quinta-feira, 17 de maio de 2012

Il Trittico
Giacomo Puccini
Drama e comédia em três movimentos 


por
Comba Marques Porto 
e Henrique Marques Porto

Il Trittico estreou no MET, em 1918. Como diz o nome, reúne Il Tabarro, Suor Angelica e Gianni Schicchi, as óperas de um só ato escritas por Giacomo Puccini. As apresentações se harmonizam nesta ordem, sugerindo um concerto em três movimentos. O primeiro – Il Tabarro - corresponderia a um andante piu forte. Suor Angelica a um adagio lamentoso e Gianni Schicchi a um allegro muitíssimo vivace.  

Nos respectivos libretos das óperas do Tritico são abordados significativos conflitos e situações inerentes às relações humanas – amor, ciúme, ódio, frustração, preconceito, opressão, mesquinharia, cobiça, delitos e a morte, ingrediente que não poderia faltar em obras do repertório verista, particularmente o de Puccini. 

Em Il Tabarro, a morte se apresenta em cena de um crime passional. Michele (barítono), proprietário de um barco, descobre que sua esposa, Giorgetta (soprano), mantém um romance com Luigi (tenor), um dos estivadores que lhe presta serviços. Desconfiado de que Luigi viria ao encontro da mulher na calada da noite, Michele fica na espreita e o mata. 

Geraldine Farrar, primeira Angelica
Suor Angelica (soprano) vive o estigma do aprisionamento de mulheres em conventos, por suposta conduta dissonante quanto aos costumes tidos como bons entre as famílias nobres italianas do século XVIII - Angelica tivera um filho, solteira. São passados sete anos sem notícias dos seus. Uma visita é anunciada. A Princesa (contralto), tia de Angélica, vem colher sua assinatura em documento relacionado ao casamento de sua irmã. Por insistência de Angelica, com frieza, a Princesa conta que seu filho morrera em decorrência de grave doença. Não suportando tamanha dor, Angelica usa seu saber sobre as propriedades das flores, prepara uma poção venenosa e a ingere. Na hora da morte tem a visão do filho, cena tratada musicalmente por Puccini com beleza e intensidade dramática, a retratar uma espécie de perdão divino quanto ao gesto extremo praticado pela freira.

Giuseppe de Luca, o criador de Gianni Schichi
Em Gianni Schicchi, a morte é abordada em feitio de comédia. Põe o público a gargalhar. Puccini enfoca a cobiça dos parentes quanto à herança de Buoso Donati - personagem fortíssimo, conquanto se apresente, em cena, já morto. Puccini inspira-se em verso do 30º Canto do Inferno, de Dante, onde o nome do personagem-título é mencionado como pessoa que assume a identidade de outra para atingir objetivos naturalmente escusos. No caso, objetivos pactuados com a família do morto, que deixa seus bens para os padres de certa ordem religiosa, frustrando a todos. Schicchi sugere a falcatrua. O morto seria escondido e ele, Schicchi, ocuparia o leito de Buoso para ditar ao tabelião um novo testamento. Entusiasmados, os parentes aceitam a solução. Cada um, ao seu modo, oferece vantagens a Schicchi para obter os melhores quinhões. Ao fim, Schicchi engana a todos, legando a si mesmo os bens mais valiosos do monte hereditário.   

De acordo com a anatomia, a base de nosso coração é formada pelos átrios. Por analogia, é possível imaginar que Verdi seria o átrio direito e Puccini o átrio esquerdo do coração da ópera italiana. Para quem gosta do gênero, rever ou voltar a ouvir Il Trittico é sempre bom e necessário. É estreitar o vínculo com o pulsar do coração da música italiana. Este foi o penúltimo trabalho de Puccini que veio a morrer em 1924, deixando inconclusa a sua Turandot. Em Il Trittico, sente-se que Puccini já se aproxima de uma estética musical mais século XX, em certos pontos, familiar à dos impressionistas franceses como Ravel e Debussy. Em Il Tabarro, Puccini cita Mimi, personagem sua de La Bohème - como fez Mozart na parte final de Don Giovanni que, ao ouvir a execução de um trecho das Bodas de Fígaro, comenta – “esta eu conheço”. A referência de Puccini à sua Mimi soa como um modo de festejar uma linguagem da qual se despedia, ao abrir seu talento às novas construções melódicas de seu tempo. Entretanto, nas três óperas, Puccini, mesmo sensível ao novo, mantém a sua linha de raiz: seu dom de grande melodista, imortalizado nas belas árias que escreveu para todos os registros vocais. 


