segunda-feira, 2 de abril de 2012


A ópera em questão

"A situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se, assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera, em particular."

por Comba Marques Porto

 
Na última década do século XIX ocorreram as primeiras reproduções fonográficas, com gravações de músicas em discos de cera. Enrico Caruso, aos 22 anos de idade, abraçou a nova tecnologia e a introduziu no terreno da ópera. As suas primeiras gravações ocorreram em Milão em 1895. A virada do século marcou, então, a nova era da cultura operística – o gênero transpõe os limites das execuções ao vivo, de restrito alcance popular. No mesmo período, desenvolve-se a tecnologia de transmissão de som por ondas de rádio. Experiências bem sucedidas ocorrem na Itália e no sul do Brasil por iniciativa do padre Roberto Landell de Moura. 

De tal modo, já nas duas primeiras décadas do século XX, consolida-se a perspectiva de fazer a ópera vibrar dentro dos lares, seja pela aquisição de vitrolas e discos, seja pelo caminho mais abrangente das transmissões radiofônicas. Ocorre, sem dúvida, um avanço em termos de democratização da música erudita e da ópera,  sobretudo nos países em que prevalecia uma injusta distribuição de renda, como o Brasil, onde as boas montagens de ópera, com as mais belas e talentosas vozes eram acessíveis apenas às elites e a reduzido segmento da classe média. 

Lá se vão cem anos da virada tecnológica que, no ritmo acelerado do século XX, galgou novos patamares, de modo que hoje, nos começos do século XXI, temos a internet e os seus deslumbrantes recursos como maior fonte de difusão de tudo que se queira conhecer. No mundo da ópera, a tecnologia de transmissão ao vivo tem socializado as últimas temporadas líricas de grandes teatros, como o MET, de Nova York, e o Royal Opera House, de Londres, projetos bem recebidos pelos brasileiros. 

Entretanto, este novo processo de difusão da ópera entra em contradição com uma triste realidade: casas de ópera que já fizeram história, hoje permanecem às escuras. É o caso do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Por aqui, contentemo-nos com as óperas levadas nos cinemas, com os downloads da internet, com a variedade enciclopédica do youtube. Adeus à ópera ao vivo. Adeus à possibilidade de ver uma Anna Netrebko em nosso nobre palco de ópera que já acolheu grandiosas vozes como as de Caruso, Lauri-Volpi, Claudia Muzio, Callas, Tebaldi, Del Monaco, Galeffi, Rossi-Lemeni, só para citar alguns dos interpretes que até meados do século XX tinham os teatros da America do Sul como parada certa em suas turnês internacionais. Para tanto, nos anos 20 e 30, enfrentavam longas viagens de navio e permaneciam nas cidades por longos períodos.  

Hoje, a verdade é que não temos a menor chance de assistir Anna Netrebko em montagem de ópera no Rio de Janeiro. Igualmente é remota a possibilidade de conferir a potência da voz do Jonas Kaufmann. Se aqui no Rio, como disse um amigo, é preciso “juntar dinheiro” para assistir um show da Gal Costa, em fim de carreira, imagine-se o que se pagaria para ver um curto recital de árias e canções de artistas do top dos acima citados? E quão remota não é a possibilidade de vê-los numa big temporada, como as que ocorriam nos tempos de glória do nosso Teatro Municipal!? 

Não se trata de ser saudosista. Mas a ópera, como a música em geral, tem natureza própria de um evento artístico a ser experimentado ao vivo. Como observa Henrique Marques Porto, “ópera é teatro” e tudo o que tem natureza de encenação teatral pede público presente. 

Ora, numa cidade como o Rio de Janeiro onde a ópera de boa qualidade não mais acontece ao vivo, toda a facilidade da tecnologia de transmissão e reprodução pode não ser suficiente para manter vivo o interesse do público pelo gênero. Este interesse não surge somente pelo caminho da informação e das reproduções em som e imagem. A absorção pelo público de um evento artístico dessa ordem passa, e muito, pelo caminho da emoção, da experiência pessoal, sensorial, de contato direto com a apresentação da obra. 

Só me é possível apreciar óperas em DVDs porque criei laços afetivos com o gênero já na infância e também na juventude, assistindo muitas encenações ao vivo. Meus pais não eram ricos e, mesmo assim, tive a chance de assistir tais espetáculos em suas cores, em seus resultados sonoros sempre únicos, podendo captar os movimentos de palco em sua totalidade e nos detalhes - cenários, figurinos, iluminação e encenação. Pude, assim, trocar impressões nos intervalos e retocar a maquiagem depois de ir às lágrimas nos eletrizantes momentos em que “o teatro vinha abaixo” com performances que jamais se repetiriam. Meu testemunho já é de um tempo de quase declínio nas décadas de 50 a 80. Mas é possível afirmar que nas primeiras décadas do século XX, muitos jovens da classe média carioca tiveram acesso ao fluxo intenso de apresentações de ópera, em temporadas internacionais repletas de artistas notáveis, quando essa era uma atividade cultural não apenas economicamente viável, mas também lucrativa para os teatros e os empresários.  

A situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se, assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera, em particular. 

A música popular, nacional e internacional, teria o mesmo destino patético - morreria à míngua, não fossem as apresentações ao vivo. Paul McCartney não abre mão de seus shows em turnês internacionais. Em breve, voltará ao Brasil e já pela quinta vez. Empresários brasileiros investem em grandiosos festivais de música para orgulho da cidade e para gringo nenhum botar defeito. Por que, então, as cachoeiras de dinheiro aplicadas nas mega produções de música pop não podem ser em parte aproveitadas para trazer ao Rio a ópera de boa qualidade? Já teve ópera na Apoteose. O estádio de futebol “Engenhão”, que serviu de palco ao beatle, poderia ser aproveitado para montagem de ópera. O “Maracanãzinho” também, aliás, disponibilizando boa acústica. E lá está o Municipal todo reformado para as noites de gala preferidas pelos que podem e queiram priorizar a ópera em seus critérios de consumo cultural. Nada impede que o espetáculo seja realizado no Rio de Janeiro e daqui transmitido para todo o mundo. 

Os próprios cantores líricos, principalmente as grandes estrelas, poderiam ter uma participação mais direta e investir em projetos de valorização das temporadas de ópera e sua difusão junto aos círculos mais amplos do público mundial, sem dispensar o apoio das moderníssimas tecnologias, dos recursos da internet que, afinal, é instrumento e jamais substituirá a experiência artística única das encenações ao vivo.               

2 comentários:

  1. Comba querida, esse seu "manifesto" é uma verdadeira prova de amor à ópera e à cultura carioca. De que adianta o belo palácio arquitetônico, cheio de dourados e mármores, se não há programação? Vamos mesmo cobrar e protestar. Henrique, que casamento perfeito entre imagem e texto! Adorei.
    Beijos.
    Helô

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  2. Comba, gostei muitíssimo. Por que não tentar publicá-lo em jornal? "O Globo", por exemplo, na página de Opinião. Quem é o editor do Segundo Caderno?
    Você bem chama atenção para o importante fato de que uma coisa - as transmissões ao vivo ou não das óperas do Metropolitan, o dvd etc e tal - não exclui a outra. Se existem as exibições no cinema para as quais os ingressos esgotam, o que ajuda a formar platéias, você chama atenção para o espaço vazio do teatro - para implementar o gosto e ajudar nesta edução - que não é ocupado neste momento.
    Um beijo,
    Christina

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