“Vozes Paralelas”
um precioso estudo sobre a voz
cantada
por Comba Marques Porto
Toda a memória dessa original
convivência familiar moldada pelo vínculo de amor à música pode estar
simbolizada num pequeno livro escrito pelo tenor Lauri-Volpi: “Vozes Paralelas”,
editado pela Ricordi S.A., São Paulo, em 1956. Na “Advertência”, fica
explicitado o objetivo do autor:
“Se há
originalidade neste livro, consiste ela na comparação, de duas em duas, das
vozes mais notáveis, com as suas virtudes e seus defeitos, e também das menos
conhecidas, pelo que teriam podido ser e os motivos que não o foram. Diz-se que
confrontos são odiosos. Sim, mas só quando apenas se propõem a diminuir um para
exaltar outro. (...) Aqui, as comparações por antinomia e analogia, afinidade
ou diferença, têm o objetivo de traçar, por meio de imagens e de exemplos,
verdadeira e precisa história do canto, e de oferecer, através da pesquisa
tanto quanto possível cuidadosa e objetiva, a síntese da idéia universal de
‘voz cantada’, refletida em cada voz particular, contrastante ou harmonizada no
que se refere àquela idéia única.”
Nesta introdução, Lauri-Volpi refere-se
às “razões de elevação e decadência da
voz humana”, associando este percurso à perspectiva da morte do melodrama,
como a antevê retratada na trajetória do tempo: “em 600, das atrevidas imagens do barroco e, em 700, da fantasia
voluptuosa e dos idílicos langores da Arcádia, para respirar, nos princípios
dos 800, a aura neo-clássica e, pouco adiante, queimar-se aos ardores do
romantismo; por fim, precipitar-se na trivialidade do verismo e na loucura
dodecafônica da harmonia dissonante”.
O autor encontrou na obra de Plutarco - “Vidas Paralelas” -, a inspiração para escrever sobre as vozes cantadas, formando o dualismo comparativo. Como ele afirma, seu trabalho visa atender à demanda por uma “vista total do panorama lírico e da história de canto e das vozes individuais. (...) Pudesse esta fadiga contribuir para erguer a vontade dos novos cantores e animá-los com o exemplo de vozes magníficas! (...) Aos jovens cabe fazer ressurgir, com vozes não viciadas nem corruptas, as glórias de outros tempos.
Com
tonalidades ufanistas, Lauri-Volpi exorta a ópera italiana e suas “vozes preciosas, com as quais penetrou em
todas as côrtes européias, de Paris a Viena, a Moscou; e impôs a linguagem
musical e a língua italiana aos maiores compositores para os seus libretos de
ópera. (...). O povo não sabe que a Itália, com a voz, dominou e ainda poderia
dominar o mundo.” Ainda bem que este vaticínio não se concretizou!
Lauri-Volpi
analisa as vozes por naipes, fixando os paralelos, categorizando-os pelos registros
nas respectivas faixas, por exemplo, sopranos líricos, sopranos dramáticos,
meio-sopranos. Cria também categorias, exemplo, “cantores-atores” no exame da
“corda de barítono”, como chama. Elege também a categoria “vozes isoladas”, na
qual inclui Victoria de Los Angeles, Maria Callas, Marian Anderson, Antonio
Cotogni e Giacomo Lauri-Volpi, a sua própria voz. De Callas diz:
“... voz ‘múltipla’, método
único”. (...) “Na cena lírica, não houve não há outra voz com a qual seja
possível o confronto.” (...) “Em que consiste o fenômeno que, primeiramente,
alarma e indispõe o público? Naquela primeira oitava e naquelas passagens
tubadas, naquela discrepância dos registros, que dão ideia de três vozes
diversas sobrepostas. Após o primeiro ato, a voz se amacia, rompe nodosidades,
atenua as angulosidades para tornar-se líquida, corrente e, às vezes,
espraiante. Então, o público se aplaca, põe-se atento e acaba por deixar-se
prender, envolver na trama de fios luminosos que a voz, aranha paciente e tenaz
e igualmente esperta e maliciosa, teceu na atmosfera.”
Sobre sua própria voz, arremata o capítulo
das vozes ímpares:
“Como pôde este artista manter
tão ‘segura, confiante e jubilosa’ a sua voz, após vários decênios de intensa
atividade? Principalmente, porque soube subtrair-se ao contágio das imitações.
Por que deveria imitar Caruso, afeito aos famosos ‘portamentos’ e às inflexões
nasais? Dar liberdade à voz, não prendê-la na caixa torácica, subtraí-la às
involuções da respiração artificialmente sacrificada, significa liberar coração
e cérebro. Daí o brilho, a alegria comunicativa da singularíssima voz,
reconhecível entre mil.”
Ao traçar os paralelos, o autor enriquece sua
obra com informações não só sobre as trajetórias e carreiras das vozes
enfocadas, como também sobre as circunstâncias artísticas em que surgidas. A par
dos paralelos, Lauri-Volpi nos brinda ainda com uma exposição sobre os “métodos
de canto” em que aborda os diversos métodos de fonação. Igualmente inclui um capítulo
no qual apresenta uma “breve história do canto”, tratando das diferentes
escolas e traçando um panorama da evolução do ensino de canto.
“Vozes
Paralelas” é obra que não envelhece, na medida em que Lauri-Volpi sublima a
contemporaneidade das vozes enfocadas, criando instrumentos de análise
perfeitamente aplicáveis às vozes que hoje encantam o mundo, confirmando o
frescor da ópera que, como gênero, não feneceu; ao contrário, transcende
limites históricos e temporais e conquista um público cada vez mais diverso e
amplo. Basta invocar as alegrias que nos trazem as jovens vozes que brilham nas
atuais temporadas do MET e do Scalla de Milão. Neste aspecto, por sorte, a
profecia de Lauri-Volpi se concretiza:
Cumpre aos jovens erguer,
novamente, a sorte, em tempos calamitosos, desta terra que deseja ar e luz, da
qual saiu o sentimento do belo e do grande e em cuja bendita natureza se
formaram e ornaram, para a alegria do espírito (...). Que os últimos heróis da
poesia e do canto sejam os primeiros da nova série!”
Há
uma nova geração de jovens cantores de ópera a desafiar o trabalho de
comparação, não só entre essas vozes, como entre elas e aquelas que brilharam a
partir da segunda metade do século passado. Como é instigante o paralelo entre
Jonas Kaufmann e Franco Corelli ou entre o mesmo Kaufmann e John Vickers? Pena
é não contarmos mais com a arte de um Lauri-Volpi, mais que um estudioso
capacitado à reflexão comparativa do canto lírico, ele mesmo, uma grandiosa voz
de tenor, por sorte, captada em preciosos registros fonográficos - fonte em que
jovens cantores podem se inspirar, jamais para imitar, porém, para aprender.
Giacomo Lauri-Volpi - Gli Ugonotti - Arena de Verona 1933
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