quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Tecnologia muito "além" da arte? Rumo à Gravação Virtual (e outras considerações).




por André Vital

Adoro as enquetes tipo "obras e discos que você levaria para uma ilha deserta", simplesmente porque tenho a resposta na ponta da língua; as obras seriam o Parsifal e/ou ( se pudesse levar duas...) a "Arte da Fuga" do Mestre Bach.

No caso do Parsifal também tenho de pronto a resposta - Karajan DG, a sua primeira gravação digital feita (se bem que não a primeira a ser lançada) -a palavra e o conceito perfeição, bem como a sua realização, são provavelmente para uma realidade inefável,  mas se uma interpretação chegou perto, certamente foi esta!

Não estou falando das óbvias limitações e percalços que atingem 100% das gravações de ópera; tanto o tenor como a cantora que faz a Kundry são mais alvo de críticas do que louvores, e mesmo no caso dos outros solistas, sempre se pode reclamar de alguma coisa...a "Perfeição" a que me refiro está mais para aquele conceito euclidiano do todo ser maior que a soma das partes. Se se pudesse resumir em poucas palavras o fenômeno desta interpretação, seria com a expressão "mensuração áurea"!

Proporções e escolha de tempos, individualmente em cada momento e entre si, do menor micro ao maior macro do universo da obra final wagneriana; equilíbrio (quase) perfeito entre fusão e clareza individual de timbres e instrumentos, ou seja plasticidade e hedonismo numa perfeita aliança.

Infelizmente a "Imago" que foi esta interpretação também está turvada pela benção/maldição do fenômeno da reprodução sonora doméstica - numa cadeia vasta que testemunha a situação da nossa prisão platônica vai-se do primitivo sistema digital, das características próprias do selo amarelo alemão (que sempre tendeu a um som detalhado mas sem tridimensionalidade), passando pelas limitações em se conseguir um sistema de reprodução pessoal que não só minimize mas também corrija estes problemas intrínsecos de uma tomada de som feita em sessões onde se usaram, ao mesmo tempo, dois gravadores, um digital e um análogo, até que o regente se decidisse pelo digital, pela acústica das nossas salas domésticas, nossos ouvidos, etc etc.

O avanço tecnológico, contudo, é um fato; e mesmo assim, nos assombramos com ele quando é capaz de, de repente, solucionar para nós problemas cuja solução sequer poderíamos conceber.

O sistema digital, como se sabe, opera binariamente, ou seja, não importa quão grande seja o número de sinais necessários para se reproduzir uma música, suas unidades são só o '1' e o '0'.

Apesar de até hoje, para alguns profissionais e melômanos, o som digital não ter igualado o análogo, principalmente na questão da reprodução, chegamos  hoje ao ponto de podermos "melhorar" (conceito perigoso este...) uma gravação mais antiga em qualquer computador um pouco acima de média.

 No Parsifal do Karajan, depois de 31 anos de convívio e progresso, já se consegue perceber de um modo muito melhor detalhes e perspectivas mais gerais da gravação; contudo Karajan padecia do mal freudiano do excesso de controle, o que fazia com que, em casos de  gravações de obras que exigissem uma dinâmica muito extrema (dinâmica é a variação total entre o som mais baixo e o mais alto de uma dada obra), ele mesmo tomasse não só as rédeas da regência, mas também as da mesa de som, insistindo em mexer nos níveis dinâmicos antes que a edição final de uma sessão ficasse pronta!

Este processo é dolorosamente sentido aqui e nas suas gravações de Bruckner; no seu Parsifal ela se mostra mais desagradável nas assim chamadas "músicas de mudança de cena", nos 1o e 3o atos; especificamente aqui o regente assim agia para tentar equilibrar a relação direta que havia entre se ter uma maior expansão sonora com MENOS detalhe e vice-versa

Pois bem, este humilde wagneriano que vos escreve conseguiu "consertar" estes problemas usando 2 programas relativamente simples e um notebook de um pouco menos de 2000 R$! O que fiz? 

