domingo, 2 de dezembro de 2012

Cantores líricos usaram microfones em opereta. Público botou a boca no trombone.






“Ontem fui ver Götterdammerung de Wagner (...) 
Você já viveu sem ter curtido Wagner?”

(no dia 02/05/1993)


“(...) Mas em Wagner só se aplaude quando o maestro executa a última nota. Aí se aplaude de maneira que espantaria a torcida do Flamengo e do Corinthians”.

 (no dia 06/05/1993)


Paulo Francis - O Globo
por Heliana Farah *

Kitcsh, brega e cafona, a maioria das definições desses termos trazem referência a excesso de qualquer natureza. 

O que isso tudo tem em relação às vaias no Theatro Municipal do Rio de Janeiro na última quarta-feira, dia 28/11, e à Voz Lírica? Começarei ilustrando por um episódio narrando o oposto.

Há bem pouco tempo, ainda em novembro de 2012 fui a uma récita da Forza del Destino, de Verdi, num espaço pequeno e apresentada com acompanhamento de piano. O tenor era sublime e logo depois de sua primeira ária começamos a urrar delirantemente e a aplaudir. Duas senhoras umas duas fileiras à nossa frente nos olharam com cara feia e falaram alguma coisa para gente. E com “a gente” me refiro a pessoas que realmente conhecem ópera e tradição operística. Não entendemos, achamos que inacreditavelmente elas não haviam gostado do tenor. No fim da récita, uma outra senhora que estava entre a gente e essas duas nos explicou o motivo da irritação: elas diziam que estávamos nos portando como se estivéssemos no Maracanã! Essas não conhecem nada de ópera e nem leram Paulo Francis! Pois é, ópera sempre atraiu gente metida a besta que gosta de ir para esnobar, muitas vezes nem gosta do gênero, mas se força a gostar, afinal acham chique.

Se a gente analisa ópera, vemos que em tudo ela está ligada ao exagero: de sentimentos, de voz, de pessoas envolvidas... Então porque será que as pessoas que só vão à ópera porque acham chique não deixam os que realmente gostam do gênero em paz? Ópera, se a gente for pelo lado do exagero, é brega, cafona e kitsch. Eu adoro ser cafona! Infelizmente, viu! Porque dá muito trabalho gostar de ópera tanto assim.

Digo mais: até Wagner a plateia ficava iluminada como num show de MPB hoje em dia. As pessoas iam para fazer social, namorar, fechar negócios e eventualmente assistir. Naquela época era uma arte viva e não um museu no qual querem transformar o gênero. As pessoas interagiam com bom senso, afinal havia gente prestando atenção. Isso é muito bem retratado naquele filme “Farinelli”. Pois é! Aí veio Wagner, que se achava (e até era, mas se achar é feio, né?) e resolveu que as pessoas no teatro tinham que prestar atenção exclusiva nas obras dele. Ele apagou as luzes da plateia e instituiu que palmas só no fim do espetáculo. Se deu mal! Ele mesmo ficou incomodado com a falta de aplausos e de uma feita quis puxar as palmas. Foi imediatamente repreendido pelas pessoas da plateia que não sabiam quem havia aplaudido!

No alla Scala já jogaram até um gatinho vivo de paraquedas (pobre gatinho) que caiu lentamente enquanto a cantora miava junto com ele. E alguém vai tentar me provar que os italianos sabem menos de ópera? Foram eles que inventaram a brincadeira! Independente dessa tradição, me parece lógico e justo que se existe o direito de aplaudir deve existir o direito de vaiar! A gente já viveu a ditadura. Vamos aceitar censura? Isso começa assim como um ventinho, como narrado em La Calunia!

Ouvi falar no respeito ao artista, que sim deve existir, mas e o respeito à plateia, que no final das contas é a razão de tudo isso? Isso de artista gênio que doa sua arte me parece tão wagnerianamente narcisista. O artista precisa do público tanto quanto o público precisa do artista! Já se foi o tempo quando no final da récita de estreia de um cantor na Europa Central ele aparecia para os aplausos e o público colocava os polegares para cima ou para baixo se queriam ou não que ele fosse contratado pelo teatro. Não lembro quem narrou isso, mas foi um dos cantores do livro do Frances James Cooke ou da Harriete Brower.