Gianni Schichi: Tito Gobbi e Renata Scotto
Quem passa a se interessar por ópera deve aprender que “O, mio babbino caro” não é uma mera canção italiana; é, sim, uma das mais belas árias escritas por Puccini, para a sua inspiradíssima ópera Gianni Schicchi. Só vendo ou ouvindo a ópera em sua íntegra, para compreender a inserção do texto no libreto e apagar a ideia errônea de que Lauretta canta para um “bambino” (uma criança), como se costuma ouvir dizer entre os que, infelizmente, só conhecem óperas das cenas publicitárias exibidas na TV. Não! A personagem dirige-se ao seu “babbo”, ao seu pai, ao seu “babbino” (paizinho, em italiano), implorando a ele que atenda à família Donati e, quem sabe, assim se viabilize o seu casamento com Rinuccio, sobrinho do morto.  

A ária de Luigi, de Il Tabarro, não costuma ser incluída no repertório de tenores em recitais. É pena, pois ali se vê a denúncia do compositor quanto às agruras da vida dos estivadores. O sentimento de repúdio à opressão está fortemente presente em M. Butterfly e em Tosca. O mesmo tom sente-se em Suor Angelica, vítima do rigor preconceituoso da nobreza italiana a que pertencia. “Senza mamma”, com feição de ária, é o pouco que se conhece de Suor Angelica. Mas o verdadeiro sentido deste trecho só se alcança na fruição da totalidade da peça, para a qual, de fato, exige-se uma sintonia mais fina com o gênero e, particularmente, com a música de Puccini – e, por que não, com a delicada condição da mulher que, por questão de crença ou discriminação, vê sua vida entregue ao claustro de um convento. Puccini é o Chico Buarque da ópera – pode-se dizer. Como poucos artistas, soube cantar a alma feminina, suas fissuras, suas sutilezas, captando com muita sensibilidade os desenhos das finas rendas com que, por vezes, se faz estampar. Consta que ele compôs Suor Angelica sob inspiração das visitas que fazia à sua irmã, Iginia Puccini (1856-1922), que vivia como freira no Monastério de Vicopelago, com o nome “suor Giuglia Enrichetta”.    

Desde 1913 Puccini projetava compor três óperas em um ato baseadas em passagens da Divina Comedia, de Dante Alighieri. Talvez imaginasse que assim conseguiria dar à obra a unidade que pretendia. O resultado final, contudo, foram três óperas baseadas em fontes, inspirações e textos diferentes, sem relação direta entre si. O primeiro libreto a ficar pronto foi o do Il Tabarro, adaptação feita por Giuseppe Adami da peça La Houppelande, de Didier Gold, que Puccini assistira em Paris. Seu interesse era mostrar a Paris nada glamurosa vivida por personagens obscuros, desesperançados e, sobretudo, solitários que trabalhavam e viviam à beira do Rio Sena. Chegou a pensar em uma ópera em dois atos, como consta de uma carta enviada ao editor Ricordi: “Adami mi scrisse che aveva um’idea ottima per uma piccola opera in due atti da unire ad Houppelande, fosse vero! Io sono senza far niente e questo mi secca moltissimo”.

Em 1917 a música para Il Tabarro já estava pronta, quando ocorreram a Puccini as ideias de Suor Angelica, amadurecida depois de uma conversa com Giovacchino Forzano, e Gianni Schichi“ho anche finita uma breve trama su Gianni Schichi”, escreveu ele a Tito Ricordi. Nascia o Il Trittico.

Gianni Schichi, talvez pela força inovadora de sua música e a comicidade da trama ganhou vôo próprio, e se desprende de Il Tabarro e Suor Angelica em muitas montagens. De fato, foi a única a obter sucesso imediato junto ao público. Contudo, era desejo de Puccini que os três títulos fossem apresentados juntos. O maestro tinha razão.  

Uma interpretação corrente do Il Trittico afirma que Puccini teria pretendido apresentar em cada ópera os três universos da Divina Comedia, de Dante –“o purgatório”, “o paraíso” e “o inferno”. Mas, como se pode ver, apenas Gianni Schichi tem relação com a obra clássica de Dante. Contudo, existem dois temas comuns a unir essas óperas: a prisão (física e espiritual) e a morte.

O barco de Michele, em Il Tabarro, é uma espécie de prisão para personagens tristes, solitários e embrutecidos pela vida. “Como é difícil ser feliz...” lamenta Georgetta. “Um saco nas costas e a cabeça voltada para o chão!” –revolta-se Luigi. Prisão também é o claustro em que vive a sofrida Angelica, que lá está não por vocação ao monastério, mas por “penitência”, como acusa a tia. Em cômica prisão – o quarto do finado Buoso Donati - estão também os muitos personagens de Gianni Schichi, família ambiciosa e cínica, refém de um testamento, que chora a perda da herança e não a morte do parente rico –as exceções são Rinuccio, Lauretta, o menino Gherardino e o próprio Schichi, uma espécie de “bom falsário”.    

