sexta-feira, 27 de abril de 2012


Don Giovanni no l'Opéra-Bastille

l'Opéra-Bastille de Paris

(de Paris)  por Ildefonso Côrtes
          Luchino Visconti teve seu repouso eterno perturbado pela montagem que Michael Haneke encenou com cenários de Christoph Kanter e costumes de Annette Beaufays em Paris, no Ópera Bastille em 25 de março de 2012.

          Visconti, metteur en scene exigente, meticuloso, obcecado pela forma e fidelidade do cenário e indumentária ao espírito da obra que encenava, o italiano, mentor de Maria Callas, reinava no Scala de Milão com montagens magníficas e como diretor de cinema deixou sua arte em filmes como “O Leopardo”, “Ludwig”, entre tantos.
         
         Rigoroso ao extremo, na cena do baile no filme “O Leopardo”, que o decadente Príncipe de Salina oferecia à sociedade local, Visconti exigiu que as cômodas e armários que compunham a cena fossem abastecidas com lençóis e toalhas que não seriam vistas pelo espectador, mas que, segundo ele, dariam realidade à encenação.

Don Giovanni, que o libreto de Lorenzo da Ponte descreve como sedutor punido, mito nascido no contexto do barroco espanhol que Tirso de Molina e Molière, entre outros, tornaram célebres, ao final do século XVIII, era um grande sucesso nas peças teatrais. Este herói, insaciável em suas conquistas com uma sensualidade demoníaca, aparecia para o público como encarnação viva de seu protesto contra a velha concepção racionalista da vida. O tema, acolhido com calor, correspondia ao romantismo que nascia.

Don Giovanni situa-se entre o velho regime e o romantismo anti-racionalista da vida. Obra de transição (estamos a dois anos da Revolução Francesa) e os românticos viam na libertinagem do herói a sede do infinito na voluptuosidade (Musset).

Este é o espírito do Don Giovanni criado na atmosfera da época, estreou em 29 de outubro de 1787 no Teatro Nacional de Praga. Nada disto ocorreu ao Diretor de cena Michael Haneke em sua visão do drama que gerou a montagem equivocada da apresentação de 25 de março de 2012 em Paris.

Don Giovanni, na concepção de Michael Haneke
Num cenário de arranha-céus, onde transitavam Don Giovanni e Leporello, ambos de terno e gravata, faltaram espadas para o duelo com o pai de Don’Anna, o Comendador, cuja morte deveu-se, aparentemente, a uma facada do sedutor, o que foge ao estilo da época.

O casamento de Zerlina e Masetto, ao invés do palácio do nobre Don Giovanni, o que se vê são pessoas em trajes modernos com prédios luminosos ao fundo e quando ele ordena que se faça música, ao invés do rock ou outra música do século dos arranha-céus, toca-se um minueto!

E para culminar, o Comendador atende ao convite para cear com Don Giovanni sentado numa cadeira de rodas, e a cabeça foi substituída por um globo branco iluminado. Horrível, esta cena, ao final, coroou o mau gosto do espetáculo em que as máscaras da Comédia Del’arte seriam substituídas por máscaras de Mickey Mouse, o personagem criado pelo Walt Disney.

Inacreditável, mas a música sobreviveu a esta sucessão de agressões ao espírito da obra. Casa cheia, o público aplaudiu ao final, calorosamente.

Peter Mattei

Peter Mattei, a voz mais aclamada, foi um Don Giovanni musicalmente bom, mas prejudicado na apresentação no palco por uma encenação grotesca. Um Don Giovanni de terno e gravata, que troca de roupa com um Leporello transformado em gentil homem com trajes atuais, iguais aos do patrão para a corte de D. Elvira.

Don’Anna, com Patricia Petibon no papel, agradou às expectativas dos parisienses que apreciam muito seu timbre e sua voz mozartiana. Destaque para Saimir Pirgu que apresentou um Don Otavio másculo, protetor, sem as pieguices que muitos tenores oferecem.
Um bom Leporello de David Bizic na parte vocal e em cena. Zerlina foi belamente representada por Gaelle Arquez. Timbre claro, foi uma Zerlina excelente também na presença em cena, além da bela voz.



Orquestra e coro, dirigidos por Philippe Jordan, corretos justificaram a fama da Orquestra e Coro da Ópera Nacional de Paris naquela que se considera a “ópera das óperas”.

A parte musical, fiel ao gênio mozartiano, ficou incólume ao mau gosto do Sr. Michael como diretor de cena, alvo de comentários desairosos ouvidos nos corredores durante os intervalos.

