segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Malvina Pereira (parte 2)



Malvina Pereira estudou canto com um certo maestro Bellucci e estreou em 1901 no Teatro Odeon de Mendoza, Argentina. Nos anos seguintes cantou em várias cidades e centros importantes, como Rio, São Paulo, Buenos Aires (Teatro Colóm e outros) e Solis de Montividéu. Era esse precisamente o circuito das grandes e médias companhias que vinham principalmente da europa excursionar pela América so Sul nas primeiras décadas do século 20. Cantou também em São Francisco-EUA, no TeatroTivoli, contratada pela Pacific Coast Company.
Os registros disponíveis sobre sua carreira se referem ao período entre 1903 e 1920. A partir deste ano não consta nenhuma informação. 

A partir de 1909 sua carreira parece ter se baseado na Itália, onde cantou em diversas cidades e centros musicais importantes, como Roma, Milão (Teatro Verdi), Nápoles, Bolonha e Gênova, entre outras.

Seu repertório incluía: Lucia de Larmermoor, de Donizetti, I Puritani, de Bellini, La Bohéme, de Puccini, Carmem (Michaela), Bizet, Il Guarany e Salvador Rosa, de Carlos Gomes, Rigoletto e La Traviata, de Verdi, e Barbeiro de Sevilha, de Rossini.  Repertório típico de soprano lírico-ligeiro.

Deixou apenas quinze registros sonoros por três gravadoras - a Vctor Record, a Gramophone Record e Odeon Fonotipia Record -estas últimas feitas pela Casa Edison do Rio.

Pelas informações até aqui reunidas, Malvina Pereira não chegou a cantar nas grandes casas de ópera da europa e Estados UnidosAinda assim é possível identificar movimentada carreira principalmente em teatros de importantes cidades italianas, o que não é pouco considerada a época e o nível de exigência daquele público, acostumado a apaludir os grandes nomes da chamada "época de ouro" da ópera.

Entre as gravações há uma boa versão completa do Barbeiro de Sevilha, de Rossini, realizada em Milão, em abril/maio de 1919 e remasterizada em 2007. No elenco o barítono Ernesto Badini (Fígaro), o tenor Edoardo Taliani (Almaviva) e os baixos Davide Carnevali (Bartolo) e Umberto Di Lelio (Don Basilio).  Carlo Sabajano rege o Coro e a Orquestra "Grammofono". Contudo, algumas fontes indicam que se trata na verdade da orquestra e do coro do teatro Alla Scalla, com um nome de fantasia. Um indício de que Malvina Pereira pode ter se apresentado no Scalla. 
Permanecem os mistérios de seu rosto e do rumo que tomou sua vida depois de 1920. O último registro encontrado é o de uma Lucia de Larmermoor, cantada neste ano no Teatro Verdi, de Pisa.

Mas podemos ouví-la aqui no Barbeiro de Sevilha -registro antigo, mas benefiado pela remasterização. Na seleção, a ária de Rosina, "Una voce poco fa" e sua sequência, o dueto "Dunque io son", com o barítono Ernesto Badini. 
 Malvina Pererira- "Una voce poco fa"


Malvina Pereira e Ernesto Badini- "Dunque io son"

 

Henrique Marques Porto
Fontes:
http://www.lavoceantica.it/
http://www.todoperaweb.com.ar/

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Quem foi Malvina Pereira?




Na Biblioteca do Congresso Americano encontrei esses arquivos sonoros:

1) "Lucia di Lammermoor. Verranno a te sull’aure."
Soprano vocal: Malvina Pereira
Tenor vocal: Salvatore Salvati"
2) Maledizione : Quartetto
Giuseppe Maggi (baritono), Vincenzo Bettoni (baixo), Malvina Pereira (soprano), Franco de Gregorio (tenor).
1913-03-08 




Malvina Pereira, de quem nunca ouvira falar, nasceu em Florianópolis, em 1883. Não consta data de falecimento nesta fonte. Tampouco encontrei informações mais completas sobre sua vida e carreira.
Talvez seja nossa primeira e esquecida cantora com carreira internacional. Sabe-se que cantou na Italia, Espanha e Portugal e gravou com pelo menos um grande tenor, Giovanni Zenatello, os duetos "Parigi, oh cara", de La Traviata, e "Sento una forza indomita", do Il Guarany, de Carlos Gomes. Esses registros, assim como outros, foram feitos pela Casa Edison no Rio de Janeiro entre 1904 e 1908.
Com Malvina Pereira localizei ainda uma gravação integral do "Barbeiro de Sevilha", de Rossini, de 1919. A gravação foi feita em MIlão e é regida por Carlo Sabajano, respeitado maestro com marcante atuação no Teatro Alla Scalla.
As poucas e precárias gravações não permitem fazer uma avaliação mais completa e segura das qualidades vocais dessa enigmática cantora brasileira. Há ainda um agravante: a gravação mecânica não favorecia muito as vozes femininas. Nessas gravações deixadas por Malvina Pereira, o que se ouve é uma voz de timbre agradável e essencialmente lírico que tenta avançar no repertório típico das coloraturas. No registro de 1919, cantando a Rosina, podemos ouvir uma voz mais amadurecida, de timbre mais escuro e encorpado, que interpreta corretamente a leveza quase brincalhona da partitura de Rossini.
O nome de Malvina Pereira aparece apenas nas listas de "cantores esquecidos".
Resgatar a carreira dessa brasileira precursora deve ser difícil, mas não impossível.