Mas aí chegamos à voz lírica. Para conhecer uma história podemos ler um livro, ver um filme, assistir a um musical... Para ouvir música podemos ir a um recital, um musical, ouvir mp3, vinil... O que só a ópera tem? A voz lírica! Retirando isso o que resta???

Porque é tão difícil ouvir uma criança chorar? Se é conhecida corremos para acudir e se desconhecida ficamos irritados. Porque o rugido de um leão provoca medo? Eles têm em comum com a voz lírica uma característica acústica que seria demais tentar explicar aqui. Na voz lírica essa característica aparece de forma controlada, estudada para emocionar. Muito provavelmente o homem cantou antes de falar, e essa produção sonora comunicava sem palavras. Isso quer dizer que o som da voz humana, principalmente se utilizado de uma determinada maneira, emociona, independente das palavras. E perde um pouco dessas características se amplificado. Por quê? Porque a captação e amplificação excluem algumas frequências assim como uma foto nunca capta a realidade de um lugar por inteiro. Por que cansamos mais se falamos muito ao telefone, muito mais do que falar pessoalmente? Porque ao telefone as frequências são reduzidas ao mínimo para compreensão (às vezes incompreensão) e acabamos forçando a voz numa tentativa errônea e desesperada de nos fazer compreender. O telefone é o exemplo extremo do que estou tentando exemplificar. Nessa linha, vocês vão me perdoar, preciso deixar o que é inédito para minha tese.

Mas tem mais questões sobre o uso de amplificação em teatros líricos. Num jornal americano vinha a pergunta: “seria amplificação doping musical?”. O que esse jornalista quer dizer? É que nem todos os tenores vão conseguir cantar Otello ou Tannhäuser e nem todas as sopranos vão conseguir cantar Brünhilde ou Lady Macbeth. E também nem toda soprano vai cantar bem Mimi. Não sem microfone. Existe a história de uma crítica em Nova Iorque, quando uma soprano wagneriana cantou Mimi. O título da crítica era: “Si, mi chiamano Mimi, ma il mio nome è Brünhilde”. Se essa senhora usasse microfone, ela podia cantar todo o papel em falsete e estaria tudo resolvido. (Sim, existe falsete feminino! é mais difícil de ouvir falsete na mulher e peito no homem, mas eles existem). Assim como Adelina Patti, maior cantora do final do século XIX, não teria passado vexame ao tentar cantar Brünhilde: sua voz não seria engolida pela orquestra.

Quero aqui dizer que cada um se atenha à classificação vocal a que pertence, ponto final? Não, eu vejo classificação vocal (Fach) como proteção, não proibição. Se você dá conta, cante! Nesse sentido Lauri-Volpi dizia que essa história de dividir tenores em Dramáticos, Líricos e di Grazia (Ligeiros) era pra quem não sabia cantar. Ele então não admitia diferença entre as vozes? Claro que admitia, tanto que o livro dele se baseia nessas especificidades das vozes. O que ele queria dizer é que um bom cantor, dentro do razoável, deve poder dar conta de um repertório bastante amplo, de sua forma e respeitando sua natureza, mas com dignidade. Se uma soprano leve quer cantar Carmem? Tudo bem, desde que apresente graves e se faça ouvir em toda extensão. E isso era bem comum. As vozes eram classificadas pelo peso da voz e não pela cor. O que quer dizer “o peso da voz”? O quanto de registro mais grave, logo pesado, era levado para cima. Podem procurar baixos como Edouard de Reszke ou Pol Plançon. Ouvindo-os hoje poderíamos rapidamente classificá-los até como tenores pela cor da voz. Mas basta ver a facilidade que descem e o peso que têm na voz. (Vemos então o quanto estamos escurecendo desnecessariamente as vozes hoje!). Então o inverso é verdadeiro: se você não vai dar conta de cantar a contento não cante. Lamperti proibiu sua aluna Marcela Sembrich de cantar Aida porque ela não sabia descer para o registro de peito.

