quarta-feira, 21 de dezembro de 2011


“Vozes Paralelas”
 

um precioso estudo sobre a voz cantada

por Comba Marques Porto


    Para os filhos do jornalista e crítico musical Henrique Marques Porto (1898-1969) o nome Giacomo Lauri-Volpi é mais que uma informação sobre a história da ópera. É referência de um tempo de efervescência do gênero no Rio de Janeiro, algo que, pelo entusiasmo de nosso pai, transitava facilmente do palco do Municipal para a sala de nossa casa, com a mesma intensidade e brilho, não só do ponto de vista estritamente musical, como também pelas histórias que ele contava, pelos comentários tecidos sobre os acontecimentos dos bastidores das temporadas líricas nacionais e internacionais que ele acompanhava de sua cadeira cativa. 

        Toda a memória dessa original convivência familiar moldada pelo vínculo de amor à música pode estar simbolizada num pequeno livro escrito pelo tenor Lauri-Volpi: “Vozes Paralelas”, editado pela Ricordi S.A., São Paulo, em 1956. Na “Advertência”, fica explicitado o objetivo do autor:

 “Se há originalidade neste livro, consiste ela na comparação, de duas em duas, das vozes mais notáveis, com as suas virtudes e seus defeitos, e também das menos conhecidas, pelo que teriam podido ser e os motivos que não o foram. Diz-se que confrontos são odiosos. Sim, mas só quando apenas se propõem a diminuir um para exaltar outro. (...) Aqui, as comparações por antinomia e analogia, afinidade ou diferença, têm o objetivo de traçar, por meio de imagens e de exemplos, verdadeira e precisa história do canto, e de oferecer, através da pesquisa tanto quanto possível cuidadosa e objetiva, a síntese da idéia universal de ‘voz cantada’, refletida em cada voz particular, contrastante ou harmonizada no que se refere àquela idéia única.” 

        Nesta introdução, Lauri-Volpi refere-se às “razões de elevação e decadência da voz humana”, associando este percurso à perspectiva da morte do melodrama, como a antevê retratada na trajetória do tempo: “em 600, das atrevidas imagens do barroco e, em 700, da fantasia voluptuosa e dos idílicos langores da Arcádia, para respirar, nos princípios dos 800, a aura neo-clássica e, pouco adiante, queimar-se aos ardores do romantismo; por fim, precipitar-se na trivialidade do verismo e na loucura dodecafônica da harmonia dissonante”.

   
    O autor encontrou na obra de Plutarco - “Vidas Paralelas” -, a inspiração para escrever sobre as vozes cantadas, formando o dualismo comparativo. Como ele afirma, seu trabalho visa atender à demanda por uma “vista total do panorama lírico e da história de canto e das vozes individuais. (...) Pudesse esta fadiga contribuir para erguer a vontade dos novos cantores e animá-los com o exemplo de vozes magníficas! (...) Aos jovens cabe fazer ressurgir, com vozes não viciadas nem corruptas, as glórias de outros tempos. 

Com tonalidades ufanistas, Lauri-Volpi exorta a ópera italiana e suas “vozes preciosas, com as quais penetrou em todas as côrtes européias, de Paris a Viena, a Moscou; e impôs a linguagem musical e a língua italiana aos maiores compositores para os seus libretos de ópera. (...). O povo não sabe que a Itália, com a voz, dominou e ainda poderia dominar o mundo.” Ainda bem que este vaticínio não se concretizou!

Lauri-Volpi analisa as vozes por naipes, fixando os paralelos, categorizando-os pelos registros nas respectivas faixas, por exemplo, sopranos líricos, sopranos dramáticos, meio-sopranos. Cria também categorias, exemplo, “cantores-atores” no exame da “corda de barítono”, como chama. Elege também a categoria “vozes isoladas”, na qual inclui Victoria de Los Angeles, Maria Callas, Marian Anderson, Antonio Cotogni e Giacomo Lauri-Volpi, a sua própria voz. De Callas diz:

“... voz ‘múltipla’, método único”. (...) “Na cena lírica, não houve não há outra voz com a qual seja possível o confronto.” (...) “Em que consiste o fenômeno que, primeiramente, alarma e indispõe o público? Naquela primeira oitava e naquelas passagens tubadas, naquela discrepância dos registros, que dão ideia de três vozes diversas sobrepostas. Após o primeiro ato, a voz se amacia, rompe nodosidades, atenua as angulosidades para tornar-se líquida, corrente e, às vezes, espraiante. Então, o público se aplaca, põe-se atento e acaba por deixar-se prender, envolver na trama de fios luminosos que a voz, aranha paciente e tenaz e igualmente esperta e maliciosa, teceu na atmosfera.”

