quinta-feira, 15 de março de 2012

A ascenção do tenor João Gibin e os bastidores de um concurso de canto


“A notícia da inclusão no elenco artístico da temporada lírica oficial do tenor paulista João Gibin nos faz recordar uma longínqua noite de 1951, quando no Teatro Municipal do Rio, depois de várias apresentações de jovens cantores concorrentes ao prêmio “Grande Caruso”, sagrou-se vencedor João Gibin, desconhecido barítono de São Paulo.

João Gibin
Não foi uma vitória unânime a de Gibin -dois votos favoráveis e um contra-, nem uma vitória fácil, pois vários fatores perturbaram aquele rumoroso concurso.
Deve-se notar que se apresentaram para o certame canoro quase todos os melhores valores da América Latina e que a seleção foi demorada, trabalhosa e frequentemente agitada. O grupo de finalistas era formado por ótimos concorrentes. A escolha, portanto, não era fácil, visto que em cada um era obrigatório reconhecer qualidades dignas de serem tomadas em consideração. O Juri era composto pelos maestros Eleazar de Carvalho, Salvatore Ruberti e o americano Hugo Ross.

A finalíssima se realizou perante um público compacto que apinhava toda a sala do Teatro Municipal, e que acompanhava com grande interesse o desenvolvimento do concurso.


Súbito se teve a sensação de que um único duelo artístico teria que ser resolvido pelo Juri, e os participantes eram: um barítono mexicano e o brasileiro João Gibin. Evidentemente os torcedores de Gibin eram em maior número. Em compensação aqueles do barítono mexicano eram mais aguerridos e tinham preparado com rara habilidade as forças que poderiam levar o seu preferido à vitória. 

A comissão julgadora se encontrava em sérias dificuldades, e havia um detalhe perigoso: como decidir, se, aparentemente, o mexicano e o brasileiro se equivaliam? Disse aparentemente. Enquanto o mexicano havia suscitado unanimidade de consensos, cantando a entrada de Figaro, do Barbiere di Seviglia, de Rossini, Gibin tinha se afirmado com a ária verdiana do Ballo in Maschera”, “Eri tu...”.

Eis o que conseguimos saber sobre a reunião final dos membros do júri naquela noite memorável e que iria dar as palmas da vitória a um barítono para consagrá-lo mais tarde como tenor de fama internacional, depois de uma via crucis tremenda.

Hugo Ross, ex-abrupto, se declarou favorável ao barítono mexicano; o maestro Salvatore Ruberti, ao contrário, ponderou que, em vista da perfeita execução do trecho cantado por Gibin, não se devia por em dúvida que este jovem paulista possuía qualidades vocais muito superiores do que as do seu adversário e que os outros componentes do júri verificariam isto se observassem os detalhes da execução e examinassem minuciosamente os “pro” e os “contra” dos dois concorrentes.

Foi naquela divergência de opiniões que o maestro Ruberti fez notar aos seus colegas que, em sua opinião, a voz de Gibin não era perfeitamente uma voz de barítono e que dela podia, em um futuro próximo, se bem dirigida, surgir talvez em sua plenitude um tenor de grande eficiência sonora.

Maestro Salvatore Ruberti em 1964

Mas –disse um dos membros da comissão julgadora- devemos então aprovar um barítono na expectativa incerta de um futuro tenor, quando temos já um barítono com todas as qualidades deste registro vocal?”
A resposta do maestro Ruberti foi cortante.

“A um barítono que cantou a cavatina de Figaro com voz ondulante, ritmo idem e com agudos poucos convincentes prefiro sempre um cantor que sabe “frasear”, que possui voz plena e registro agudo seguríssimo. Enviemos Gibin à Escola do Scalla, deixemo-lo estudar seriamente e tentemos obter um tenor. A minha é uma esperança em marcha, a vossa um curvar-se sobre a mediocridade que seguramente terá as asas cortadas ao nascer.”



Foi então que o ilustre maestro Ross reafirmou a sua confiança e, portanto, manteve o seu voto a favor do mexicano. Eleazar de Carvalho tentou mediar o dissídio, mas encontrou tenaz resistência nos dois antagonistas. E diante da vontade firme do maestro Ruberti em desejar fazer imediatamente, na sala do Teatro Municipal, uma declaração pública das razões técnicas e artísticas que o haviam induzido a dar o seu voto a Gibin, decidiu, como Presidente do Juri, acompanhar o maestro Ruberti, consagrando vencedor o cantor brasileiro.