Essa é realmente uma lenda urbana de fácil localização: final do século XIX: Henry Holbrook Curtis. Foi ele que começou com a fantasia que voz de peito faz mal. Sundberg, o maior teórico de fisiologia da voz de hoje diz o contrário: descer abaixo de mi3 (mi central) sem usar peito faz mal. Ele nunca diz que faz mal puxar o peito um pouco para cima. Aliás, é o que os tenores fazem e cantam a vida toda (claro que não é peito puro, mas uma voz “mista” com um grande componente de peito- alguns tenores dramáticos levam o peito puro até lá 3 - ouçam Tamagno e Zenatello). Essa lenda ganhou força quando já na década de 50, quando a expectativa de vida tinha subido consideravelmente, começaram a comparar o tempo de vida útil das cantoras do passado. Ora, na virada do século, uma boa expectativa de vida era de 60 anos, uma mulher de 40 e um homem de 50 já eram velhos. Claro que as pessoas se aposentavam antes, com algumas exceções. E estragar a voz é apenas uma das razões para se encerrar uma carreira. Muitas mulheres se casavam, outras pessoas ganhavam o dinheiro que consideravam razoável, algumas não suportavam a pressão do mercado e a eterna necessidade de “ser sociável” para conseguir carreira etc. Isso apenas pra dizer que se alguém se propõe a fazer um repertório não há justificativa para não fazê-lo direito. Melhor não fazer e não usar microfone.

E existe também a questão aural. Quando há amplificação eletrônica a fonte sonora deixa de vir da boca, de onde deveria vir, e cria uma confusão aural. Bem verdade que estamos habituados a isso em função de televisão, cinema e shows de rock. Mas quem está, por outro lado, habituado a vozes líricas realmente se sente perdido.

O público de hoje perdeu totalmente a referência de vozes líricas. Curtis, no fim do século XIX, começou sua cruzada para adequar a ópera ao gosto americano, e o que estamos vendo no início desse século XXI é que estamos chegando lá: ópera está virando musical.

Ricard Miller escreveu, na revisão ao seu livro mais famoso, sobre as escolas nacionais de canto, que se alguém quer estudar canto lírico usando a técnica vocal histórica italiana não vá para Itália porque ela não existe mais lá. Os Estados Unidos seriam o lugar onde essa técnica é ensinada. Mas isso se dissolve em questão de minutos. Ouçam  Bellincioni, Tetrazzini, Bruna Rasa, que representam a escola histórica italiana e as comparem com Renee Fleming, Deborah Voigh ou outra americana recente. Nada há em comum além do CONTORNO melódico e rítmico da música.


* Heliana Farah é Professora de História da Ópera e Oficina de Ópera da Universidade Federal do Rio de Janeiro

10 comentários:

  1. Excelente texto! Só discordo no que tange à Renée Fleming! Ela é excelente! Voigt nem tanto...

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  2. Pois é
    Também concordo, tirando a parte da Fleming, Voight também não gosto, mas a técnica delas nada tem a ver uma com a outra.

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  3. Não concordo em absolutamente nada! Texto cheio de achismos.
    Tudo isso para se posicionar em contra de uma opereta que foi microfonada. Coisa corriqueira no mundo inteiro e em especial em Viena (pátria da opereta). Em vez de buscar justificativa esdrúxulas, deveria a professora se perguntar sobre a péssima acústica do TMRJ, sobre a falta de técnica vocal dos cantores, que só servem para cantar operetas... com microfone. Ah, isso não pode dizer. Não é politicamente correto.