  Sobre sua própria voz, arremata o capítulo das vozes ímpares:
“Como pôde este artista manter tão ‘segura, confiante e jubilosa’ a sua voz, após vários decênios de intensa atividade? Principalmente, porque soube subtrair-se ao contágio das imitações. Por que deveria imitar Caruso, afeito aos famosos ‘portamentos’ e às inflexões nasais? Dar liberdade à voz, não prendê-la na caixa torácica, subtraí-la às involuções da respiração artificialmente sacrificada, significa liberar coração e cérebro. Daí o brilho, a alegria comunicativa da singularíssima voz, reconhecível entre mil.” 

 Ao traçar os paralelos, o autor enriquece sua obra com informações não só sobre as trajetórias e carreiras das vozes enfocadas, como também sobre as circunstâncias artísticas em que surgidas. A par dos paralelos, Lauri-Volpi nos brinda ainda com uma exposição sobre os “métodos de canto” em que aborda os diversos métodos de fonação. Igualmente inclui um capítulo no qual apresenta uma “breve história do canto”, tratando das diferentes escolas e traçando um panorama da evolução do ensino de canto.    
   
“Vozes Paralelas” é obra que não envelhece, na medida em que Lauri-Volpi sublima a contemporaneidade das vozes enfocadas, criando instrumentos de análise perfeitamente aplicáveis às vozes que hoje encantam o mundo, confirmando o frescor da ópera que, como gênero, não feneceu; ao contrário, transcende limites históricos e temporais e conquista um público cada vez mais diverso e amplo. Basta invocar as alegrias que nos trazem as jovens vozes que brilham nas atuais temporadas do MET e do Scalla de Milão. Neste aspecto, por sorte, a profecia de Lauri-Volpi se concretiza:

Cumpre aos jovens erguer, novamente, a sorte, em tempos calamitosos, desta terra que deseja ar e luz, da qual saiu o sentimento do belo e do grande e em cuja bendita natureza se formaram e ornaram, para a alegria do espírito (...). Que os últimos heróis da poesia e do canto sejam os primeiros da nova série!” 

Há uma nova geração de jovens cantores de ópera a desafiar o trabalho de comparação, não só entre essas vozes, como entre elas e aquelas que brilharam a partir da segunda metade do século passado. Como é instigante o paralelo entre Jonas Kaufmann e Franco Corelli ou entre o mesmo Kaufmann e John Vickers? Pena é não contarmos mais com a arte de um Lauri-Volpi, mais que um estudioso capacitado à reflexão comparativa do canto lírico, ele mesmo, uma grandiosa voz de tenor, por sorte, captada em preciosos registros fonográficos - fonte em que jovens cantores podem se inspirar, jamais para imitar, porém, para aprender. 

Giacomo Lauri-Volpi - Gli Ugonotti - Arena de Verona 1933 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


A estréia de Fausto no Metropolitan


A música de Gounod e a performance dos solistas salvaram o espetáculo

Jonas Jauffman e Marina Poplavskaya

Musicalmente a estréia do Fausto no Metropolitan, no dia 10 de dezembro, foi um grande espetáculo. A única restrição que faço é quanto à uma certa correria dos andamentos em algumas passagens. O maestro Yannick Nézet-Séguin parece ser muito bom. Ainda é jovem e o passar dos anos talvez reduza sua pressa e o faça valorizar mais a beleza e as nuances dessa partitura repleta de melodias inspiradíssimas. 


Definitivamente alguns encenadores perderam a noção! É o caso do diretor McAnuff, responsável por essa montagem, que não é produção original do Met. O parto do bebê e seu imediato afogamento na pia batismal por Marguerite no final da “Cena da Igreja” foi uma sequência extremamente infeliz, grosseira e de um mau gosto atroz! 