O maestro Hugo Ross, irritadíssimo, abriu a porta e retirou-se, sem dizer uma palavra. Reapareceu depois, ainda amuado, no camarote, de onde o maestro Eleazar de Carvalho anunciou ao público a decisão do Juri.

E foi assim que João Gibin iniciou o seu caminho para a glória. Como dissemos, não foi fácil a sua jornada artística. Por um longo tempo ele teve que cantar como barítono na Escola de canto do Scalla. Só depois é que tomou o rumo certo, o único caminho que devia conduzí-lo ao triunfo, mantendo-se tranquilo, seguro, confiante no registro de tenor, e de tenor dramático! O que lhe permitiu debutar na Ópera do Estado de Viena, em 1958, escolhido por Karajan para desempenhar o dificílimo papel do Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. Em 1959 cantou a Turandot, no Scalla, com Birgit Nilsson. Em seguida foi uma ascenção contínua e gloriosa. O Covent Garden, de Londres, convidou-o para cantar com a Sutherland a Lucia; no Maggio Musicale Fiorentino apareceu em Luisa Muller, e nos maiores teatros líricos do mundo interpretou sempre magistralmente, na opinião unânime do público e da crítica, Boris Godunov, Eugen Onegin, Kovantchina, Katarina Ismailova (de Shostakovich), Aida, Forza Del Destino, Don Carlo, Simon Bocannegra, Bataglia di Legnano, Fanciulla Del West (que gravou com a Nilsson e a orquestra e o coro do Teatro Scalla), Bohème, Tosca, Il tabarro, Carmem, Doctor Faust (de Busoni), Norma, Andrea Chènier (que cantou com a Tebaldi e Ettore Bastianini) etc.

Sempre sonhara cantar Il Guarany, de Carlos Gomes. Este ano seu sonho se realizará de forma esplêndida, pois cantará essa ópera em sua terra sob a direção do famoso maestro Francesco Molinari-Pradelli e tendo a companhia de um elenco incomparável: Gianna D’Angelo como Cecy; Piero Cappuccilli, como o Gonzalez, e Nicola Zaccaria como Don Antônio. Uma constelação de artistas do Scalla de Milão que terá a sustentação do corpo coral do Teatro Municipal, dirigido por Norberto Molla, também do Scalla, e da orquestra da casa, saída de uma série de concertos sinfônicos triunfais, além de dois magos do espetáculo: os cenógrafos Attilio Colonello e Carlo Maestrini. Outro elemento de grande eficiência será a participação do Corpo de Baile do Municipal, sob a direção de Vaclav Weltchec.

João Gibin será acolhido em sua terra como um triunfador entre os triunfadores do mundo lírico atual. O principal responsável por sua vinda ao Rio de Janeiro não é outro senão o visionário maestro Salvatore Ruberti, atual diretor artístico do Teatro Municipal, o mesmo que em 1951 percebeu um grande tenor na voz de um desconhecido paulistano que cantava como barítono.”



Henrique Marques Porto
Junho/1964  
Obs: 
O texto acima foi lido em fins de junho de 1964 no programa "Música, sempre música", na antiga Rádio Mundial, do Rio de Janeiro. Ia ao ar semanalmente às terças-feiras, com trechos de óperas e concertos. O programa era produzido e apresentado pelo crítico Henrique Marques Porto (1898-1969).

João Gibin - La Fanciulla del West

2 comentários:

  1. João Gibin... Tenho lembrança de tê-lo assitido no TM. Bons tempos em que a ópera por aqui acontecia e o que acontecia era registrado por críticos verdadeiramente apaixonados pelo gênero, como o Marques Porto. Mais que apaixonados, conhecedores de música, do canto lírico, bem informados sobre tendências, carreiras... Numa boa, assumo meu coração saudosista. Saudades da ópera encenada, das boas vozes que podíamos apreciar ao vivo...

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    1. E como era arguto o maestro Ruberti, ein. Mas ainda não consegui descobrir o nome do
      barítono mexicano que disputou a final com Gibin. O que terá acontecido com a carreira dele?

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