A tentativa de inovação ao modernizar obras consagradas nem sempre é bem sucedida e acabam por ridicularizar cenas que atravessam os séculos, empolgando públicos diversos pela própria natureza de sua criação!

Mas, para os que gostam de Mozart e cerraram os olhos nos dois atos, foi um bom espetáculo.

Don Giovanni - Opéra-Bastille de Paris 
14/abril/2012
 

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Rigoletto no Rio


A ópera já foi encenada 110 vezes no Theatro Municipal

por Comba Marques Porto
Fernando Teixeira: Rigoletto. Teatro São Carlos de Lisboa, em 1987

Cinemas de várias cidades do mundo exibirão a ópera Rigoletto, de Verdi, no dia 17/04/2012, diretamente do Royal Opera House, de Londres. Em tempo de escassez de montagens de óperas no Rio de Janeiro, pode ser útil comparar a situação atual - teatros às escuras e óperas somente por intermédio da internet e demais recursos eletrônicos - com a de um passado não tão remoto em que a produção contínua de óperas incrementava a história cultural do Rio de Janeiro. Recorro, assim, aos registros disponíveis para enfocar a trajetória das apresentações da ópera Rigoletto  no Theatro Municipal do Rio de Janeiro – TM/Rio. 

De acordo com pesquisas publicadas por Edgar de Brito Chaves Junior[1], a ópera Rigoletto integra o rol das mais apresentadas no TM/Rio, desde sua inauguração em 1909 até 1989. No período analisado pelo autor, a ópera Rigoletto foi apresentada 110 vezes, ficando em sexto lugar entre as dez mais. Em primeiro lugar está La Bohème (Puccini), com 135 apresentações; em segundo, La Traviata (Verdi), com 134; em terceiro lugar, Madama Butterfly (Puccini), com 122 apresentações; em quarto Tosca (Puccini) com 120; em quinto lugar Aida (Verdi), apresentada 114 vezes. Em sétimo, oitavo, nono e décimo lugares, estão, respectivamente: Cavalleria Rusticana, de Mascagni,  (85 vezes); Carmen, de Bizet, (82 vezes); O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, (80 vezes); I Pagliacci, de Rugero Leoncavallo, (73 vezes).    

O site do TM/Rio[2] não disponibiliza informações sobre as numerosas montagens de óperas ocorridas em seus mais de 100 anos de vida. De tal modo, na falta de interesse por parte dos sucessivos gestores de Teatro Municipal do Rio de Janeiro no resgate da história das atividades desta centenária casa de música, dança e teatro, os livros de Chaves Junior passam a ser a fonte mais segura de conhecimento sobre a produção dessa casa de ópera tão importante para o Brasil e para a América Latina.

As montagens de Rigoletto na cidade do Rio de Janeiro marcaram a presença de grandes nomes da cena lírica internacional, sendo também incluída nas temporadas líricas inteiramente nacionais, desde que começaram a ser organizadas, em 1937, sob o comando de Gabriela Besanzoni Lage.  

Carlo Galeffi. Rigoletto
O grande barítono Carlo Galeffi apresentou-se no papel-título de Rigoletto em 1923, 1933 e em 1938. Outro expoente do século passado, o barítono americano Leonard Warren, cantou o Rigoletto em 1944 e em 1945. Em 1946, tivemos a presença de Gino Bechi. Em 1948, J. Villa foi o bufão, contracenando com Giuseppe di Stefano, no Duque de Mântua. Rigoletto não foi incluída nas grandiosas temporadas do início dos anos 50, quando se apresentaram no TM/Rio Callas, Tebaldi, Elisabetta Barbato, Giulietta Simionato, Fedora Barbieri, Beniaminio Gigli, Mario del Monaco, Gian Giacomo Guelfi, Nicola Rossi-Lemeni, Boris Christoff, Italo Tajo dentre tantas outras vozes de renome internacional. 




Em 1964, o Rio de Janeiro recebeu um grande elenco internacional, que se apresentou durante todo o mês de julho. Foi a última grande temporada lírica organizada no formato semelhante às anteriores – fartura de títulos e de apresentações, em récitas noturnas e matinês. A ópera Rigoletto não foi incluída no repertório, mas o barítono Piero Cappuccilli brilhou no papel de Gerard, em Andrea Chénier (Giordano) e Gian Giacomo Guelfi arrepiou a platéia com o seu Scarpia, na Tosca, de Puccini, contracenado com a intensa Magda Olivero. 

