Rigoletto
No próximo dia 17 a Royal Opera House abrirá o pano para mais um Rigoletto. Na pele do trágico corcunda estará o barítono grego Dimitri Platanias. Com ele, no elenco, o tenor Vittorio Grigolo e a soprano Ekaterina Siurina. O espetáculo terá transmissão ao vivo para vários países. A propósito, vale a pena revisitar essa ópera, conhecer ou relembrar o contexto histórico em que foi composta e as circustâncias e os fatos que inspiraram Giuseppe Verdi.
A HISTÓRIA
por Oscar Peixoto
Giuseppe Verdi estava trabalhando na música de La Maledizione (o primeiro nome projetado para Rigoletto) quando a Direção Central da Ordem Pública exigiu que lhe fosse mandado o libreto da ópera: as autoridades haviam sido informadas de que La Maledizione se baseava no drama Le Roi S’amuse, de Victor Hugo, peça “já deplorada na França e Alemanha pela libertinagem de que está cheia”.
E, como se isso não bastasse, era publicada uma nota de censura das autoridades: “O governador militar Von Gorzkowsky lastima que poeta e músico não tivessem sabido escolher outro campo para fazer emergir seus talentos, ao invés de entrarem no caminho de uma repugnante imoralidade”.
De fato, quando Victor Hugo decidiu apresentar a peça Le Roi s’amuse (O Rei se diverte) na capital francesa, também esbarrou na censura de seu país. O enredo fazia alusão direta ao Rei Francisco I, um libertino amante dos prazeres, e explorava o drama de seu bufão, Triboulet, anão corcunda, totalmente dominado pelo complexo de sua deformação. Triboulet odeia o rei porque é rei, os nobres porque são nobres, e os homens em geral porque não têm, como ele, uma corcova às costas. Seu principal divertimento é fazer com que o rei e os cortesãos briguem continuamente entre si, os mais fortes esmagando os mais fracos. Ao mesmo tempo, cultiva a libertinagem do rei, introduzindo-o nas famílias dos cortesãos, apontando-lhe uma esposa para seduzir, uma irmã para raptar, uma filha para desonrar. Jamais a censura francesa poderia permitir a apresentação desse monarca de forma tão pouco digna, principalmente em 1832, com o jacobinismo inicial da Revolução já totalmente neutralizado.
Assim, antes mesmo de terminar o trabalho, Verdi tinha sua nova ópera proibida tanto pela censura eclesiástica, como pela censura austríaca (a Áustria dominava, então, o norte da Itália).
Verdi queixou-se ao libretista, Francesco Maria Piave, porque este garantira que não haveria problema com a censura, já que tinha muitos amigos entre as autoridades. A única saída encontrada pelo poeta foi preparar outro libreto, com novo título – Duque de Vendôme - , e apelar para seus amigos do governo. Mas, novamente, não conseguiu a aprovação da censura; esta queria a supressão de “passagens escabrosas”, como a grotesca figura do bobo da corte, corcunda e feio, e a cena do saco em que é colocado o cadáver da filha de Rigoletto. E mais: os acontecimentos não poderiam se desenrolar na França.
A Direção Central da Ordem Pública mostrava-se preocupada com os aspectos morais da ópera, que apresentava uma nobreza libertina e ociosa e um bobo da corte escolhido por sua deformidade. Ao lado disso tudo, o argumento se desenrolava em ambiente extremamente dramático, cuja aspereza chocaria a sensibilidade dos espectadores. Por trás dessas justificativas, entretanto, havia implicações políticas: a rigorosa censura a tudo o que pudesse se relacionar com a decadência da aristocracia austríaca e reforçar o movimento da unificação e independência italianas.
Giuseppe Verdi provava mais uma vez, em sua carreira, que fazer ópera não era só suportar os caprichos de cantores e instrumentistas, ou entrentar um público hostil e empresários exigentes. O primeiro obstáculo era a censura. E as lições ele fora recebendo desde a apresentação de I Lombardi alla Prima Crociata (1843), quando falou na “pátria, tão bela e perdida” e foi convidado a “visitar” a polícia. Em Ernani (1844), inspirada em texto de Victor Hugo, teve de mudar o título várias vezes (A Honra Castelhana, O Bandido, Ruy Gómez da Silva) e a ópera só foi representada graças às amizades do libretista Piave. Unicamente na Battaglia di Legnano é que Verdi teria um pouco mais de liberdade, porque, em 1849, às vésperas da proclamação da República romana, o ambiente já era mais favorável.