E as dancinhas? Putz! Coreografar ária de ópera é rematada tolice. Por várias razões. A primeira delas é que a linguagem do melodrama e a estrutura da ópera (clássica, oitocentesca ou romântica, incluindo o verismo) dispensa a coreografia no momento da ária ou do dueto. Nesses casos ela entra como elemento estranho, que interfere no canto e distrai a atenção do público para o solo do cantor. Dá para imaginar os druidas da Norma bailando ao som de “Casta Diva”? Não dá. Pois praticamente todo o primeiro ato do Fausto foi coreografado.  


A ária de Valentin, por exemplo, é uma reflexão solitária do personagem. O melhor é que ele esteja sozinho em cena. "Avant de quitter ces lieux" é quase uma "preghiera". O bom e ingênuo soldado faz uma espécie de oração pelo bem e pede proteção para sua irmã Marguerite, que ficará sozinha enquanto ele vai para a guerra. Gounod criou assim um contraste que tornará mais dramática a cena da morte de Valentin por artes do demônio e não pela destreza de Fausto com a espada. Mas no trecho “...délivré d’une triste pensée/J’irai checher la gloire/La gloire au sein des ennemis...” o diretor McAnuff decidiu perturbar a concentração religiosa do personagem, que tentava falar com Deus, e a paciência do público, que preferia ouvir o cantor, e colocou atrás deste uma tropa de figurantes a marcar passo prontos para marchar. Só faltou baterem continência.  

A coisa se repetiu na serenata do Mefistofele, "Vous qui faites l'endormie". Cheguei a temer que o excelente Rene Pape saísse pelo palco sapateando como um Fred Astaire e cantando "Begin the beguine" ou "New York, New York" como um Sinatra! 


Ópera não é musical da Broadway!

Mas, dá para entender. McAnuff dirigiu filmes e musicais, não tem muita experiência em ópera. Entre os seus sucessos nas telas está "As aventuras de Alceu e Dentinho", um título que não seria incluído numa lista, digamos, dos melhores 700 filmes das últimas décadas.
Reuben Berman, crítico do “Columbia Daily Spectator” parece ter acertado quando escreveu no dia 8 de dezembro:


“Se o diretor do Metropolitan Opera, Peter Gelb, teve que fazer um acordo com o diabo para contratar Des McAnuff — diretor de "Jersey Boys" — para produzir "Faust", o diabo certamente deve ter levado a melhor no final do acordo.”
 

Berman deve saber do que está falando. Mais adiante comentou: “Felizmente, no entanto, a confusão desta produção não afeta as habilidades dos cantores ou a orquestra.”


Realmente não afetou, mas nessa produção do Fausto há uma ausência para mim inexplicável. A mesma montagem que adotou “dancinhas” de music hall para árias excluiu o balé da “Noite de Valpurgis”! O capeta anuncia ao Fausto: "Voici la nuit de Valpurgis!", frase repetida pelo coro de almas penadas. Mas o que se viu em seguida foi um disgusting dinner com meia dúzia de zumbis putrefatos, caracterizados como os figurantes de “A Noite dos mortos vivos”, aquele filme de terror B que as TVs gostam de exibir de madrugada para assustar ou provocar nojo nos espectadores notívagos.


A ópera francesa, diferentemente da italiana, tinha que ter um grande balé. Era uma exigência que contemplava o gosto do público parisiense da época em que o Fausto foi composto. O balé do Fausto é um clássico da dança e uma peça de concerto conhecida, assim como a “Bacanal” de Sansão e Dalila, de Saint-Saens, ou a “Dança das Horas”, de La Gioconda, de Ponchielli. Imperdoável que o regente Yannick Nézet-Séguin tenha cortado o balé dessa montagem. O balé –muito bem composto por Gounod- funciona inclusive para dar mais equilíbrio à estrutura da ópera. Serve também para descansar o público e prepará-lo para as cenas seguintes, todas muito dramáticas ou comoventes, como o final da ópera. Um regente que abre mão dessa partitura deve ficar sob suspeita, mesmo sendo jovem e promissor.