Entre 1971 e 1989, tivemos 19 apresentações de Rigoletto. Em 1972, o papel-título ficou a encargo do barítono americano Cornel McNeil, falecido em 2011, grande intérprete dos papéis verdianos, notadamente o Rigoletto.  


Lourival Braga
Na história das temporadas líricas nacionais, dois nomes se destacam na interpretação do bufão concebido por Victor Hugo e recriado por Verdi: Lourival Braga e o saudoso Fernando Teixeira. O primeiro se apresentou em 1973, num dos últimos espetáculos em que atuou. Lourival Braga faleceu em 1978, vítima de acidente de trânsito. 

Curiosidade: em 1975, pela primeira vez desde a inauguração, não houve espetáculo de ópera no TM/Rio. No ano seguinte o teatro fechou para reformas, que duraram dois anos e cinco meses, sendo reaberto em 1978. Em 1979 tivemos seis récitas de Rigoletto




O exame atento da segunda etapa do trabalho de Chaves Junior - o “Diário do Municipal (1971-1990)” - indica um bom resultado na produção de ópera do TM/Rio no período, conquanto não se tenha mais reproduzido o modelo de organização das temporadas da primeira metade do século. Ainda que de forma esparsa, tivemos bons espetáculos, com bons intérpretes. 

Fernando Teixeira. Brasília, 1991.

Nos últimos anos da década de 80, concentraram-se as mais brilhantes performances do querido barítono Fernando Teixeira, que tive o prazer de conhecer mais de perto devido à sua amizade com meu pai, Henrique Marques Porto, um incentivador de sua carreira, que se firmou a partir de 1962. Fez enorme sucesso em 1987, cantando com Placido Domingo o segundo ato do Otello, em forma de concerto. Ao lado dos dois, a soprano Leyla Guimarães. Sua versão do “Credo”, a famosa ária do personagem Iago, era das melhores do mundo, como reconheceu na época o próprio Plácido Domingo. Neste mesmo ano, cantou o Rigoletto no Teatro São Carlos, de Lisboa, sob a regência de John Neschling. 



A temporada de 1989 alçou Fernando Teixeira ao patamar das grandes vozes líricas do século XX. Em produção de Fernando Bicudo, Teixeira se apresentou como Renato em Un Ballo in Maschera (Verdi), em forma de concerto, sob a regência de Isaac Karabtchevsky, com o Coro Ópera Brasil, criado por Bicudo, em companhia do grandioso tenor Carlo Bergonzi, no papel de Riccardo. Em agosto, Fernando cantou o Gerard, da ópera Andrea Chénier (Umberto Giordano), também em forma de concerto, com a soprano americana Aprile Millo. O ano de 1989 deixou saudades. Reaberto o teatro depois de mais uma breve reforma, além das excelentes montagens de óperas em forma de concerto boa ideia do Bicudo tivemos em julho um bonito Rigoletto, com encenação, sob a regência do maestro Romano Gandolfi. O barítono brasileiro Fernando Teixeira fazia sua última apresentação nesta ópera. 

Fernando Teixeira, nascido no Rio de Janeiro em 1932, faleceu em 1991, depois de sofrer um acidente vascular cerebral durante um ensaio de “O Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, que ele estrearia na cidade de Porto Alegre, sul do Brasil.



[1] Chaves Jr, Edgar de Brito - “Memórias e glórias de um teatro: sessenta anos de história de Teatro Municipal do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Cia Editora Americana, 1971 e “Diário de Municipal (1971-1990)”, Rio de Janeiro, Gryphus, 1993.
[2] (http://www.theatromunicipal.rj.gov.br/historia.html)


Fernando Teixeira - "Cortigiani, vil razza dannata" 
Lisboa, 1987

segunda-feira, 9 de abril de 2012



 Rigoletto

No próximo dia 17 a Royal Opera House abrirá o pano para mais um Rigoletto. Na pele do trágico corcunda estará o barítono grego Dimitri Platanias. Com ele, no elenco, o tenor Vittorio Grigolo e a soprano Ekaterina Siurina. O espetáculo terá transmissão ao vivo para vários países. A propósito, vale a pena revisitar essa ópera, conhecer ou relembrar o contexto histórico em que foi composta e as circustâncias e os fatos que inspiraram Giuseppe Verdi.  