Se imaginarmos que a gravação digital idealmente deve ser uma linha ondulada que sobe e desce alternadamente, mas que só pode ser assim "desenhada" por pequenos traços que só podem ser perfeitamente verticais e horizontais, devem-se usar tantos e tão minúsculos traços verticais/horizontais quantos forem possíveis, a ponto dos mesmos desaparecerem individualmente ou, usando um linguajar mais  técnico, evitar a "escadinha digital" - era esta limitação do passado que provocava aquele som estridente, ácido, "berrado" nos médios e difuso nos graves (problemas estes que, diga-se de passagem, eram até apreciados por certos ouvintes, hipnotizados pela feitiçaria mercadológica da época do seu lançamento...) do digital de 20, 30 anos atrás.

O que fiz foi fazer a "onda" que é a gravação deste Parsifal ficar com tantos traços, como já dito acima, a ponto de não só esta ser perfeitamente lisa, mas igualmente "bela". e onde houve compressão sonora, nos já também citados pontos críticos da tomada de som, estes foram digitalmente amplificados e filtrados, tendo sido o procedimento executado tomando como referências gravações similares em termos de interpretação (Solti, Barenboim e o registro da Rádio austríaca das 4 performances ao vivo do próprio Karajan) e em relação a minha memória musical da performance que vi do regente Giuseppe Sinopoli em Bayreuth.

Terá sido meu "melhorar" uma interferência alienígena para com as intenções do intérprete? Não penso assim; Karajan estava realmente escravo da tecnologia da sua época - o meu esforço resultou em tornar ainda mais evidentes as qualidades desta interpretação por mim acima expostas, para não falar de perspectivas mais naturais das vozes de Hoffmann e Vejzovic, do balanço do(s) coro(s) e orquestra (julgado por muitos acertadamente no passado como desigual), das sutilíssimas harmonias (sempre expostas em acordes agora quase "organísticos" na clareza e proporção das suas partes), até mesmo, indo do extremo mais analítico/objetivo ao mais emocional/subjetivo de transformar a audição deste Parsifal em um quadro holográfico-sonoro onírico o qual, mesmo conscientes, nos transporta para o Reino do Graal, onde realidade interna e externa se confundem e onde, como bem o diz o próprio Gurnemanz (com ressonâncias einsteinianas) a Parsifal no 1o ato: "...Veja, meu filho, aqui o Tempo  se transforma em Espaço!".

Não está longe o tempo em que poderemos, usando ou não uma gravação já existente, criar a performance ideal; aquele tenor anasalado, aquela soprano esganiçada, aquele tempo ou dinâmica inadequados, aquela articulação pastosa, aquela(s) entrada(s) errada(s) que arruínam o nosso "quase tocar com os lábios o néctar da perfeição", como acontece em várias gravações das quais amamos as virtudes mas cujos problemas já nos cansam, em breve serão coisa do passado; com mais um tempo, poder-se-á criar do nada a peformance ideal, que será por muitos tomada como as fanfarras do arauto que em breve anunciará o fim do nosso cativeiro na Caverna de onde só contemplávamos as Sombras da realidade maior.

Assim como em tudo na vida, não só não podemos passar sem ela, mas a tecnologia mesmo de nós se apossa irresistivelmente anunciando as Bodas Sagradas de uma nova era: Ciência e Arte.

Um comentário:

  1. Prezado André

    Fiquei curiosa quanto ao seu Parsifal modificado. Naturalmente foi para melhor. Reconheço e tiro bons proveitos das novas tecnologias de reprodução fonográfica e visual. Sobretudo quanto às óperas de Wagner.

    Gostaria de saber sua opinião sobre as teorias do maestro Sergiu Celibidache, opositor de Karajan e intransigente defensor da música ao vivo como manifestação ímpar. Seriam as ideias de Celibidache puristas e elitistas?

    Um abraço.
    Comba

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