sábado, 12 de maio de 2012


Minha iniciação nos prazeres 
do mundo da ópera

por Ildefonso Côrtes 

          Deixem que me apresente. Gosto de ópera desde 10 anos de idade. Fui iniciado nestes mistérios pelo meu primeiro guru no assunto, o querido Henrique Marques Porto, crítico musical que escrevia para jornais e produzia programa de rádio sobre música, apaixonado pela ópera, rara sensibilidade para as belezas do canto lírico, meu tio-avô.
          O templo de minha iniciação localizava-se em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, numa casa jardinada, quintal onde plantas, árvores e flores vicejavam alegres ao sol carioca.
          Passava muitos fins de semana lá, onde Tio Henrique, homem do mundo, viajado, organizava festins de Sardanapalo, opíparos banquetes. Grão sacerdote da boa música e da boa mesa preparava suntuosas peixadas, mariscadas afrodisíacas, rabadas lascivas, dionisíacas feijoadas. 

O crítico musical Marques Porto, o "tio Henrique" (à direita) com o baixo Nicola Zaccaria

          Após estas comilanças, a iniciação na ópera com acesso integral aos libretos em italiano ou francês. Simples, descontraído, brincalhão, junto ao equipamento de som, ele, muitas vezes em cuecas, olhar rútilo, rosto expressivo, face crispada, regia a partitura em suas nuances, caudalosamente, com gestual que descrevia a música, de forma exuberante, entremeado do canto representando a cena, como se no palco estivesse. A trama, as expressões mais enfáticas, a história da criação da ópera inserida em seu contexto histórico já havia sido esmiuçada a priori em longas conversas que precediam as audições.
          Puccini era um dos autores favoritos – Butterfly, Bohème, Tosca, Turandot, Soror Angélica, Manon Lescaut eram sorvidas no texto original.
Os sete filhos já haviam sido inoculados pelo vírus da ópera e alguns se sucederam, no Municipal, nos papéis infantis de Butterfly, Soror Angélica e Gianni Schichi.
Além do canto verdiano, que igualava o de Puccini, Andrea Chenier de Giordano, Thaís, Werther e Manon de Massenet, Cavalleria Rusticana e I Pagliacci, a inseparável Cav-Pag de Mascagni e Leoncavallo, eram as óperas mais ouvidas. Fui descobrindo as Leonoras, Amneris, Aidas, Gilda e Rigoleto, Azucena, Manrico, Nathanael, Violeta Valery, Alfredo Germont, Dom Alvaro, Enzo Grimaldi da Gioconda de Ponchielli.
Fui apresentado ao Verdi amadurecido de Otello e Falstaff que compunham a fase madura do mestre italiano.
Wagner, Mozart, os mestres do bel canto, Donizetti, Belini, foram-me chegando paulatinamente. Adolescente que era, a ópera tomou-me de assalto com a observação das descobertas que me enchiam de prazer. Quando completei 15 anos de idade, surpreendi meus pais com o presente de aniversário escolhido: uma gravação, na íntegra, da Cavalleria Rusticana, com Maria Callas – Santuzza, Giseppe Di Stefano – Turidu, Tito Gobbi – Compadre Alfio, com a orquestra do Scala de Milão conduzida pelo doce e sagaz Tulio Serafim, pai musical de Callas. O presente, que não se encontrava facilmente no Rio de Janeiro, teve que ser importado.
Outra paixão diferente me consumia: o Flamengo do tri-campeonato de 42/43/45 e com minha participação nos estádios, torcedor apaixonado, no tri-campeonato de 53/54/55 de Sinforiano Garcia, Pavão, Dequinha, Doutor Rubis, Jordan e o angélico paraguaio Fleitas Solich, técnico que acalmava os jogadores na concentração, tocando piano. Ao invés do “mais querido”, no presente, optei pela diva Maria Callas, paixão de toda minha vida futura.

Tenor Assis Pacheco
Ainda na década de 50, vinham ao Brasil os monstros sagrados da cena lírica internacional: Mario Del Monaco, Tagliavini, Gian Giacomo Guelfi, Simionato, Fedora Barbieri, Elizabeta Barbato, Boris Christoff, Magda Olivero. Assisti a todos de pé, atrás de colunas, no chão, na galeria, na última hora, em lugares vagos. Tudo pela influência do Tio Henrique junto à Administração do Teatro. Assisti a ensaios e, quando possível, mais de uma récita. Acompanhei também os passos, com mais intimidade, dos nossos Colósimo, Paulo Fortes, Violeta Coelho Neto de Freitas, Assis Pacheco, Glória Queiroz, Clara Marise, Fernando Teixeira.