A HISTÓRIA


por Oscar Peixoto

La donna è móbile qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero... Os versos, cantados alegremente por um popular, assombraram o maestro: afinal, pertenciam a uma ária de sua última ópera que – puxa! – ainda não havia estreado! Era o início da noite de 11 de março de 1851, e o maestro Giuseppe Verdi, dirigia-se para o teatro La Fenice, de Veneza, onde se daria a primeira apresentação de Rigoletto, ópera que acabara de escrever. Entretanto, o povo da cidade já cantava aquele trecho, em virtude, talvez, da boa memória de algum operário que, enquanto montava os cenários, ouvira os ensaios dos cantores. Assim, apesar da irritação de Verdi, a nova ópera já mostrava ter uma ária de agrado popular. Destinada a se perpetuar até os dias de hoje.


Giuseppe Verdi estava trabalhando na música de La Maledizione (o primeiro nome projetado para Rigoletto) quando a Direção Central da Ordem Pública exigiu que lhe fosse mandado o libreto da ópera: as autoridades haviam sido informadas de que La Maledizione se baseava no drama Le Roi S’amuse, de Victor Hugo, peça “já deplorada na França e Alemanha pela libertinagem de que está cheia”.

E, como se isso não bastasse, era publicada uma nota de censura das autoridades: “O governador militar Von Gorzkowsky lastima que poeta e músico não tivessem sabido escolher outro campo para fazer emergir seus talentos, ao invés de entrarem no caminho de uma repugnante imoralidade”.


De fato, quando Victor Hugo decidiu apresentar a peça Le Roi s’amuse (O Rei se diverte) na capital francesa, também esbarrou na censura de seu país. O enredo fazia alusão direta ao Rei Francisco I, um libertino amante dos prazeres, e explorava o drama de seu bufão, Triboulet, anão corcunda, totalmente dominado pelo complexo de sua deformação. Triboulet odeia o rei porque é rei, os nobres porque são nobres, e os homens em geral porque não têm, como ele, uma corcova às costas. Seu principal divertimento é fazer com que o rei e os cortesãos briguem continuamente entre si, os mais fortes esmagando os mais fracos. Ao mesmo tempo, cultiva a libertinagem do rei, introduzindo-o nas famílias dos cortesãos, apontando-lhe uma esposa para seduzir, uma irmã para raptar, uma filha para desonrar. Jamais a censura francesa poderia permitir a apresentação desse monarca de forma tão pouco digna, principalmente em 1832, com o jacobinismo inicial da Revolução já totalmente neutralizado.



Assim, antes mesmo de terminar o trabalho, Verdi tinha sua nova ópera proibida tanto pela censura eclesiástica, como pela censura austríaca (a Áustria dominava, então, o norte da Itália).
Verdi queixou-se ao libretista, Francesco Maria Piave, porque este garantira que não haveria problema com a censura, já que tinha muitos amigos entre as autoridades. A única saída encontrada pelo poeta foi preparar outro libreto, com novo título – Duque de Vendôme - , e apelar para seus amigos do governo. Mas, novamente, não conseguiu a aprovação da censura; esta queria a supressão de “passagens escabrosas”, como a grotesca figura do bobo da corte, corcunda e feio, e a cena do saco em que é colocado o cadáver da filha de Rigoletto. E mais: os acontecimentos não poderiam se desenrolar na França.

A Direção Central da Ordem Pública mostrava-se preocupada com os aspectos morais da ópera, que apresentava uma nobreza libertina e ociosa e um bobo da corte escolhido por sua deformidade. Ao lado disso tudo, o argumento se desenrolava em ambiente extremamente dramático, cuja aspereza chocaria a sensibilidade dos espectadores. Por trás dessas justificativas, entretanto, havia implicações políticas: a rigorosa censura a tudo o que pudesse se relacionar com a decadência da aristocracia austríaca e reforçar o movimento da unificação e independência italianas.

Giuseppe Verdi provava mais uma vez, em sua carreira, que fazer ópera não era só suportar os caprichos de cantores e instrumentistas, ou entrentar um público hostil e empresários exigentes. O primeiro obstáculo era a censura. E as lições ele fora recebendo desde a apresentação de I Lombardi alla Prima Crociata (1843), quando falou na “pátria, tão bela e perdida” e foi convidado a “visitar” a polícia. Em Ernani (1844), inspirada em texto de Victor Hugo, teve de mudar o título várias vezes (A Honra Castelhana, O Bandido, Ruy Gómez da Silva) e a ópera só foi representada graças às amizades do libretista Piave. Unicamente na Battaglia di Legnano é que Verdi teria um pouco mais de liberdade, porque, em 1849, às vésperas da proclamação da República romana, o ambiente já era mais favorável.