Henrique Marques Porto







segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Carlo Galeffi

Há cinquenta anos, em 22 de setembro de 1961, faleceu em Roma o barítono italiano Carlo Galeffi. 

Carlo Galeffi em 1919
Nasceu em Malamoco (Venezia), em 1884. Com apenas quinze anos participou, atuando na comparsaria, de uma montagem da “Força do Destino”, de Verdi. Aprendeu as noções básicas do canto –impostação e respiração- observando outros cantores. É possível que tenha tido aulas com Antonio Cotogni (1831-1918), grande barítono do século 19 e grandíssimo professor de canto, na Academia de Santa Cecilia. Em 1908, com 87 anos, Cotogni registrou sua voz no cilindro. Para ouvi-lo: 
http://www.youtube.com/watch?v=bdIwLbbBn4I

Definindo-se como um autodidata, Galeffi ainda bem jovem começou a surpreender o público com uma voz cujo volume era assombroso. Algumas fontes indicam 1903 como o ano de estréia, em “La Favorita”; outras 1907, na “Lucia de Lammermoor”. Pesquisas recentes afirmam que a estréia foi em 1904, no Teatro Quirino de Roma, no “Rigoletto”, papel que marcaria sua carreira. 

De fato, não se tem notícia de voz mais poderosa em volume e intensidade do que a do jovem Galeffi.  Ao ouvi-lo cantar, Tita Ruffo –o maior barítono da época, ao lado de Ricardo Stracciari- disse a frase que ficou famosa:
“-Questo ragazzo mi fai paura!”

O cara que “dava medo” ao grande Tita teve sua voz comparada a um “bombardino vivente” ou ao rugido de uma “tromba marinha”, como o definiu Giacomo Lauri-Volpi no livro “Vozes Paralelas”, mencionando sua participação como o Arauto do “Lohengrin”, de Wagner. Alguns cronistas chegaram a assinalar que o som da voz de Galeffi nos primeiros anos de carreira era tão alto que chegava a incomodar o público das primeiras filas da platéia!

Contudo não é essa a voz que ouvimos nas poucas gravações que deixou. Com o tempo e o amadurecimento, Galeffi reduziu um pouco o volume, deu mais claridade à voz e refinou a interpretação. Essa mudança transformou-o num cantor singular, que trilhou caminho próprio, sem se deixar influenciar pelo estilo das vozes de barítono dominantes nas duas primeiras décadas do século passado, marcadas pelas presenças sobretudo de Tita Ruffo e Ricardo Stracciari. 

Esse período –final do século 19, início do século 20- foi de grande desafio para cantores de todas as tessituras. O surgimento do verismo impôs modificações. Não era possível aplicar as técnicas do bel canto oitocentesco ao repertório verista, e vice-versa. Era preciso encontrar um estilo novo de canto, capaz de satisfazer as exigências de um e outro repertório. O primeiro a entender o problema, talvez intuitivamente, e propor uma solução foi Enrico Caruso. Basta ouvir como ele cantava “Una furtiva lagrima”, por exemplo. A versão de Caruso para essa ária é a plenos pulmões, sem os maneirismos suspirosos dos tenori di grazzia, que encantavam as platéias de então. Entende-se o porquê: numa noite Caruso tinha que cantar o ingênuo Nemorino, do “Elixir do Amor”, de Donizetti; na noite seguinte estava na pele do desesperado Canio, em “I Pagliacci”, de Leoncavallo, tendo que recitar cantando ou simplesmente declamar, como no teatro de prosa. 

Carlo Galeffi foi dos primeiros a adotar a solução técnica e interpretativa de Caruso. Qual seja, o verismo também é para ser cantado e não berrado ou rugido, como fazem tantos cantores, sobretudo os barítonos. Galeffi dispensou a morbidez das sonoridades cavernosas e anasaladas que dava tão certo em Tita Ruffo e buscou o que alguns chamam de “efeito lágrima”, que caracterizava as sentidas interpretações de Caruso. Alguns chegam mesmo a apontar que o napolitano seria a grande influência presente no estilo de canto de Galeffi. Assim, um tenor teria influenciado um barítono, o que é pouco comum, mesmo não sendo aquele um tenor qualquer. Mas, lembre-se que Rosa Ponselle –outra inovadora- era chamada de “Caruso de saias”. Não foi por acaso.

