quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Um encontro com Lourival Braga




por Henrique Marques Porto

Ao longo da vida todos vivemos experiências que são únicas, que só nós as vivemos. Sozinhos ou com alguém. É o caso dos encontros fortuitos, sempre marcantes. Se um dos dois parte deste mundo doido fica-se sozinho, guardião solitário de um registro, de uma conversa, de uma lembrança ou de um simples fragmento de memória. Alguns deixam que a memória se dissolva no correr dos dias, cada vez mais rápidos. Ela, a memória, deixa, então, de ser coisa real e vaporiza-se, vira coisa para sempre esquecida, como um arquivo de computador que não se pode mais recuperar.

Não é o caso de quem escreve. Prefiro guardar bem guardadas as memórias, porque acredito que somos a memória que temos. Mas, jamais como relíquia condenada ao mofo. Isso tudo para dizer que o melhor que fazemos é contar histórias. O leitor saberá o que fazer com elas.

Um dia encontrei, por acaso, com Lourival Braga, e acho bom contar logo. Foi numa tarde nos primeiros meses de 1970 –março ou abril-, na Rua do Passeio, na calçada colada ao Passeio Público, em direção à Rua Santa Luzia.

Lourival Braga foi barítono dos bons. Sentia-se bastante confortável no repertório verdiano, mas enfrentava os papéis do verismo com valentia e a mesma qualidade. Dele pode-se dizer que era quase um intuitivo. No entanto, o que lhe faltava em refinamento técnico era plenamente compensado por um talento e uma musicalidade enormes.

O encontro com Lourival aconteceu a uns três ou quatro dias da estreia de um “Othello”, no Theatro Municipal. Assis Pacheco foi o Mouro –artista múltiplo, foi, também, cenógrafo, diretor de cena e figurinista; Marisa Mariz foi a Desdemona. Lourival cantou o desafiador Yago –um papel dificílimo que os barítonos medrosos, de vozes frágeis e sem temperamento dramático devem, por prudência, evitar. Não era o caso de Lourival Braga.

Logo depois de passar pela entrada do Passeio Público, quem eu vi? O próprio. Lourival caminhava na mesma calçada e na minha direção, a uns dez ou quinze metros. Estava sério, cenho franzido, cabeça baixa, dizia coisas para ele mesmo, gesticulava, balançando o braço esquerdo e abrindo as mãos, e apontando o indicador da mão direita para uma direção imprecisa, como quem faz uma advertência a alguém.

Pensei: “-Ih! O Lourival está incorporando o Yago! Ou então ficou maluco e deu para falar e gesticular sozinho pela rua...”

Apressei o passo e o interrompi. Coloquei a mão em seu peito e saudei:
“-Lourival!”

Ele me olhou por um instante, me reconheceu, mesmo estando eu com os cabelos nos ombros, como se usava então, saiu do transe e me abraçou fortemente e com carinho. Lourival era corpulento - mais alto do que eu, que ainda tinha uns centímetros para crescer- e tinha um jeito característico de andar, porque a perna esquerda era levemente arcada.  

-Ô, meu filho! Como você está? Que bom te ver! Pôxa, eu fiquei muito triste quando soube do falecimento do seu pai (meu pai falecera uns meses antes). Ele era muito meu amigo e sempre me deu muita força. Você me desculpe não ter ido ao enterro, mas eu não podia mesmo, estava com compromissos. E sua mãe e seus irmãos? Estão bem? Precisam de alguma coisa?

Lourival era assim: homem simples, afetivo, carinhoso, atencioso. Não tinha nada da afetação que acomete algumas estrelas e estrelinhas, falsas ou verdadeiras.   

Para mudar de assunto e deixar lembranças tristes para trás, pergunei:
“-E o “Othello”? Como é que está esse Yago? Eu não vou perder esse, hein! Já combinei de ir com minha namorada, que vai à ópera pela primeira vez."

“-Ih, rapaz..Eu nem estou pensando em Othelo, nem em Yago, nem em ópera nenhuma. Meu dia está uma merda. Tive um aborrecimento enorme no serviço. Na verdade uma briga feia com um sujeito que torrou meu saco. E eu não tenho paciência para frescura. Dei logo um esporro e a situação ficou feia. Estou com a cabeça cheia e não consigo pensar em outra coisa...”

Pausa para uma breve reflexão.

Ele não contou detalhes do incidente, nem era o caso, mas enquanto ele falava eu caí das nuvens e, estupefato, fiquei pensando: primeiramente, aos diabos com o cara que brigou com o Lourival numa semana de “Yago”! E mais importante: como era possível um artista da dimensão do Lourival Braga estar “no serviço”, e ter brigado lá, na quase antevéspera de uma estreia importante, na qual ele teria que dar conta de um dos mais difíceis personagens de Giuseppe Verdi e de todo o repertório operístico, um desafio verdadeiro para qualquer grande cantor? Que “serviço”, santo Deus? Se não me engano, Lourival era funcionário da Casa da Moeda. O trabalho ou “o serviço” do Lourival era cantar ópera! E só e apenas isso! Katz! Naquele dia, nos anteriores e nos dias seguintes ele deveria estar repassando a partitura, testando e refinando fraseados, estudando detalhadamente cada cena, etc.