 Assim, demorou algum tempo para que o compositor, o empresário Carlo Marzari e o poeta Piave entrassem em acordo com as autoridades. A ópera teria o título de Rigoletto (que deriva da palavra francesa rigolade - brincadeira, gracejo, chalaça), a ação se desenvolveria em Mântua no século XVI, o duque libertino seria chamado genericamente de Duque de Mântua – para não se confundir com Francesco Gonzaga, que reinara na região – e os nomes dos cortesãos deveriam ser outros. Verdi só não aceitou mudar o aspecto físico do bufão: Rigoletto acabou ficando como se havia planejado.

“E por que não?”, perguntava o compositor. “Acho belíssimo apresentar esta personagem, externamente disforme e ridícula e, internamente, apaixonada e cheia de amor. Escolhi-o exatamente por todas estas qualidades e esses traços originais. Se forem tirados, não poderei mais compor a música.”

Depois da estréia, como já estava ocorrendo com as demais óperas de Verdi, também Rigoletto ganhou rapidamente os principais palcos do mundo musical. Menos os franceses, porém. É que Victor Hugo, ao tomar conhecimento da adaptação musical de sua peça, resolveu pedir, judicialmente, uma indenização pelo uso do enredo sem a devida autorização. A questão durou seis anos; finalmente, o empresário de Verdi ganhou a causa, e em seguida montou a ópera em Paris. E Hugo, apesar de nunca ter-se realmente reconciliado com Verdi, assistiu à apresentação e gostou. Chegou mesmo a exclamar com entusiasmo, na cena em que o Duque de Mântua corteja Madalena sob as vistas de Gilda e Rigoletto: “Se eu pudesse fazer com que várias personagens falassem simultaneamente, de tal forma que o público percebesse as palavras e os sentimentos, também obteria efeito igual a este!”

A crítica da época foi bastante favorável a Verdi, apesar das inúmeras publicações que repudiavam as “imoralidades” e as “grosserias” do tema. Desde logo, os críticos perceberam a preocupação do compositor não só em cuidar do tema, texto e música, como em fazer com que todos os elementos da ópera se fundissem num só corpo, sem dar maior destaque à forma ou ao conteúdo.
Verdi exigia costumeiramente frases curtas, concisas e essenciais, mas ao mesmo tempo ricas de pensamento e de imagens. Em Ernani, por exemplo, coloca em primeiro plano, sob luz ofuscante, poucas figuras predominantes, capazes de exprimirem-se de maneira direta e sintética. Mais tarde, em I Due Foscari (1844), evidencia as personagens e, ao mesmo tempo, despedaça a rígida separação de ária e recitativo, procurando um discurso melódico contínuo para dar ritmo e medida à cena. No Rigoletto, o compositor atinge o ponto mais alto da expressão dramática, rompendo de forma radical com o lirismo romântico e aderindo totalmente ao melodrama.

O Romantismo, até então, apresentava as coisas de forma extremada e intransigente: ou tudo bom, ou tudo mau, sem matizes ou gradações. Verdi rompe o esquema e, com Rigoletto, introduz um elemento novo: a personagem como algo complexo, bem próxima da vida real. Rigoletto, o bufão, é deformado e mau, mas também é pai afetuoso e digno de piedade; o duque é bonito por fora e corrupto por dentro; Gilda é bondosa e virginal, mas é capaz de contrariar as ordens do pai e se deixar seduzir pelo duque. O próprio Verdi afirma que “o duque tem um caráter nulo e deve ser um libertino; não é, porém, repelente”.

É que o compositor não dava muita atenção à intelectualidade da época, que queria ver na obra uma proximidade com o “belo”. E ouvia indiferente os comentários sobre as “inconveniências obscenas” de seu trabalho. Sua preocupação era bem diversa: acompanhava o desenvolvimento das novas formas de vida impulsionadas pela Revolução Francesa. Assim, abandona o velho público de sapatinhos e perucas e pensa nos novos espectadores: de classe, exigências e idéias diferentes. A elegância literária cede lugar à desordem dos sentimentos. Em Rigoletto, não há meios-termos: o espectador é levado, de repente, ao centro da ação. Se quer um dito refinado, a platéia vai ser satisfeita, mas vai ter de ouvir também as palavras venenosas do bufão.

Verdi já começava a ficar famoso, quando nova tragédia ocorreria, acrescentando novos elementos à sua obra. Em menos de dois meses morrem o filho, a filha e a esposa Margherita Barezzi (filha de um comerciante de Busseto, que o incentivou nos estudos de música). Um Giorno di Regno, que deveria ser uma ópera cômica, acabou por se tornar algo sem graça e até triste, pois foi feita quando perdeu a família (1840).

