A ópera em questão
"A
situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo
pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se,
assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera,
em particular."
por Comba Marques Porto
Na última
década do século XIX ocorreram as primeiras reproduções fonográficas, com gravações
de músicas em discos de cera. Enrico Caruso, aos 22 anos de idade, abraçou a
nova tecnologia e a introduziu no terreno da ópera. As suas primeiras gravações
ocorreram em Milão em 1895. A virada do século marcou, então, a nova era da
cultura operística – o gênero transpõe os limites das execuções ao vivo, de
restrito alcance popular. No mesmo período, desenvolve-se a tecnologia de transmissão
de som por ondas de rádio. Experiências bem sucedidas ocorrem na Itália e no sul
do Brasil por iniciativa do padre Roberto Landell de Moura.
De tal
modo, já nas duas primeiras décadas do século XX, consolida-se a perspectiva de
fazer a ópera vibrar dentro dos lares, seja pela aquisição de vitrolas e
discos, seja pelo caminho mais abrangente das transmissões radiofônicas.
Ocorre, sem dúvida, um avanço em termos de democratização da música erudita e
da ópera, sobretudo nos países em que
prevalecia uma injusta distribuição de renda, como o Brasil, onde as boas montagens
de ópera, com as mais belas e talentosas vozes eram acessíveis apenas às elites
e a reduzido segmento da classe média.
Lá se
vão cem anos da virada tecnológica que, no ritmo acelerado do século XX, galgou
novos patamares, de modo que hoje, nos começos do século XXI, temos a internet
e os seus deslumbrantes recursos como maior fonte de difusão de tudo que se
queira conhecer. No mundo da ópera, a tecnologia de transmissão ao vivo tem
socializado as últimas temporadas líricas de grandes teatros, como o MET, de
Nova York, e o Royal Opera House, de Londres, projetos bem recebidos pelos brasileiros.
Entretanto,
este novo processo de difusão da ópera entra em contradição com uma triste
realidade: casas de ópera que já fizeram história, hoje permanecem às escuras.
É o caso do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Por aqui, contentemo-nos com as
óperas levadas nos cinemas, com os downloads da internet, com a variedade
enciclopédica do youtube. Adeus à ópera ao vivo. Adeus à possibilidade de ver uma
Anna Netrebko em nosso nobre palco de ópera que já acolheu grandiosas vozes
como as de Caruso, Lauri-Volpi, Claudia Muzio, Callas, Tebaldi, Del Monaco,
Galeffi, Rossi-Lemeni, só para citar alguns dos interpretes que até meados do
século XX tinham os teatros da America do Sul como parada certa em suas turnês
internacionais. Para tanto, nos anos 20 e 30, enfrentavam longas viagens de
navio e permaneciam nas cidades por longos períodos.
Hoje, a
verdade é que não temos a menor chance de assistir Anna Netrebko em montagem de
ópera no Rio de Janeiro. Igualmente é remota a possibilidade de conferir a
potência da voz do Jonas Kaufmann. Se aqui no Rio, como disse um amigo, é
preciso “juntar dinheiro” para assistir um show da Gal Costa, em fim de
carreira, imagine-se o que se pagaria para ver um curto recital de árias e
canções de artistas do top dos acima citados? E quão remota não é a
possibilidade de vê-los numa big temporada,
como as que ocorriam nos tempos de glória do nosso Teatro Municipal!?
Não se
trata de ser saudosista. Mas a ópera, como a música em geral, tem natureza própria
de um evento artístico a ser experimentado ao vivo. Como observa Henrique
Marques Porto, “ópera é teatro” e tudo o que tem natureza de encenação teatral
pede público presente.
Ora,
numa cidade como o Rio de Janeiro onde a ópera de boa qualidade não mais
acontece ao vivo, toda a facilidade da tecnologia de transmissão e reprodução pode
não ser suficiente para manter vivo o interesse do público pelo gênero. Este interesse
não surge somente pelo caminho da informação e das reproduções em som e imagem.