Assim, demorou algum tempo para que o compositor, o empresário Carlo Marzari e o poeta Piave entrassem em acordo com as autoridades. A ópera teria o título de Rigoletto (que deriva da palavra francesa rigolade - brincadeira, gracejo, chalaça), a ação se desenvolveria em Mântua no século XVI, o duque libertino seria chamado genericamente de Duque de Mântua – para não se confundir com Francesco Gonzaga, que reinara na região – e os nomes dos cortesãos deveriam ser outros. Verdi só não aceitou mudar o aspecto físico do bufão: Rigoletto acabou ficando como se havia planejado.
“E por que não?”, perguntava o compositor. “Acho belíssimo apresentar esta personagem, externamente disforme e ridícula e, internamente, apaixonada e cheia de amor. Escolhi-o exatamente por todas estas qualidades e esses traços originais. Se forem tirados, não poderei mais compor a música.”
Depois da estréia, como já estava ocorrendo com as demais óperas de Verdi, também Rigoletto ganhou rapidamente os principais palcos do mundo musical. Menos os franceses, porém. É que Victor Hugo, ao tomar conhecimento da adaptação musical de sua peça, resolveu pedir, judicialmente, uma indenização pelo uso do enredo sem a devida autorização. A questão durou seis anos; finalmente, o empresário de Verdi ganhou a causa, e em seguida montou a ópera em Paris. E Hugo, apesar de nunca ter-se realmente reconciliado com Verdi, assistiu à apresentação e gostou. Chegou mesmo a exclamar com entusiasmo, na cena em que o Duque de Mântua corteja Madalena sob as vistas de Gilda e Rigoletto: “Se eu pudesse fazer com que várias personagens falassem simultaneamente, de tal forma que o público percebesse as palavras e os sentimentos, também obteria efeito igual a este!”
A crítica da época foi bastante favorável a Verdi, apesar das inúmeras publicações que repudiavam as “imoralidades” e as “grosserias” do tema. Desde logo, os críticos perceberam a preocupação do compositor não só em cuidar do tema, texto e música, como em fazer com que todos os elementos da ópera se fundissem num só corpo, sem dar maior destaque à forma ou ao conteúdo.
Verdi exigia costumeiramente frases curtas, concisas e essenciais, mas ao mesmo tempo ricas de pensamento e de imagens. Em Ernani, por exemplo, coloca em primeiro plano, sob luz ofuscante, poucas figuras predominantes, capazes de exprimirem-se de maneira direta e sintética. Mais tarde, em I Due Foscari (1844), evidencia as personagens e, ao mesmo tempo, despedaça a rígida separação de ária e recitativo, procurando um discurso melódico contínuo para dar ritmo e medida à cena. No Rigoletto, o compositor atinge o ponto mais alto da expressão dramática, rompendo de forma radical com o lirismo romântico e aderindo totalmente ao melodrama.
O Romantismo, até então, apresentava as coisas de forma extremada e intransigente: ou tudo bom, ou tudo mau, sem matizes ou gradações. Verdi rompe o esquema e, com Rigoletto, introduz um elemento novo: a personagem como algo complexo, bem próxima da vida real. Rigoletto, o bufão, é deformado e mau, mas também é pai afetuoso e digno de piedade; o duque é bonito por fora e corrupto por dentro; Gilda é bondosa e virginal, mas é capaz de contrariar as ordens do pai e se deixar seduzir pelo duque. O próprio Verdi afirma que “o duque tem um caráter nulo e deve ser um libertino; não é, porém, repelente”.
É que o compositor não dava muita atenção à intelectualidade da época, que queria ver na obra uma proximidade com o “belo”. E ouvia indiferente os comentários sobre as “inconveniências obscenas” de seu trabalho. Sua preocupação era bem diversa: acompanhava o desenvolvimento das novas formas de vida impulsionadas pela Revolução Francesa. Assim, abandona o velho público de sapatinhos e perucas e pensa nos novos espectadores: de classe, exigências e idéias diferentes. A elegância literária cede lugar à desordem dos sentimentos. Em Rigoletto, não há meios-termos: o espectador é levado, de repente, ao centro da ação. Se quer um dito refinado, a platéia vai ser satisfeita, mas vai ter de ouvir também as palavras venenosas do bufão.
Verdi já começava a ficar famoso, quando nova tragédia ocorreria, acrescentando novos elementos à sua obra. Em menos de dois meses morrem o filho, a filha e a esposa Margherita Barezzi (filha de um comerciante de Busseto, que o incentivou nos estudos de música). Um Giorno di Regno, que deveria ser uma ópera cômica, acabou por se tornar algo sem graça e até triste, pois foi feita quando perdeu a família (1840).