Assim, as lembranças da infância, a participação nos anseios de libertação do domínio estrangeiro e a profunda depressão pela tragédia familiar forneceram os elementos essenciais para que a peça de Victor Hugo ganhasse a simpatia do compositor italiano: permitia extravasar, ao mesmo tempo, o desejo de atingir a nobreza austríaca dominante e a necessidade de por em música sua dor.
Mas, em Verdi, alguns críticos vêem também um grotesco que teria origem em sua vida interiorana: “Sou e serei sempre um campônio de Roncole”, costumava dizer. E deu prova dessa afirmação quando, após o triunfal êxito de Otello, em 1887, decidiu retirar-se para sua propriedade de Santa Ágata (em companhia de Giuseppina Streponni, a segunda esposa), dizendo que aquele fora seu último trabalho. A única preocupação, agora, seria a atividade agrícola. Mas a promessa não durou muito: criaria ainda Falstaff, trabalho de natureza cômica, baseado na obra de Shakespeare, que havia sido condensada de forma muito hábil por Arrigo Boito (libretista e também consagrado compositor). Embora interessado pela qualidade do libreto, o compositor teria comentado com seus amigos: “Divirto-me em musicá-lo, sem planos de qualquer espécie e sem mesmo saber se o terminarei”.

Giuseppe Fortunino Francesco Verdi não só terminou a ópera como também conseguiu atingir vivo o começo do século XX. Desde 1813, quando nasceu, até 1901, assistiu a todo um processo de transformação política da Europa e participou de forma ativa das modificações que levaram a música a acompanhar os novos tempos.

Fontes: Opera Guide (Gerhart Von Westerman); Enciclopedia del Arte Lirico: Sergio Sister; Kobbé's Complete Opera Book; dentre outras.
 (publicado originalmente em http://blogln.ning.com/profiles/blogs/rigoletto-1)

Fernando Teixeira, baritono brasileiro - Rigoletto

terça-feira, 3 de abril de 2012


“Clone” de 
A Ópera em questão

As transmissões de óperas ao vivo em HD

 "A solução mais cara seria explodir as casas de ópera”.
Pierre Boulez  em 1972

Não resta dúvida de que as transmissões ao vivo de óperas do Met e do Royal Opera House, sobretudo no primeiro caso, são um sucesso. O que não quer dizer que o projeto inaugurado em 2006 pelo alemão Peter Gelb, diretor do Metropolitan, esteja livre de críticas e até de alguma polêmica. 

No Rio de Janeiro, em São Paulo, Buenos Aires, Lisboa, Belfast, ou mesmo em Pequim a avaliação mais corrente é de que assistir às transmissões ao vivo, com imagem de alta definição, em salas de cinema, é a única opção para a maioria dos amantes da ópera. 

Peter Gelb, diretor do Met

“É engraçado: em algumas sessões, o público aplaude entre as árias. Eles estão aplaudindo quem? Acho que estão aplaudindo a ópera como gênero e a possibilidade de estar ali, em comunidade, tendo acesso a ela” –disse Gelb, em 2009, numa entrevista a Luiz Paulo Sampaio, de “O Estado de São Paulo”. 

Não, Mr. Gelb. Os aplausos não foram para o senhor, embora os mereça. Foram para os cantores mesmo. É assim aqui do lado de baixo da linha do equador.

Ao assumir a direção do Met em 2006, Peter Gelb identificou dois problemas: 1) a média de idade dos frequentadores do teatro era de 65 anos; e mais grave, 2) a situação financeira do Met ia de mal a pior, agravada pelas ameaças da crise econômica americana, que logo se tornaria global. O Met depende do patronato para se manter e estava diante de uma real situação de risco –a perda de receitas provenientes das doações. Era necessário, portanto, encontrar novas fontes de captação de recursos. Não foi tarefa difícil para Peter Gelb, um experimentado executivo que acabara de deixar o comando da Sony Music para assumir o posto de manager do Met. Gelb pôs em execução o que chamou “Projeto HD”. Eram as óperas montadas no Met chegando, ao vivo, aos cinemas de todo o mundo. 

O objetivo principal do ambicioso projeto estava bem claro: captar recursos para o Metropolitan Opera House. Gelb pode festejar. As transmissões de óperas ao vivo, em HD, chegam atualmente a 1.700 salas de cinema em 54 países e geram um lucro líquido de US $11 milhões para o Met. 