Que fique a lição. Lourival Braga era grande, mas seria muito maior se pudesse se dedicar apenas à sua arte, ao invés de ter que dividi-la com sei lá quantas horas semanais de trabalho num escritório, gastando voz, energia e talento com outro trabalho, infelizmente indispensável para seu sustento e de sua família.   

A dura realidade do artista lírico brasileiro, tantas vezes fantasiada com brilhos falsos, caiu sobre mim naquela tarde de 1970 com todo o seu peso quase insuportável. Eu já sabia então que não era nada fácil a vida dos nossos artistas líricos, que outros tinham outros empregos e que muitos ficavam pelo caminho exatamente por causa dessas dificuldades, e da falta de apoio e de estímulo ao profissionalismo e à dedicação integral à arte. Mas não imaginava que dificuldades dessa ordem (para muitos, ainda hoje é essa a realidade) atingissem, também, um artista da grandeza de Lourival Braga, um barítono consagrado que já tinha conquistado o respeito do público do Rio, de outros Estados e até do exterior. Aqueles dez ou quinze minutos de conversa foram uma lição para a vida toda. Fim da pausa. 

-Pôxa, que chato isso, Lourival...” –comentei sem saber bem o que dizer, embora a vontade que deu foi fazer algum discurso inflamado, que não teria nenhum efeito.

“-Ah, mas não tem problema, não! A gente dá um jeito.” –retrucou sorridente.
“-Você vai lá ver?”
“-Vou estar lá, com certeza! Não vou perder o seu Yago!”
“-Então a gente se vê lá no teatro!”

E se despediu sorridente, com novo abraço e recomendações à família. Lá se foi o Lourival ser mais uma vez Yago na vida.

Uns três dias depois, numa noite de sexta-feira, fui para o teatro preocupado. Toda a minha atenção estava voltada para o Lourival. O que iria acontecer? Minha condição como público era única. Apenas eu sabia bem e inteiramente o pequeno drama e as encrencas por que passara o Yago daquela noite nos últimos dias. Sua família e amigos próximos, a começar por sua esposa Renate sabiam, é claro. Exceto, talvez, sua filha Angela, que era bem menina. Mas ficaram sabendo depois de mim, que o encontrei, por acaso, gesticulando e falando sozinho na rua, minutos depois de um grande aborrecimento.

‘Son scellerato 
perchè son uomo; 
e sento il fango originario in me. 
Si! questa è la mia fè!’ 

A raiva talvez faça bem a quem vai interpretar o Yago, pensei com meus botões. No entanto, tinha razões para estar meio tenso na expectativa do desempenho do Lourival.

Mas, quando ele mostrou seu cartão de visitas no È infranto l'artimon!, eu já pude relaxar. A frase é pequena e não antecipa muita coisa, mas a diferença estava na emissão da voz e na postura em cena. Lourival estava em seu elemento e chamou as atenções para sua figura, que dominou rapidamente o palco. Cassio era ninguém mais, ninguém menos do que Benito Maresca.

Posso contar sem um pingo de mentira ou exagero: Lourival Braga cantou como nunca naquela noite! Colocou o espetáculo no bolso, como se diz no jargão. Estava livre, leve e solto no palco, o que foi confirmado no difícil “Brindisi”, que já derrubou muitos barítonos. A voz fluía redonda e cheia, e preenchia cada canto do grande espaço. Lourival estava tão seguro que até ousou improvisar cenas, expressões faciais e gestos, e a teatralidade nunca foi o seu forte. Foi uma representação inesquecível. Sobretudo, tivemos um Yago irrepreensível. Ele voltou a cantar o papel e foi muito bem, mas não como naquela noite.

Teria sido um milagre ou um agrado dos deuses dos teatros, pensaria alguém. Afinal, é quase impossível obter uma grande performance com pouquíssimos ensaios, sem tempo para estudar e numa semana cheia de problemas pessoais. Pois, a atuação de Lourival Braga naquela longínqua noite de 1970 não foi produto de milagre, tampouco presente dos deuses. Foi talento mesmo! Aquele tipo especial de talento que é capaz de superar barreiras e adversidades de todo tipo, entrar num palco, conquistar o público e deixar as pessoas mais felizes. Os problemas não chegam nem perto do camarim e das coxias. Não entram no teatro. Só os grandes artistas têm essa rara capacidade, a de concentrar em si a magia do palco e transmiti-la ao público. Lourival Braga sabia fazer isso.


Lourival Braga nasceu em 03 de novembro de 1920 e faleceu em junho de 1978, vítima de um acidente automobilístico, depois de cantar o Amonasro numa “Aída”. Seus restos estão no Cemitério do Catumbi. Sua presença está por aí, para quem quiser conhecer um grande artista.  


Lourival Braga - "Credo" - Othello, Verdi