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  4. Há achismos no texto? Alguns, porém muitos dados e informações embasadas que mostram certas verdades que muitos não querem ouvir. Há dados errados ou apresentados de forma por demais tendenciosa? Igualmente os há. Entretanto, o ponto principal do texto é feito: e, caso o comentador acima não perceba, o artigo toca exatamente na questão da falta de técnica à qual ele se refere, porém de maneira educada e civilizada, como convém à uma professora do meio que não pode sair colocando as coisas do mesmo modo agressivo que ele utiliza. Aliás, caso ele não tenha reparado, o artigo vai muito além de se posicionar contra uma opereta microfonada, defendendo a ópera e o canto lírico que muitos hoje em dia preferem ver aviltados, apenas partindo do caso para expor uma série de ideias e demonstrar a precariedade da cena lírica atual em diversos níveis (dos intérpretes e sua técnica ao próprio conhecimento e interesse do público). Não se trata apenas de uma mudança estética, mas de uma perda de noções e características básicas para a sobrevivência e existência do gênero, sem as quais ele perde a razão e a identidade. Pouco importa se em outros lugares do mundo (seja em Viena, Nova York ou Marrakesh), a opereta é microfonada, ela não deveria o ser em lugar algum. Se é canto lírico o que está sendo vendido, nada justifica o uso de amplificação, a não ser que o espetáculo esteja sendo montado ao ar livre ou coisa similar. A desculpa que alguns usam dos diálogos falados é uma grande falácia, afinal quando se monta uma Flauta Mágica, um Fidelio ou ainda a Carmen tal qual a escreveu Bizet (não a versão com os recitativos de Guizot) não se recorre ao mesmo recurso, não é mesmo? Além do mais as operetas em geral e a Viúva Alegre em questão não começaram a ter diálogos falados após a invenção da amplificação no teatro e muito menos este ano. A Viúva assim é desde que nasceu e desse jeito continuava a ser em 1982, 1986 e 1994, quando foi levada no mesmo TMRJ e no João Caetano sempre sem microfones. Porém, é como li outro dia, mesmo no teatro dramático (falado) as pessoas estão desaprendendo a falar e a impostar a voz, recorrendo, cada vez mais, mesmo em teatros pequenos, aos microfones: se até aí o processo de degradação chegou, por que esperar que a coisa seja diferente no caso de uma ópera? Afinal, ninguém ali tem a obrigação saber impostar a voz corretamente mesmo, não é?
    Agora sobre as pessoas correndo em defesa de Deborah Voigt e Renée Fleming, por favor percebam que em momento algum se fala mal delas diretamente. O que se coloca é que o canto e a técnica delas, ao contrário do que quer se vender, está longe da tradição de canto (italiana) que a professora defende. Nada foi dito de forma a ofende-las diretamente. No entanto, não deixa de ser uma contradição em termos as pessoas virem elogiar e falar que concordam com o artigo e ao mesmo tempo defenderem representantes de um estilo de canto antitético em relação que o texto defende, independentemente de sua validade ou não.

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  5. Um esclarecimento: O texto acima não é meu. Digo isso porque foi citada literalmente a frase: "A Viúva assim é desde que nasceu e desse jeito continuava a ser em 1982, 1986 e 1994, quando foi levada no mesmo TMRJ e no João Caetano sempre sem microfones.", de um comentário meu no facebook. Como algumas pessoas leram a mesma fease nas duas situações e o comentário acima é anônimo, quiz deixar claro que não sou eu o autor.

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    1. Marcos,
      Sou testemunha de que o seu esclarecimento tem sentido.
      Lembro bem do seu comentário e ele ainda está lá no Facebook para quem quiser confirmar.
      O leitor anônimo deve ter lido, e suponho que esqueceu de indicar que a frase é sua.
      abração,
      Henrique Marques Porto

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    2. Sim, Marcos Menescal. Desculpe. Usei uma frase sua que havia lido e, inicialmente, havia lhe creditado, porém conforme fui alterando o texto, tirei-lhe o crédito e esqueci de, merecidamente, dar-lhe a você uma outra vez.
      Aproveito e faço uma correção, pois relendo agora o que escrevi vi que atribuí os diálogos falado a Guizot, que sequer músico era, quando, na verdade, eles são de Guiraud. Ah, esses franceses...

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    3. Não se preocupe. Nem precisaria me dar o crédito porque não é nada demais. Só quiz evitar que alguém atribuisse a mim a autoria do seu comentário.

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  6. Pois eu gostei muito do texto. Alem de varias passagens e varias citações, o texto ressaltata aquilo que é principo de um voz lirica, a sua exitencia sem artificios. Quem canta com microfone não é cantor lirico. A voz lirica tem como natureza a sonoridade natural. Ninguem oferece um microfone a um cachorro e o seu latido se esculta por varios quarteirões. Não tão gloriozo o miado de um gatinho se escuta longe. Gozado que esses bichinhos maravilhosos não estda canto (e nem musica) e canta maravilhosamente bem. Que não tem copetencia para cantar sem microfone, escolha outra profissão, pois cantor lirico não é.

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  7. Reneé Fleming tem um buraco na voz. Quero dizer com isto que há harmônicos graves e agudos e faltam os médios. Uma voz descontrolada. Não sei como a consideram grande.

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