A questão é: até quando os cantores e, principalmente, os maestros vão tolerar as idéias arbitrárias e o domínio autoritário dos diretores de cena? Fico imaginando como reagiriam Toscanini, Serafim, Karajan ou Bernstein diante da proliferação de cenas bizarras em espetáculos de ópera. Acredito que o regente é o principal responsável pela montagem de uma ópera. Ele faz uma leitura particular de cada partitura e orienta os solistas de acordo com essa leitura. O diretor de cena deve trabalhar com o regente e não contra ele, ou apesar dele. Afinal, trata-se principalmente de música, não de teatro de prosa. O chamado “teatro de autor” deu certo em muitos casos no teatro de prosa. De uns tempos para cá parece que estão querendo criar a “ópera de autor”. Quer dizer, o encenador se apropria de música e texto alheios e faz o que lhe dá na telha.


A música de Gounod para o Fausto está impregnada de religiosidade do início ao fim. Ela está presente em todos os personagens –inclusive, por oposição, no Mefistofele. O diretor McAnuff passou longe desse conteúdo e não valorizou o mais importante, que é a beleza da partitura do Fausto. Por outro lado, suas intenções ao ambientar a ópera na época da I Guerra Mundial não ficaram claras. Mais obscura ainda foi a idéia de fazer de Fausto um “cientista que trabalharia para criar a bomba atômica”. Mefistofele bem que poderia ter saído dos versos de Goethe e sussurrado no ouvido do diretor: “-E que diabos eu tenho a ver com isso?”


 McAnuff prendeu-se a cenários e a símbolos que acabaram desconectados e não funcionaram -como aquela bomba pendurada sobre o palco. Em resumo: uma montagem confusa, sem pé nem cabeça. Ao final do espetáculo foi brindado com vaias por parte do público. 


Rene Pape: Mefistofele

No entanto, mais uma vez a música conseguiu superar as bobagens cênicas que, por serem bobagens, nada acrescentaram. A música de Gounod e a performance dos solistas salvaram o espetáculo.


Jonas Kauffman, que acaba de ser premiado como o “vocalist of the year” nos Estados Unidos, cantou lindamente o “Faust”. Forçou um pouco o agudo no “Salut demeure chaste e pure”, mas conseguiu segurar bem a nota. Rene Pape é, talvez, o melhor Mefistofele da atualidade. Além de grande cantor é também muito bom ator. Marina Poplavskaya, que substituiu Angela Georghiu no elenco, surpreendeu. Cresceu muito no decorrer do espetáculo e fez as cenas finais com doses certas de emoção e pungência. Muito expressivo e seguro o Valentin do barítono Russell Braun, apesar do timbre irregular da voz.  

Jonas Kauffman - Faust  
"Salut demeure chaste et pure"

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011





Por
Comba Marques Porto e
Henrique Marques Porto
 
Neste final de primavera, a ópera “Fausto”, de Charles Gounod (1818-1893) chega ao público do Rio por iniciativas opostas em grandeza, mas não menos significativas. No próximo dia 10/12, esta ópera será exibida em alguns cinemas da Zona Sul, em transmissão direta do MET, de Nova York. Em novembro, tivemos apresentações do “Fausto” pela Cia Lírica, em forma reduzida e acompanhamento de piano, no Centro Cultural da Justiça Federal. 

A Companhia propõe-se a apresentar títulos de ópera de aceitação popular, investindo, ao mesmo tempo, no aperfeiçoamento dos jovens cantores que a integram e acalentam o sonho de crescer na cena lírica. O papel-título ficou a encargo do tenor Ivan Jorgensen, revelando bonito timbre e segurança nos agudos. Do conjunto da apresentação, percebe-se que os jovens solistas estão em processo de formação e, portanto, muitos desafios ainda precisam superar para dar conta com profissionalismo e beleza da completude artística demandada pelo gênero. Mas é visível que as dificuldades, inclusive dos recursos disponíveis, não abalam o amor do grupo pela ópera e a força deste vínculo resulta no êxito de nos ter oferecido até agora uma temporada superior em títulos e récitas a que segue em curso no Theatro Municipal. Em 2011, a Cia Lírica já apresentou “Attila” (Verdi), “M. Butterfly” (Puccini), “La Traviata” (Verdi), “Il Tabarro” (Puccini), o “Fausto” e ainda vai encenar “O Amor das Três Laranjas”, de Prokofiev. 