Formei-me Engenheiro Naval em 1958, pela antiga Escola Nacional de Engenharia (hoje UFRJ), satisfazendo a outra paixão da infância, os barcos e o mar, paixão que cultivo até hoje.
Como Engenheiro militante em estaleiros brasileiros, por dever de ofício, viajei por quase todo o mundo. A mesma unção religiosa dos verdes anos me levou - mais amadurecido e melhor conhecedor - a assistir espetáculos fascinantes em Praga, Viena, Salzburgo, Novo York, Londres, Hamburgo, Düsseldorf, Colônia, Milão.

Coluna de Ildefonso em "A  Notícia". Idéia do tio.
Hoje, do alto dos meus setenta anos, a música em geral e a ópera em particular, encheu minha vida de uma emoção estética que me comove e gratifica. Bendigo os anos em que pude conviver com o velho tio, aprender tanto e hoje, agradecer-lhe este tesouro de prazeres que foi o legado de vida que ele me deixou.
Na catedral desta crença, rezo fervoroso em várias capelas: a da música sinfônica com os mestres da Idade Média, Renascença, Barroco, Romantismo, Clássico, impressionistas, a música sacra e coral e a de câmera que um velho amigo, Dr. Hélio de Lima Carlos, cardiologista, vaticinou-me certa vez: “Ao final você vai descobrir os prazeres refinados da música onde sem percussão, pirotecnias orquestrais, poucos instrumentos fazem a música cingir-se ao essencial. Nada de excessos, só o filé mignon” como ele, jocosamente, me dizia. Anos depois vi cumprir-se a sua profecia, a música de câmera me tem conduzido a encantamentos inexcedíveis.


Tenho a paixão pela música como meu “leit-motiv” vital e faço coro às sábias palavras do Artur da Távola, grande conhecedor de música, quando disse: 
“Música é vida interior. Quem tem vida interior nunca está só”.

6 comentários:

  1. Bela e delicadas lembranças, amigo Ilde. Parabéns.

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  2. Parabéns, Ilde, por se artigo emocionante. Sou suspeita no que concerne às palavras escritas sobre meu pai. Mas não posso deixar de subscrevê-las, pois muito bem o traduzem. Seu texto expressa mais que o agradecimento e o carinho de um sobrinho. Faz sentido. Ele foi um pai musical não só para os próprios filhos. Como costumo dizer, ele tinha o dom de infundir o amor pela música (e pela ópera em especial) a quem estivesse por perto. Quanto à turminha infanto-juvenil que o cercava, conseguiu um resultado ótimo - quase a metade dos filhos ligados para sempre à ópera e mais dois sobrinhos: você e o João Gualberto. Obrigada, Ilde! Beijos.

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  3. Uau, Ilde! Sensacional o artigo! Beijocas

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  4. Primo Ildefonso, texto emocionante e bela homenagem! Ao narrar seus primeiros contados com a ópera, pelas mãos do papai, você evidencia o quanto ele está presente em nossas vidas. Mesmo passados tantos anos de sua morte, ele continua sendo uma referência de bom gosto, sensibilidade e bom humor. Imagino que a surpresa dos queridíssimos Mila e Renato, igualmente sensíveis, com o presente pedido por você ao completar 15 anos tenha, rapidamente, cedido lugar a um grande sentimento de orgulho pela escolha do filho ainda tão jovem. bjs e obrigada!

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  5. Caro Ildefonso
    Parabéns pelo seu texto cheio de emoção. Mesmo quem não teve o privilégio de conhecer o Marques Porto, tem agora o prazer de conviver com seus filhos e familiares. Com depoimentos como o seu, e muitos outros que ouço dos filhos, passei a amar cada vez mais esse homem sensível e musical. Mais do que merecida a homenagem.
    Beijos.
    Helô

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  6. Meu pai conta que numa visita há muitos anos em nossa casa,Assis Pacheco, que era seu primo, cantou algumas músicas, e quando saiu fiquei tentando imitar. Tentando, claro, pois realmente não nasci para isso. Era muito pequena, e talvez tenha sido meu primeiro contato com ópera, que admiro muito.
    Fiquei muito feliz em ver esta foto.
    Parabéns!
    Francis

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