, Violeta reagiu com surpreendente maturidade em relação aos elogios de Walter Mocchi. 

-Não, não fale em minha voz. Ela não está suficientemente educada sob o ponto de vista artístico. 

Não estava, mas logo estaria. Nos anos seguintes continuou a nadar e a dançar. Também participava de recitais poéticos. Mas, em meio a tanta atividade, não descuidou de se aperfeiçoar no canto, tendo aulas com a professora Hilda Brizzi. Apresentava-se para o público com frequência e até participava de transmissões radiofônicas. No repertório, canções e árias de óperas. 

Assim foi até os primeiros anos da década de 1930 quando conheceu aqueles que seriam os responsáveis mais diretos por revelar ao grande público a sensibilidade musical, o talento e sobretudo a bela voz de Violeta para a ópera. Passou a ter aulas de canto com Gabriela Besanzoni e conheceu o crítico musical Henrique Marques Porto (meu pai), um homem visceralmente apaixonado pela ópera e dotado de agudo senso observador. Possuía a rara capacidade de reconhecer facilmente uma voz de qualidade, ainda que em formação. Seriam amigos por toda a vida. Quando encerrou a carreira, Violeta deu-lhe uma foto onde escreveu: "A Henrique Marques Porto, o meu descobridor" -sublinhado por ela.  

Violeta já estava com a voz formada, mas faltava-lhe a experiência decisiva para qualquer artista -enfrentar o palco numa ópera completa e se submeter ao julgamento do público, que é quem tem a palavra final sobre o destino de uma carreira. 

Violeta hesitava. Casara com Jorge Amaro de Freitas, o primeiro filho nascera, o segundo estava a caminho. Seu extremo senso prático indicava que a vida real e as responsabilidades familiares talvez não combinassem muito com a carreira de cantora lírica e com o ambiente, às vezes incerto, dos bastidores dos teatros. A arte e a vida precisavam chegar a um acordo.

A voz estava pronta. Gabriela e Marques Porto a estimulavam. Dessa vez ela não poderia alegar que faltava-lhe “suficiente educação artística”, como dissera aos dezessete anos para repelir a curiosidade de um repórter. 

O acordo entre a vida e a arte veio em 1934. Ano após ano era cada vez maior o número de cantores brasileiros que participavam das temporadas líricas no Theatro Municipal e em outros teatros e espaços, em grande parte graças ao trabalho de Gabriela Besanzoni, que transformara seu palacete no Parque Lage em verdadeiro centro de formação de cantores.   

Naquele ano, Marques Porto era também diretor artístico do Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Com apoio da direção do Theatro Municipal decidiu realizar no tradicional clube uma pequena temporada lírica. Reuniu um grupo de cantores composto por profissionais, estreantes e alguns diletantes e decidiu o repertório: “Cavaleria Rusticana” e “I Pagliacci”; “Barbeiro de Sevilha" e –suprema ousadia- uma grande produção de “Aida”, ao ar livre, num bosque que existia ao lado do Clube. 

Violeta Coelho Netto de Freitas estava no elenco dessa temporada lírica, e todos reconheciam que era o grande destaque. 

Estreou cantando a Santuzza, na “Cavaleria Rusticana”, de Pietro Mascagni, no dia 26 de novembro de 1934. Com ela atuaram o tenor Machado Del Negri e o barítono Luciano Cavalcanti nos papéis principais. Orquestra e Coro do Theatro Municipal, sob a regência do maestro Luiz Belobonno. Violeta obteve um enorme sucesso, que repercutiu no meio musical carioca. Estava feito o acordo com a arte. 



Mas, por muito pouco esse acordo não aconteceu. Dois dias depois de sua estreia, uma fatalidade. No dia 28 de novembro faleceu seu pai, o festejado e conhecido escritor Coelho Netto. Violeta tinha na figura do pai um incentivador de seus talentos, inclusive para o canto. Se o destino antecipasse a partida de Coelho Netto, é certo que Violeta não estrearia. Talvez até desistisse da carreira que ganhara contornos claros com o sucesso na "Cavaleria Rusticana". Mas, os deuses da música são sábios.    