Fausto, de Charles Gounod, pela Cia Lírica

É bem verdade que a responsabilidade do nosso maior teatro de ópera não se compara à de uma jovem companhia lírica, particularmente no que diz respeito a cenários, figurinos e direção de cena, talvez os mais delicados elementos a serem observados na montagem de óperas. As concepções cênicas podem expandir a proposta de libreto e partitura, como também podem encobrí-la ou mesmo desnaturá-la. Na década de 80, Fernando Bicudo, à frente da direção artística no TM, teve bom êxito com a apresentação de óperas em forma de concerto, o que reduz custos sem afetar o bom resultado da execução. Os bons artistas de ópera (não basta ser cantor) acabam “encenando” no curto espaço à frente da orquestra, podendo levar o público à emoção e à visualização do efeito dramático ou cômico do que se representa. Como exemplo, tivemos sob a direção de Bicudo as memoráveis apresentações de “Andrea Chenier” (Giordano), com Aprile Millo em Madalena de Coigny e de “Ballo in Maschera”(Verdi) com o saudoso Fernando Teixeira no papel de Renato e o legendário Carlo Bergonzi em Ricardo. Eram ainda os bons tempos do Theatro Municipal. 
  
Projetos como o da Cia Lírica fazem pensar sobre a realidade da ópera no Rio de Janeiro. São prova de que a ópera ainda sobrevive na cidade e não precisa ficar restrita ao nível das grandes produções, aliás, cada vez mais banidas dos projetos de gestão cultural do Estado e do Município. 

É necessário e sempre oportuno recordar que a cidade do Rio de Janeiro guarda sólida tradição de montagens de óperas. Os palcos dos nossos teatros já se equipararam aos dos mais importantes centros de difusão do gênero no mundo. Há registros de produções contínuas por todo o século XIX, com as temporadas na “Casa da Ópera”, no “Teatro São João” (até 1824, quando veio a ser destruído por incêndio) e, a partir de 1825, no “Teatro São Pedro”, na Praça Tiradentes, vivo até hoje como “Teatro João Caetano”. Já no século XX, a produção de óperas deslocou-se da Praça Tiradentes para a Cinelândia, concentrando-se no Teatro Lírico (inaugurado em 1904 e demolido em 1934) e depois no Theatro Municipal a partir de sua inauguração em 1909. 


    Uma consulta rápida sobre a história da ópera no Rio comprova que a atividade já era bastante sólida muito antes da construção do Theatro Municipal. Basta lembrar que a primeira cantora lírica brasileira a fazer sucesso no exterior, a catarinense Malvina Pereira – nome desconhecido do público e divulgado aqui no blog – estreou em 1901 e jamais se apresentou no Municipal, embora tenha cantado e até gravado no Rio com um grande da música - o tenor italiano Giovanni Zenatello. Quando o TM foi inaugurado em 1909, ela já fazia carreira na Europa e EUA, e não voltou para o Brasil. Carreiras como a de Malvina Pereira eram possíveis porque a ópera não acontecia apenas nos grandes teatros. Grupos diversos montavam óperas e recitais também nos pequenos auditórios, em associações culturais e até em clubes sociais. Era uma prática incorporada à vida cultural da cidade que convivia com a vinda, todos os anos, de grandes elencos internacionais e que prevaleceu mesmo depois da inauguração do Theatro Municipal. 

Lauri-Volpi: popularidade 
feita no Rio de Janeiro
O resultado foi a formação no Rio de um público não apenas numeroso, mas musicalmente muito bem educado e, por isso mesmo, também muito exigente. O público carioca impunha respeito e era temido por todas as companhias líricas, inclusive pelas grandes estrelas internacionais da ópera. Em 1937, Giacomo Lauri-Volpi, na sua última passagem pela cidade (a primeira foi em 1922), declarou em entrevista a um jornal:
-Quando vim ao Brasil pela primeira vez tinha apenas três meses de palco. A minha popularidade foi feita no Rio, é filha desta cidade que não esquecerei jamais”.



De fato, fazer sucesso no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Buenos Aires era como passar por uma prova de fogo para qualquer cantor ou cantora, e passaporte para cantar diante de qualquer platéia do mundo. 