A absorção pelo público de um evento artístico dessa ordem passa, e muito, pelo
caminho da emoção, da experiência pessoal, sensorial, de contato direto com a apresentação
da obra.
Só me é
possível apreciar óperas em DVDs porque criei laços afetivos com o gênero já na
infância e também na juventude, assistindo muitas encenações ao vivo. Meus pais
não eram ricos e, mesmo assim, tive a chance de assistir tais espetáculos em
suas cores, em seus resultados sonoros sempre únicos, podendo captar os movimentos
de palco em sua totalidade e nos detalhes - cenários, figurinos, iluminação e encenação.
Pude, assim, trocar impressões nos intervalos e retocar a maquiagem depois de
ir às lágrimas nos eletrizantes momentos em que “o teatro vinha abaixo” com performances
que jamais se repetiriam. Meu testemunho já é de um tempo de quase declínio nas
décadas de 50 a 80. Mas é possível afirmar que nas primeiras décadas do século
XX, muitos jovens da classe média carioca tiveram acesso ao fluxo intenso de
apresentações de ópera, em temporadas internacionais repletas de artistas
notáveis, quando essa era uma atividade cultural não apenas economicamente viável,
mas também lucrativa para os teatros e os empresários.
A
situação atual de abstinência de projetos de boas montagens de ópera ao vivo
pode vir a representar o fim desta cultura na cidade do Rio de Janeiro, contrariando-se,
assim, a força de sua tradição como capital mundial da música em geral e da ópera,
em particular.
A
música popular, nacional e internacional, teria o mesmo destino patético - morreria
à míngua, não fossem as apresentações ao vivo. Paul McCartney não abre mão de seus
shows em turnês internacionais. Em breve, voltará ao Brasil e já pela quinta
vez. Empresários brasileiros investem em grandiosos festivais de música para orgulho
da cidade e para gringo nenhum botar defeito. Por que, então, as cachoeiras de
dinheiro aplicadas nas mega produções de música pop não podem ser em parte aproveitadas
para trazer ao Rio a ópera de boa qualidade? Já teve ópera na Apoteose. O estádio
de futebol “Engenhão”, que serviu de palco ao beatle, poderia ser aproveitado para montagem de ópera. O “Maracanãzinho”
também, aliás, disponibilizando boa acústica. E lá está o Municipal todo
reformado para as noites de gala preferidas pelos que podem e queiram priorizar
a ópera em seus critérios de consumo cultural. Nada impede que o espetáculo seja realizado
no Rio de Janeiro e daqui transmitido para todo o mundo.
Os próprios
cantores líricos, principalmente as grandes estrelas, poderiam ter uma participação
mais direta e investir em projetos de valorização das temporadas de ópera e sua
difusão junto aos círculos mais amplos do público mundial, sem dispensar o
apoio das moderníssimas tecnologias, dos recursos da internet que, afinal, é
instrumento e jamais substituirá a experiência artística única das encenações
ao vivo.
Comba querida, esse seu "manifesto" é uma verdadeira prova de amor à ópera e à cultura carioca. De que adianta o belo palácio arquitetônico, cheio de dourados e mármores, se não há programação? Vamos mesmo cobrar e protestar. Henrique, que casamento perfeito entre imagem e texto! Adorei.
ResponderExcluirBeijos.
Helô
Comba, gostei muitíssimo. Por que não tentar publicá-lo em jornal? "O Globo", por exemplo, na página de Opinião. Quem é o editor do Segundo Caderno?
ResponderExcluirVocê bem chama atenção para o importante fato de que uma coisa - as transmissões ao vivo ou não das óperas do Metropolitan, o dvd etc e tal - não exclui a outra. Se existem as exibições no cinema para as quais os ingressos esgotam, o que ajuda a formar platéias, você chama atenção para o espaço vazio do teatro - para implementar o gosto e ajudar nesta edução - que não é ocupado neste momento.
Um beijo,
Christina