A partir dessa apresentação o caminho estava aberto para a carreira. Em 1937, quando Gabriela Besanzoni era a Diretora Artística do Theatro Municipal, foi realizada a primeira temporada lírica exclusivamente com cantores nacionais. Chamada por Gabriela, Violeta se encontrou então com a personagem que marcaria a sua trajetória em nossos palcos –a Cio-Cio-San, de “Madame Butterfly”, de Puccini. Voz e físico perfeitos para o papel. Violeta era mignon e graciosa, com expressivos olhos negros levemente amendoados. A voz era de timbre lírico mas robusta, o que lhe permitia enfrentar com facilidade as acentuações dramáticas da partitura, sobretudo a partir do segundo ato da ópera. 

Seu fascinante desempenho em Butterfly logo atraiu o interesse de empresários e teatros de outros países, principalmente dos Estados Unidos. Não faltaram convites para que se apresentasse no exterior. Violeta recusou todos. Não fez carreira internacional porque não quis. Abriu exceções para cantar em Buenos Aires no início dos anos 1940 e para o concerto no Carnegie Hall, em 1947. 

Nos anos seguintes firmou-se como a mais importante e respeitada cantora lírica brasileira, e ajudava na formação de jovens colegas, como fez com Clara Marise nos anos 50 e, na década seguinte, com Maria Helena Buzelin. Violeta era uma unanimidade. Seu nome era regularmente incorporado aos elencos estrangeiros que, ano após ano, vinham ao Brasil para as temporadas internacionais de ópera. Atuou sob a regência de grandes maestros e contracenou com muitos dos melhores cantores de seu tempo. Para ficar em dois exemplos, foi Mimi, em "La Bohéme", com Ferruccio Tagliavini, ou a Margarida, do "Mefistofele" de Boito, com o baixo Giuglio Neri. Nunca perdeu a humildade que a caracterizava; jamais cultivou as vaidades tão comuns no meio teatral.

Encantado com suas performances em “Madame Butterfly”, o embaixador do Japão no Brasil presenteou-a com um legítimo quimono japonês –peça de finíssimo acabamento que Violeta usou até o fim da carreira. O figurino foi doado por ela ao Museu dos Teatros do Rio de Janeiro. Ainda deve estar lá, se o descuido não o levou. 

Violeta despediu-se dos palcos em outubro de 1959, quando cantou pela última vez “Madame Butterfly”, com o tenor Alfredo Colósimo, o barítono Sylvio Vieira e a mezzo Carmem Pimentel. Retirou-se sem muito alarde. Foi uma decisão consciente e segura. Poderia ter seguido com a carreira por mais alguns anos, mas preferiu legar ao seu público a lembrança de uma voz íntegra e limpa, não corroída pelo tempo. Desejava sobretudo dedicar-se inteiramente à família. Longe dos palcos, continuou a cantar por muitos anos, mas apenas em casa, para os amigos e familiares, ou em missas e ofícios religiosos. 

Do mundo se despediu em 1997, com o indicador entre os lábios, como quem pede silêncio. A imprensa da época sequer dedicou-lhe uma resumida e formal nota fúnebre. Merecia manchete e página inteira. 

Quem escreve testemunhou as duas despedidas –no Theatro Municipal, ainda criança, em 1959, e em 1997 na missa por sua alma, numa Igreja no bairro do Jardim Botânico. Um coro modesto, da própria igreja, cantou de forma comovente o “Coro a Bocca Chiusa”, da ópera que marcou a carreira de Violeta Coelho Netto de Freitas. Não poderia ser outra a música.   

Em 1938, numa pequena crônica que escreveu para o jornal “A Noite”, Violeta assinalou:

“E que mundos se descobrem diante da imaginação exaltada por um canto que vem dos recônditos da alma de quem canta!” 

A frase ecoa como uma definição pessoal. Violeta Coelho Netto de Freitas, o mais longo nome artístico da história do canto –seu nome inteiro, sem nada tirar nem pôr- cantava com a alma.  

Fontes:
1) Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional
2) Arquivos pessoais do autor.

 
Coro a Bocca Chiusa - "Madame Butterfly"
Vozes para a Paz - Maestro Miguel Roa