“A notícia da inclusão no elenco artístico da temporada
lírica oficial do tenor paulista João Gibin nos faz recordar uma longínqua
noite de 1951, quando no Teatro Municipal do Rio, depois de várias
apresentações de jovens cantores concorrentes ao prêmio “Grande Caruso”,
sagrou-se vencedor João Gibin, desconhecido barítono de São Paulo.
João Gibin |
Não foi uma vitória unânime a de Gibin -dois votos favoráveis
e um contra-, nem uma vitória fácil, pois vários fatores perturbaram aquele
rumoroso concurso.
Deve-se notar que se apresentaram para o certame canoro quase
todos os melhores valores da América Latina e que a seleção foi demorada, trabalhosa
e frequentemente agitada. O grupo de finalistas era formado por ótimos
concorrentes. A escolha, portanto, não era fácil, visto que em cada um era obrigatório
reconhecer qualidades dignas de serem tomadas em consideração. O Juri era
composto pelos maestros Eleazar de
Carvalho, Salvatore Ruberti e o
americano Hugo Ross.
A finalíssima se realizou perante um público compacto que
apinhava toda a sala do Teatro Municipal, e que acompanhava com grande
interesse o desenvolvimento do concurso.
Súbito se teve a sensação de que um único duelo artístico teria
que ser resolvido pelo Juri, e os participantes eram: um barítono mexicano e o
brasileiro João Gibin. Evidentemente os torcedores de Gibin eram em maior
número. Em compensação aqueles do barítono mexicano eram mais aguerridos e
tinham preparado com rara habilidade as forças que poderiam levar o seu preferido
à vitória.
A comissão julgadora se encontrava em sérias dificuldades, e
havia um detalhe perigoso: como decidir, se, aparentemente, o mexicano e o brasileiro
se equivaliam? Disse aparentemente.
Enquanto o mexicano havia suscitado unanimidade de consensos, cantando a
entrada de Figaro, do Barbiere di Seviglia, de Rossini, Gibin
tinha se afirmado com a ária verdiana do Ballo
in Maschera”, “Eri tu...”.
Eis o que conseguimos saber sobre a reunião final dos membros
do júri naquela noite memorável e que iria dar as palmas da vitória a um
barítono para consagrá-lo mais tarde como tenor de fama internacional, depois
de uma via crucis tremenda.
Hugo Ross, ex-abrupto, se declarou favorável ao barítono
mexicano; o maestro Salvatore Ruberti, ao contrário, ponderou que, em vista da
perfeita execução do trecho cantado por Gibin, não se devia por em dúvida que
este jovem paulista possuía qualidades vocais muito superiores do que as do seu
adversário e que os outros componentes do júri verificariam isto se observassem
os detalhes da execução e examinassem minuciosamente os “pro” e os “contra” dos
dois concorrentes.
Foi naquela divergência de opiniões que o maestro Ruberti fez
notar aos seus colegas que, em sua opinião, a voz de Gibin não era
perfeitamente uma voz de barítono e que dela podia, em um futuro próximo, se
bem dirigida, surgir talvez em sua plenitude um tenor de grande eficiência
sonora.
Maestro Salvatore Ruberti em 1964 |
“Mas –disse um dos
membros da comissão julgadora- devemos
então aprovar um barítono na expectativa incerta de um futuro tenor, quando
temos já um barítono com todas as qualidades deste registro vocal?”
A resposta do maestro Ruberti foi cortante.
“A um barítono que
cantou a cavatina de Figaro com voz ondulante, ritmo idem e com agudos poucos convincentes
prefiro sempre um cantor que sabe “frasear”, que possui voz plena e registro
agudo seguríssimo. Enviemos Gibin à Escola do Scalla, deixemo-lo estudar
seriamente e tentemos obter um tenor. A minha é uma esperança em marcha, a
vossa um curvar-se sobre a mediocridade que seguramente terá as asas cortadas
ao nascer.”
Foi então que o ilustre maestro Ross reafirmou a sua
confiança e, portanto, manteve o seu voto a favor do mexicano. Eleazar de
Carvalho tentou mediar o dissídio, mas encontrou tenaz resistência nos dois
antagonistas. E diante da vontade firme do maestro Ruberti em desejar fazer
imediatamente, na sala do Teatro Municipal, uma declaração pública das razões
técnicas e artísticas que o haviam induzido a dar o seu voto a Gibin, decidiu,
como Presidente do Juri, acompanhar o maestro Ruberti, consagrando vencedor o
cantor brasileiro.