É verdade que as transmissões ao vivo são capazes de atrair público para a ópera. Mas por enquanto, seu resultado é apenas este: uma tacada certeira de Peter Gelb, que tirou do vermelho as finanças do Metropolitan, um teatro que possui um orçamento anual de 300 milhões de dólares. Para efeito de comparação, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro teve em 2011 um orçamento total de 53 milhões de reais. 

Quer dizer, então, que o público brasileiro estaria condenado a jamais ver em seus próprios teatros de ópera as grandes estrelas do canto lírico? Talvez. Mas, não seremos apenas nós, o público brasileiro, que ficaremos sem Jonas Kauffmann, Anna Netrebko, Elina Garanca e tantos outros grandes artistas. Eles, os artistas, também estarão privados de conhecer de perto o seu público! No Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Buenos Aires. 

Esse esquema milionário que concentra as produções de ópera em dois ou três centros e transmite para as periferias os espetáculos com imagem HD, ou oferece reprises ao público (projeção de um DVD na tela de um cinema) tira dos artistas o que é mais importante para eles: o contato direto com o público!  

As palmas que batemos aqui não são as mesmas que batem lá fora. O público brasileiro de ópera não é solene e frio, como o de Viena ou o de Londres. O público brasileiro é passional. Nós berramos, pedimos bis, assoviamos, gritamos os nomes dos cantores, queremos vê-los de perto. Enfim, somos acolhedores e calorosos.  

Portanto, não somos apenas nós que estamos privados desses artistas de que gostamos tanto. Eles também estão sendo privados de nós! Se nos conhecerem vão querer voltar sempre. Idem em relação aos argentinos, mexicanos, venezuelanos e uruguaios -povos que também cultivam o gosto pela música e a ópera em particular. 

De minha parte fico feliz em contribuir para a saúde financeira do Metropolitan, embora Nova York continue a fazer pouco caso dos nosso sobrevalorizado real. Mas confesso que muito melhor seria estar contribuindo para a produção de óperas aqui mesmo no Rio de Janeiro, no teatro que construímos para esta finalidade, o Theatro Municipal. 

As transmissões ao vivo de óperas dos grandes centros para as periferias são benvindas. Mas não podem inviabilizar ou matar as produções locais. Se assim for, significarão uma "coppia inicua" entre comércio, finanças e arte. Boa para o Met. Péssima para nós.

Henrique Marques Porto

Anna Netrebko - "Coppia Inicua" - Ana Bolena

segunda-feira, 2 de abril de 2012


A ópera em questão

"A situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se, assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera, em particular."

por Comba Marques Porto

 
Na última década do século XIX ocorreram as primeiras reproduções fonográficas, com gravações de músicas em discos de cera. Enrico Caruso, aos 22 anos de idade, abraçou a nova tecnologia e a introduziu no terreno da ópera. As suas primeiras gravações ocorreram em Milão em 1895. A virada do século marcou, então, a nova era da cultura operística – o gênero transpõe os limites das execuções ao vivo, de restrito alcance popular. No mesmo período, desenvolve-se a tecnologia de transmissão de som por ondas de rádio. Experiências bem sucedidas ocorrem na Itália e no sul do Brasil por iniciativa do padre Roberto Landell de Moura. 

De tal modo, já nas duas primeiras décadas do século XX, consolida-se a perspectiva de fazer a ópera vibrar dentro dos lares, seja pela aquisição de vitrolas e discos, seja pelo caminho mais abrangente das transmissões radiofônicas. Ocorre, sem dúvida, um avanço em termos de democratização da música erudita e da ópera,  sobretudo nos países em que prevalecia uma injusta distribuição de renda, como o Brasil, onde as boas montagens de ópera, com as mais belas e talentosas vozes eram acessíveis apenas às elites e a reduzido segmento da classe média. 

Lá se vão cem anos da virada tecnológica que, no ritmo acelerado do século XX, galgou novos patamares, de modo que hoje, nos começos do século XXI, temos a internet e os seus deslumbrantes recursos como maior fonte de difusão de tudo que se queira conhecer. No mundo da ópera, a tecnologia de transmissão ao vivo tem socializado as últimas temporadas líricas de grandes teatros, como o MET, de Nova York, e o Royal Opera House, de Londres, projetos bem recebidos pelos brasileiros. 