Em Il Tabarro, a morte trágica, o assassinato cometido por ciúmes, rancor e ódio; em Suor Angelia, a morte sublime, o suicídio perdoado e apresentado como redenção; em Gianni Schichi, a morte cômica que expõe os defeitos dos vivos e se presta à crítica social tratada de forma irônica. 


Já se sabe sobre a estréia de Il Trittico. Mas cabe uma lembrança em relação à Suor Angelica. A ópera teve uma pré-estréia ainda em 1917, em apresentação privada, apenas para as freiras, no Monastério de Vicopelago ou "Monastero della Visitazione", na Toscana, onde Iginia, a irmã de Puccini, era carmelenga (administradora). O próprio Puccini descreveu emocionado, em carta, como foi essa anteprima de sua ópera.(*)

Monastero Agostiniano Vicopelago

"Raccontai loro, con incerta trepidazione e con tutte le precauzioni e le delicate sfumature inspirate dall'ambiente e dall'auditorio, l'intreccio alquanto scabroso del libretto. Erano tutte attente, tutte commosse e con qualche lacrimuccia esclamavano compunte e timide ma sincere: - Poverina, poverina! Come fu disgraziata! Dio misericordioso certo l'ha accolta in cielo e le ha perdonato. Cattiva quella zia così dura... Oh, la mamma che non ha veduto il suo bambino prima che quello morisse!
Si direbbe quasi che le anime dei bimbi indugino a volare in Paradiso, se non ricevono prima il bacio della loro mamma! - Ed altre frasi tenere e commoventi. Io credevo che si scandalizzassero e che mi venissero fuori con qualche uscita di stupore, mi aspettavo anzi, col riserbo di quelle anime pure e timide, un qualche cosa che sapesse di rimprovero, di riprovazione per il troppo ardimento dell'intreccio... Invece trovai soltanto della pietà, della generosa simpatia cristiana aulente di verace ed edificante sentimento religioso. E quando finalmente mi congedai, le monachine mi fecero ala, ed arrivato in fondo alla scala, volsi lo sguardo e le vidi tutte in fila in una spontanea disposizione scenografica tutta vivezza ed espressione, quale nessun coreografo sarebbe mai capace di immaginare, e le nostre coriste e ballerine (Dio mi perdoni la profanazione) tanto meno di eseguire.”


Kobbé, em seu Livro Completo da Ópera (pag. 638) registra que, das três óperas, Suor Angelica é a que menos fez sucesso. Gianni Schicchi, ao contrário, de tão apreciada, teria conquistado autonomia para apresentações isoladas. Nada contra. Porém, as três óperas interligam-se magistralmente sob a assinatura de um compositor que não as uniu por acaso. É necessário, pelo menos por uma vez, apreciá-las em conjunto, não importando o tempo alongado do espetáculo, para melhor entender, musicalmente, o fio condutor dos tais “três movimentos” que Il Trittico sugere. 

(*) Em Vicopelago estão guardados os manuscritos da partitura de "La Fanciulla del West", com uma dedicatória de Puccini à sua irmã Iginia: "Alla mia Monachina Iginia affettuosamente Giacomo Torre del Lago 23 Gen 911".

Fontes:
1) Kobbé, o Livro Completo da Ópera
2) http://www.magiadellopera.com/benvenuto.html. Agradecimentos a Maurizio Tagliabue 

Barbara Frittoli - Suor Angelica - Cena Final




Paulo Fortes - Gianni Schicchi




Carlo Tagliabue e Clara Petrella (dueto) - Il Tabarro 

2 comentários:

  1. Ah, Puccini! Quanto minha vida mudou depois de ouvir um tenor cantando Puccini! Essa analogia de Verdi e Puccini com os átrios, a comparação com Chico Buarque e toda essa análise sensível e cuidadosa da ópera ficou genial! Não consigo parar de vibrar com essa matéria tão bem trabalhada. Já li e reli inúmeras vezes. Parabéns aos queridos amigos, Comba e Henrique. Adivinhem qual será minha próxima ópera do resgate a ser assistida? Beijos entusiasmados e felizes.
    Helô

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  2. Helô,
    Você está incluída na autoria da matéria, como co-editora, além de incentivadora.
    Quando perguntaram para a Maria Callas "o que é a ópera?" ela respondeu: "-A opera é Verdi."
    Poderia ter acrescentado o nome de Puccini. Não sei o que seria da ópera sem esses dois.
    beijão
    Henrique

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