Violeta Coelho Neto: estréia em clube
da zona norte do Rio.
Mas não era apenas o palco do Theatro Municipal que revelava ou tornava famosos grandes cantores. Em 1936, por exemplo, estreou na ópera aquela que para muitos foi a maior cantora lírica brasileira do século 20, Violeta Coelho Neto de Freitas. Violeta não fez carreira internacional por que não quis. Não faltaram convites depois de seu recital no Carnegie Hall em 1947. Pois, Violeta Coelho Neto estreou cantando a Cavaleria Rusticana no Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio! Cantou no ginásio do clube, em palco improvisado. Infelizmente, não existem registros dessa estréia. No ano seguinte estreou no Theatro Municipal, em Madame Butterfly, convidada por Gabriela Besanzoni que naquela época organizou as primeiras temporadas líricas apenas com cantores brasileiros. A partir daí, e até os anos 60, passamos a ter duas temporadas líricas – uma internacional, outra nacional.  Os que se destacavam nas temporadas nacionais eram chamados para integrar os elencos que vinham do exterior.  
(continua)

Violeta Coelho Neto de Freitas
"Voi lo sapete, o mamma" - Cavaleria Rusticana 


quinta-feira, 10 de novembro de 2011


Madama Butterfly

 O cenário de um amor inventado

por Comba Marques Porto


Madama Butterfly passou a ser uma das óperas mais encenadas em todo o mundo, desde quando reapresentada depois da revisão feita pelo compositor, Giacomo Puccini, em razão da rejeição da obra na estreia em fevereiro de 1904.
O libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, apurado na medida certa das rigorosas exigências do compositor, tem como tema central a fidelidade de Cio Cio San à sua paixão pelo oficial americano e à sua crença em que ele voltará ao ninho de amor, mesmo depois de passados três anos de abandono. Nem Susuki, mais amiga do que serviçal, a convence de que não há precedente de marido estrangeiro que tenha regressado. Nada demove Butterfly. Nem o pedido de casamento do rico Yamadori que chega na hora certa para tirá-la da miséria. 
Há quem despreze o libreto desta ópera, baseado em obra do dramaturgo americano, David Belasco (1853-1931). Como inspiração literária, evidentemente, não se equipara a um Otello, de Verdi, assinado por Arrigo Boïto, baseado em obra homônima da Shakespeare. Mas, Puccini e seus libretistas tiveram o mérito de ter colocado em foco uma temática essencialmente feminina, com a qual levam o publico a se identificar e mesmo a se envolver com a dignidade de Butterfly, com a força de sua verdade, o que a torna um personagem profundo, aliás uma representação ficcional de algo que acontece no coração das mulheres – um amor inventado para chamar de seu, a fantasia de que este amor será para a eternidade.
O comportamento machista de Pinkerton, tal como delineado no libreto, é outro ponto interessante. Enquanto Butterfly, do ponto de vista dramático, amadurece ao longo da ópera, Pinkerton vai ficando com cara de menino de treze anos, exposto à sua covardia, à sua vilania proclamada na ária do terceiro ato: “Addio fiorito asil”.
Meu amigo Aloísio Teixeira, certa vez, disse que Puccini apequena os papéis masculinos, ora retratando-os como cafajestes (Pinkerton), ora os expondo à própria fraqueza em relação às personagens femininas.  Faz sentido. Tosca, por exemplo, com suas mãos sensíveis de artista, mata o temível Chefe de Polícia romana, ato que, num plano de coerência, seria mais provavelmente praticado por seu amado, Mario Cavaradossi, em ação com os rebeldes republicanos. Rodolfo não encara o drama de Mimi e disfarça sua covardia num ciúme estapafúrdio, puro artifício inconsciente para não se deparar com a morte estampada na face de sua amada.            
A encenação de Madama Butterfly não demanda mais que o espaço de um jardim, onde se passa o 1º ato, e da pequena sala da casa onde o drama da gueixa Cio Cio San se desenvolve até o desfecho trágico do harakiri. Porém, a casa de Butterfly é mais que um elemento cênico. É a metáfora de sua alma. É o espaço psicológico do abandono, da miséria, da espera, da esperança de que Pinkerton retorne. É o cenário de um amor inventado, da crença na palavra vã do oficial americano que, com o auxílio do agente Goro, promove a farsa do casamento com olhos no desfrute da jovem gueixa. Mais que um exercício insensível de apropriação da mulher, a conduta de Pinkerton retrata a atitude imperialista americana, a violação de valores culturais de um Japão devastado pela fragilidade econômica. O Cônsul dos Estados Unidos, Charpless, adverte Pinkerton de que a moça acredita na veracidade do casamento, mas não deixa de participar da burletta.
Em 2009, Madama Butterfly foi incluída na temporada do MET. A soprano americana Patricia Racette vive o papel-título com muita personalidade e expressiva teatralidade. Mas, nesta montagem, as novidades ficam por conta da concepção cenográfica (Michael Levine), dos figurinos (Han Feng) e da inserção do teatro de fantoches (Blind Summit Theatre, Mark Down e Nick Barnes).