Assim, as lembranças da infância, a participação nos anseios de libertação do domínio estrangeiro e a profunda depressão pela tragédia familiar forneceram os elementos essenciais para que a peça de Victor Hugo ganhasse a simpatia do compositor italiano: permitia extravasar, ao mesmo tempo, o desejo de atingir a nobreza austríaca dominante e a necessidade de por em música sua dor.
Mas, em Verdi, alguns críticos vêem também um grotesco que teria origem em sua vida interiorana: “Sou e serei sempre um campônio de Roncole”, costumava dizer. E deu prova dessa afirmação quando, após o triunfal êxito de Otello, em 1887, decidiu retirar-se para sua propriedade de Santa Ágata (em companhia de Giuseppina Streponni, a segunda esposa), dizendo que aquele fora seu último trabalho. A única preocupação, agora, seria a atividade agrícola. Mas a promessa não durou muito: criaria ainda Falstaff, trabalho de natureza cômica, baseado na obra de Shakespeare, que havia sido condensada de forma muito hábil por Arrigo Boito (libretista e também consagrado compositor). Embora interessado pela qualidade do libreto, o compositor teria comentado com seus amigos: “Divirto-me em musicá-lo, sem planos de qualquer espécie e sem mesmo saber se o terminarei”.
Giuseppe Fortunino Francesco Verdi não só terminou a ópera como também conseguiu atingir vivo o começo do século XX. Desde 1813, quando nasceu, até 1901, assistiu a todo um processo de transformação política da Europa e participou de forma ativa das modificações que levaram a música a acompanhar os novos tempos.
Fontes: Opera Guide (Gerhart Von Westerman); Enciclopedia del Arte Lirico: Sergio Sister; Kobbé's Complete Opera Book; dentre outras.
(publicado originalmente em http://blogln.ning.com/profiles/blogs/rigoletto-1)
obrigado, Henrique, pelo contexto estético-político.
ResponderExcluirReinaldo
Reinaldo,
ExcluirAgradeçamos ao nosso saudoso Oscar Peixoto pela ótima matéria que preparou para seu blog em 2009. Esse é o que se pode chamar de post póstumo. Oscar se foi mas continua a ajudar na difusão da ópera. Virão outros.
grande abraço
Henrique
Gratíssimo, Henrique, pela lembrança e pelo post! Não me lembro de tê-lo lido. Meu pai raramente me enviava os links dos posts do blog, acreditando que não os lia. Sempre admirei muito seu estilo literário e a dedicação ao blog que, espero, seja mantido ad infinitum no portal do Nassif.
ResponderExcluirAbração
Marcus Peixoto
Muito oportuna a publicação. Bonito trabalho do Oscar. E como é bom ouvir o Fernando Teixeira!!!
ResponderExcluirCantava muito o Fernando! São poucos os barítonos de hoje que cantam o Rigoletto com essa qualidade.
Excluirbeijão
Henrique
Marcus,
ResponderExcluirComo você vê, o Oscar continua colaborando.
Essa foi uma das melhores matérias que ele produziu. Na época disse a ele, e repito: é a melhor resenha do Rigoletto que existe na web! Pode existir alguma do mesmo nível, melhor não. A matéria original é bem maior. Oscar descreveu toda a trama da ópera e ilustrou cada passagem com vídeos. Aqui nesse espaço ficaria grande demais.
A "Página Oscar Peixoto" não só foi mantida pelo Luis Nassif, como ainda recebe alguns visitantes interessados em ópera. É uma reserva de material aqui para o blog. :)
Grande abraço
Henrique
Seja por Oscar, seja por Fernando, a palavra que de verdade me ocorre depois de ler a matéria é "saudade".
ResponderExcluirAliás, vale registrar que o maestro desta apresentação é o Silvio Barbato, ainda jovem, também falecido no desatre do vôo da Air France, há alguns anos. lns Sir ea
ResponderExcluirMarcus, sem dúvida esse foi um dos posts mais elaborados pelo Oscar lá no Portal. Impecável! E sempre contando com os "Henriquecedores" comentários do nosso amigo :)
ResponderExcluirQue belo legado deixou seu pai lá no Portal! Outro dia, nos meus passeios virtuais pelos blogs, encontrei o seguinte: "Em matéria postada no Portal Luis Nassif, Oscar Peixoto afirma que, Jessye possui uma das vozes mais marcantes de nossa época" (...) Henrique tem toda razão quando diz que a página do Oscar continua recebendo visitantes interessados em ópera.
No mais, a Comba já disse tudo: "saudade".
Beijos a todos.
Helô