Entretanto, este novo processo de difusão da ópera entra em contradição com uma triste realidade: casas de ópera que já fizeram história, hoje permanecem às escuras. É o caso do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Por aqui, contentemo-nos com as óperas levadas nos cinemas, com os downloads da internet, com a variedade enciclopédica do youtube. Adeus à ópera ao vivo. Adeus à possibilidade de ver uma Anna Netrebko em nosso nobre palco de ópera que já acolheu grandiosas vozes como as de Caruso, Lauri-Volpi, Claudia Muzio, Callas, Tebaldi, Del Monaco, Galeffi, Rossi-Lemeni, só para citar alguns dos interpretes que até meados do século XX tinham os teatros da America do Sul como parada certa em suas turnês internacionais. Para tanto, nos anos 20 e 30, enfrentavam longas viagens de navio e permaneciam nas cidades por longos períodos.  

Hoje, a verdade é que não temos a menor chance de assistir Anna Netrebko em montagem de ópera no Rio de Janeiro. Igualmente é remota a possibilidade de conferir a potência da voz do Jonas Kaufmann. Se aqui no Rio, como disse um amigo, é preciso “juntar dinheiro” para assistir um show da Gal Costa, em fim de carreira, imagine-se o que se pagaria para ver um curto recital de árias e canções de artistas do top dos acima citados? E quão remota não é a possibilidade de vê-los numa big temporada, como as que ocorriam nos tempos de glória do nosso Teatro Municipal!? 

Não se trata de ser saudosista. Mas a ópera, como a música em geral, tem natureza própria de um evento artístico a ser experimentado ao vivo. Como observa Henrique Marques Porto, “ópera é teatro” e tudo o que tem natureza de encenação teatral pede público presente. 

Ora, numa cidade como o Rio de Janeiro onde a ópera de boa qualidade não mais acontece ao vivo, toda a facilidade da tecnologia de transmissão e reprodução pode não ser suficiente para manter vivo o interesse do público pelo gênero. Este interesse não surge somente pelo caminho da informação e das reproduções em som e imagem. A absorção pelo público de um evento artístico dessa ordem passa, e muito, pelo caminho da emoção, da experiência pessoal, sensorial, de contato direto com a apresentação da obra. 

Só me é possível apreciar óperas em DVDs porque criei laços afetivos com o gênero já na infância e também na juventude, assistindo muitas encenações ao vivo. Meus pais não eram ricos e, mesmo assim, tive a chance de assistir tais espetáculos em suas cores, em seus resultados sonoros sempre únicos, podendo captar os movimentos de palco em sua totalidade e nos detalhes - cenários, figurinos, iluminação e encenação. Pude, assim, trocar impressões nos intervalos e retocar a maquiagem depois de ir às lágrimas nos eletrizantes momentos em que “o teatro vinha abaixo” com performances que jamais se repetiriam. Meu testemunho já é de um tempo de quase declínio nas décadas de 50 a 80. Mas é possível afirmar que nas primeiras décadas do século XX, muitos jovens da classe média carioca tiveram acesso ao fluxo intenso de apresentações de ópera, em temporadas internacionais repletas de artistas notáveis, quando essa era uma atividade cultural não apenas economicamente viável, mas também lucrativa para os teatros e os empresários.  

A situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se, assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera, em particular. 

A música popular, nacional e internacional, teria o mesmo destino patético - morreria à míngua, não fossem as apresentações ao vivo. Paul McCartney não abre mão de seus shows em turnês internacionais. Em breve, voltará ao Brasil e já pela quinta vez. Empresários brasileiros investem em grandiosos festivais de música para orgulho da cidade e para gringo nenhum botar defeito. Por que, então, as cachoeiras de dinheiro aplicadas nas mega produções de música pop não podem ser em parte aproveitadas para trazer ao Rio a ópera de boa qualidade? Já teve ópera na Apoteose. O estádio de futebol “Engenhão”, que serviu de palco ao beatle, poderia ser aproveitado para montagem de ópera. O “Maracanãzinho” também, aliás, disponibilizando boa acústica. E lá está o Municipal todo reformado para as noites de gala preferidas pelos que podem e queiram priorizar a ópera em seus critérios de consumo cultural. Nada impede que o espetáculo seja realizado no Rio de Janeiro e daqui transmitido para todo o mundo. 

Os próprios cantores líricos, principalmente as grandes estrelas, poderiam ter uma participação mais direta e investir em projetos de valorização das temporadas de ópera e sua difusão junto aos círculos mais amplos do público mundial, sem dispensar o apoio das moderníssimas tecnologias, dos recursos da internet que, afinal, é instrumento e jamais substituirá a experiência artística única das encenações ao vivo.