O fantoche criado por Mark Down e Nick Barnes

Da primeira vez que assisti o DVD fiquei zangada. Não aprovei a concepção de representar o filho de Butterfly por um boneco com cara de japonês careca, quando consta textualmente do libreto que o menino tem cabelos louros e olhos azuis. Recentemente, revi o filme e, melhor refletindo, percebo que minha desaprovação, em verdade, deveu-se mais ao fato de ter me sentido pessoalmente afrontada pelo fantoche do que propriamente à questão da ruptura da encenação com a previsão do libreto para o papel do filho da Butterfly. Explico-me. Eu representei o filho da Madama Butterfly em sucessivas temporadas líricas cariocas, entre 1948 e 1951 e esta vivência artística me deixou marcas profundas. De lá vem, com certeza, o meu amor pela ópera, não fosse também o vínculo de amor com meu pai projetado no estímulo dele à minha cultura musical e ao gosto pela ópera. Uma experiência que não deixou de ter seus riscos. Sempre me indago: como posso ter sobrevivido do ponto de vista psicológico, tendo vivido inúmeras vezes a intensa cena da despedida - “Tu, tu, piccolo iddio...” - e tendo assistido o reiterado suicídio de “minha mãe”, ainda tão pequenina, quando, por óbvio, não sabia separar o que era ficção do que era realidade?
Naquela época ainda não havia maior preocupação com a exposição de crianças a situações traumáticas como a que se vê na Madama Butterfly. Nas inúmeras montagens de que participei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro sempre estive presente na cena que culmina no harakiri, talvez uma das passagens mais carregadas de dramaticidade dentre as óperas de Puccini. É bem verdade que havia a marcação para Butterfly me vendar os olhos. Mas, na atenção de seguir a sequência no acompanhamento exato dos compassos orquestrais, vez ou outra, sopranos não ajustavam a venda em minha pequena face. Movida pela natural curiosidade infantil, eu espichava os olhos e compartilhava da dor, do gesto extremo de Madama Butterfly.
O filho fantoche na encenação do MET/2009 parece uma solução politicamente mais adequada – nada de expor crianças a evento emocional tão forte. Mas, não é só isso. O trabalho do Blind Summit Theatre chega ser comovente pelo efeito teatral extraído com a manipulação do fantoche, êxito que poucas crianças intérpretes do papel tenham obtido desde 1904 até hoje. No mais, cenários, iluminação e figurinos belíssimos, concebidos na medida certa do que é essencial à plena realização estética da obra.  
Em verdade, a história de Madama Butterfly tem ênfase no que se passa no coração da personagem-título. Afinal, o que mais existe além da verdade de Butterfly, do seu obstinado desejo de voltar ao clima da primeira noite de amor? Das óperas de Puccini, esta talvez seja a que mais se destaque pela abordagem intimista, distanciando o compositor do verismo presente talvez em La Bohème ou mesmo em Il Tabarro e Suor Angelica. Um amor assim tão inventado quanto o de Butterfly desafia os pressupostos da realidade. Olhada a trama por este ângulo, representações alegóricas, tais como as utilizadas na referida montagem do MET em 2009, não agridem o espírito da obra. A licença poética, a inventividade de se levar o teatro de fantoches para o teatro contido na ópera, a integração desta linguagem ao conjunto da encenação e, sobretudo, o bom resultado estético obtido falam mais forte a quem abre o coração para o deleite da ópera. A quebra da observância literal do libreto perde importância.             

Madame Butterfly - Final - Patricia Racette