O maestro Hugo Ross, irritadíssimo, abriu a porta e
retirou-se, sem dizer uma palavra. Reapareceu depois, ainda amuado, no
camarote, de onde o maestro Eleazar de Carvalho anunciou ao público a decisão
do Juri.
E foi assim que João Gibin iniciou o seu caminho para a
glória. Como dissemos, não foi fácil a sua jornada artística. Por um longo tempo
ele teve que cantar como barítono na Escola de canto do Scalla. Só depois é que
tomou o rumo certo, o único caminho que devia conduzí-lo ao triunfo,
mantendo-se tranquilo, seguro, confiante no registro de tenor, e de tenor
dramático! O que lhe permitiu debutar na Ópera do Estado de Viena, em 1958,
escolhido por Karajan para desempenhar o dificílimo papel do Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss.
Em 1959 cantou a Turandot, no
Scalla, com Birgit Nilsson. Em seguida foi uma ascenção contínua e gloriosa. O
Covent Garden, de Londres, convidou-o para cantar com a Sutherland a Lucia; no Maggio Musicale Fiorentino apareceu
em Luisa Muller, e nos maiores teatros
líricos do mundo interpretou sempre magistralmente, na opinião unânime do
público e da crítica, Boris Godunov,
Eugen Onegin, Kovantchina, Katarina Ismailova
(de Shostakovich), Aida, Forza Del Destino, Don Carlo, Simon Bocannegra,
Bataglia di Legnano, Fanciulla Del West (que gravou com a
Nilsson e a orquestra e o coro do Teatro Scalla), Bohème, Tosca, Il tabarro,
Carmem, Doctor Faust (de Busoni), Norma,
Andrea Chènier (que cantou com a Tebaldi
e Ettore Bastianini) etc.
Sempre sonhara cantar Il
Guarany, de Carlos Gomes. Este ano seu sonho se realizará de forma
esplêndida, pois cantará essa ópera em sua terra sob a direção do famoso
maestro Francesco Molinari-Pradelli e tendo a companhia de um elenco incomparável:
Gianna D’Angelo como Cecy; Piero Cappuccilli,
como o Gonzalez, e Nicola Zaccaria
como Don Antônio. Uma constelação de
artistas do Scalla de Milão que terá a sustentação do corpo coral do Teatro
Municipal, dirigido por Norberto Molla, também do Scalla, e da orquestra da casa,
saída de uma série de concertos sinfônicos triunfais, além de dois magos do
espetáculo: os cenógrafos Attilio Colonello e Carlo Maestrini. Outro elemento
de grande eficiência será a participação do Corpo de Baile do Municipal, sob a
direção de Vaclav Weltchec.
João Gibin será acolhido em sua terra como um triunfador
entre os triunfadores do mundo lírico atual. O principal responsável por sua
vinda ao Rio de Janeiro não é outro senão o visionário maestro Salvatore
Ruberti, atual diretor artístico do Teatro Municipal, o mesmo que em 1951 percebeu
um grande tenor na voz de um desconhecido paulistano que cantava como barítono.”
Junho/1964
Obs:
O texto acima foi lido em fins de junho de 1964 no programa "Música, sempre música", na antiga Rádio Mundial, do Rio de Janeiro. Ia ao ar semanalmente às terças-feiras, com trechos de óperas e concertos. O programa era produzido e apresentado pelo crítico Henrique Marques Porto (1898-1969).
O texto acima foi lido em fins de junho de 1964 no programa "Música, sempre música", na antiga Rádio Mundial, do Rio de Janeiro. Ia ao ar semanalmente às terças-feiras, com trechos de óperas e concertos. O programa era produzido e apresentado pelo crítico Henrique Marques Porto (1898-1969).
João Gibin... Tenho lembrança de tê-lo assitido no TM. Bons tempos em que a ópera por aqui acontecia e o que acontecia era registrado por críticos verdadeiramente apaixonados pelo gênero, como o Marques Porto. Mais que apaixonados, conhecedores de música, do canto lírico, bem informados sobre tendências, carreiras... Numa boa, assumo meu coração saudosista. Saudades da ópera encenada, das boas vozes que podíamos apreciar ao vivo...
ResponderExcluirE como era arguto o maestro Ruberti, ein. Mas ainda não consegui descobrir o nome do
Excluirbarítono mexicano que disputou a final com Gibin. O que terá acontecido com a carreira dele?