Carlo Galeffi gravou entre 1911 e 1931. Seus últimos registros são, portanto, do início da gravação eletrônica. A qualidade sofrível das gravações nos dá idéia pálida de uma voz que foi sensacional, segundo o relato de quem o viu cantar. E cantou por longos anos, até 1955, um sinal da solidez de sua técnica, e poderia ter gravado em melhores condições. Edições de óperas completas, deixou apenas duas: “Andrea Chénier” (1930) e “La Traviata” (1928). 

Seu repertório era bastante extenso e incluiu algumas criações, como as estreias italianas do "Gianni Schichi", de Giacomo Puccini, ou o "Nerone", de Arrigo Boito. Mas suas grandes atuações, por maior identificação com os personagens, foi no repertório verdiano. Cantou ainda muitas zarzuelas, em muito bom espanhol e até em catalão, sendo por isso muito apreciado na Espanha. Apenas uma ele gravou em edição completa –“Las Golondrinas” (As Andorinhas”), de José María Usandizaga.
 
A razão de tão poucas gravações pode estar no fato de Galeffi não ter caído no gosto dos empresários dos EUA, sede da indústria do disco, mesmo tendo cantado com sucesso no Metropolitan. Em compensação fez sólida carreira no Scalla de Milão, principalmente no período em que o teatro foi dirigido por Arturo Toscanini, entre 1912 e 1942, e em toda a europa. Viajou mundo inteiro, cantando muito inclusive aqui no Brasil. Sua última passagem por Rio e São Paulo foi em 1938. Na Argentina, onde era muito admirado, cantou pela última vez no Colón de Buenos Aires, em 1952.

Carlo Galeffi é daqueles poucos cantores que podem ser incluídos na categoria de vozes históricas, e que por essa razão precisam ser lembradas sempre. É importante ter a paciência de ouvi-lo nos frágeis registros sonoros que deixou. Sobretudo em nossa época, quando os cantores, mesmo os bons, estão abandonando as lições deixadas pelos grandes criadores do canto lírico, e gritam quando devem cantar, ou cantam quando devem recitar cantando

Ouvir Carlo Galeffi é uma lição de canto.    
  
Henrique Marques Porto 

Carlo Galeffi - 50 anni della sua morte - Tributo 


sábado, 17 de setembro de 2011




 Uma  "Tosca" histórica: 
Claudia Muzio

Essa dispensa apresentações e comentários. 
Claudia Muzio cantou a "Tosca" no Teatro Municipal em algumas temporadas líticas do passado já distante. A primeira foi, se não me engano, em 1910. O Scarpia foi Carlo Galeffi. Ambos eram bem jovens. Voltou nos anos vinte ("os anos loucos"), com o mesmo Galeffi e ainda Beniaminio Gigli, estreando por aqui. A regência foi de Gino Marinuzzi. Nós não vimos, mas podemos imaginar. E, claro, ouvir as velhas gravações.
Ouçamos um pouco de Claudia Muzio, "a divina Claudia"
Gravação ao vivo de 1932. Claudia faleceu em 1936.
Henrique Marques Porto





Claudia Muzio é "Tosca"

terça-feira, 13 de setembro de 2011

"Ecola!"
Sondra Radvanovsky
 
Tosca, de Giacomo Puccini, em cartaz no Teatro Municipal do Rio de Janeiro

Tosca ................ Sondra Radvanovsky 
Cavaradossi .... Thiago Arancam
Scarpia ............ Juan Pons

Enfim o público carioca se reencontrou com uma grande estrela da ópera mundial. A "Tosca" que Sondra Radvanovsky cantou no Rio, no último dia 11, foi digna do grande palco e da já longa história do Municipal.
Antes dela, por aqui passaram Claudia Muzio, Maria Callas, Renata Tebaldi e Magda Olivero no mesmo papel, para citar apenas estas artistas tão queridas pelos amantes de ópera. 
Pois, Sondra pode, sem favor, entrar para essa lista. Soprano dramático legítimo, voz bonita, de grande extensão e igual em toda a tessitura, amparada por sólida formação técnica. Uma voz que vinha rareando na cena lírica. 
A seu lado, nos papéis principais, estiveram o baritono espanhol Juan Pons e o tenor brasileiro Thiago Arankam. Pons é bem conhecido do público e confirmou o que dele se esperava. Cantor experiente, com voz segura e ainda em forma, apesar dos longos anos de estrada. Ele e Sondra foram os responsáveis pelos grandes momentos da ópera, sobretudo no dificílimo segundo ato, que exige muito cênica e vocalmente dos cantores. 
Numa ópera onde é comum ver barítonos rugindo ferozes em cena e sopranos respondendo aos rugidos com gritos no lugar de notas musicais, Sondra Radvanovsky e Juan Pons optaram pelo canto, sem prejuízo do necessário realismo de muitas cenas em que até a declamação simples é aceitável. Foram, sem dúvida, os grandes nomes da tarde-noite de domingo. Sondra brilhou intensamente no "Vissi D'Arte" e concedeu  à platéia carioca um raríssimo e generoso bis da célebre ária. É que aqui, abaixo da linha do equador, o público é realmente mais caloroso. A grande artista deve ter se sensibilizado com a empolgação e o carinho da platéia  e dos balcões. Se a memória não me trái, o último bis dessa ária foi concedido por Magda Olivero, em memorável "Tosca" de 1964. Obrigado, Sondra.
O tenor Thiago Arankam poderia ter somado seu nome aos dos seus colegas protagonistas, mas pareceu ainda pouco maduro para o papel. Cenicamente teve presença apagada, quase displicente. Vocalmente não transmitiu segurança. As indecisões e fragilidades de sua voz ficaram evidentes logo no "Recondita armonia". Puccini deu ao tenor uma ária logo depois de sua entrada em cena, mas foi generoso na partitura, que é confortável para vozez líricas como a de Arankam. Mas o jovem tenor acabou tropeçando no agudo final na ária. Foi discreto nos duetos com Sondra, no primeiro e no terceiro atos. Seu "E lucevan le stelle", mesmo carente de expressão dramática, agradou ao público, que foi generoso nos aplausos. Arankam tem voz agradável, mas pequena, e o fraseado é pobre ou pouco criativo. É um tenor cuja voz parece ter vocação para o gosto popular. Ele deve ficar atento a isso. Mas tem as vantagens da juventude e de ter muito caminho pela frente. Se for um artista sério, estudioso e aplicado vai progredir. Talvez, no futuro ele nos dê o Cavaradossi que ficou devendo ao Rio.
Decepcionantes mesmo foram a orquestra, o regente e a "concepção cenográfica" dessa Tosca. Essa não é ópera para principiantes.  Já nos primeiros acordes o que se ouviu foi um som anêmico, sem garra, conduzido por batuta frágil, quando a partitura de Puccini exige tensão e som vigoroso para anunciar o drama que vai se desenrolar. A orquestra sob o comando de Silvio Viegas rendeu bem pouco. Não deu sustentação aos solistas, sobretudo no primeiro ato. Viegas deixou a impressão de não ter experiência suficiente na direção de óperas, ainda mais tendo que comandar cantores do porte de Juan Pons e Sondra Radvanovsky. No segundo ato houve um pequeno progresso, desfeito no ato seguinte pela falta de inspiração e sonoridade frouxa  na introdução, quando a orquestra executa o tema da conhecida ária "E lucevan le stelle". Grandes cantores precisam de grandes regentes e boa orquestra.
A orquestra do Theatro Municipal precisa melhorar muito, e pode começar resolvendo os graves problemas de afinação que apresentou. É inadmissível que músicos profissionais desafinem tanto! Notáveis as fragilidades das cordas e dos metais. Mas cabe a pergunta: terão estudado e ensaiado o suficiente? Suspeito que não.
Já a "concepção cenográfica" de Carla Camurati é feia, de muito mau gosto, pouco funcional e recheada de equívocos e erros técnicos. A "Tosca" é uma das poucas óperas que possuem locações reais, todas indicadas  no texto, e que qualquer turista pode visitar em Roma -ou qualquer internauta pode ver nas pesquisas de imagem da web. A saber: a Igreja Sant'Andrea Della Valle no primeiro ato; o Palazzo Farnese no segundo; e o Castel Sant'Angelo no terceiro ato. As possibilidades criativas que essas locações oferecem ou podem inspirar dispensam invencionices inúteis que nada acrescentam. A "concepção cenográfica" de Camurati na verdade não passou de uma grande colagem, que copiou idéias e elementos de outras montagens, inclusive do que nada tem a ver com ópera. Diretora da casa, Carla Camurati poderia ter convocado outro profissional. Não faltam no Brasil diretores qualificados, talvez bem mais do que ela..
Bom elenco de apoio e boas participações do Coro do Theatro Municipal e do Coro Infantil  da UFRJ.
Mas, ao fim, a música de Puccini e as qualidades da dupla Sondra-Juan Pons prevaleceram frente as deficiências da montagem e da atuação da orquestra, e o espetáculo agradou ao público que lotou o Theatro Municipal.

Henrique Marques Porto

Sondra Radvanovsky- Vissi D'Arte