quarta-feira, 21 de dezembro de 2011


“Vozes Paralelas”
 

um precioso estudo sobre a voz cantada

por Comba Marques Porto


    Para os filhos do jornalista e crítico musical Henrique Marques Porto (1898-1969) o nome Giacomo Lauri-Volpi é mais que uma informação sobre a história da ópera. É referência de um tempo de efervescência do gênero no Rio de Janeiro, algo que, pelo entusiasmo de nosso pai, transitava facilmente do palco do Municipal para a sala de nossa casa, com a mesma intensidade e brilho, não só do ponto de vista estritamente musical, como também pelas histórias que ele contava, pelos comentários tecidos sobre os acontecimentos dos bastidores das temporadas líricas nacionais e internacionais que ele acompanhava de sua cadeira cativa. 

        Toda a memória dessa original convivência familiar moldada pelo vínculo de amor à música pode estar simbolizada num pequeno livro escrito pelo tenor Lauri-Volpi: “Vozes Paralelas”, editado pela Ricordi S.A., São Paulo, em 1956. Na “Advertência”, fica explicitado o objetivo do autor:

 “Se há originalidade neste livro, consiste ela na comparação, de duas em duas, das vozes mais notáveis, com as suas virtudes e seus defeitos, e também das menos conhecidas, pelo que teriam podido ser e os motivos que não o foram. Diz-se que confrontos são odiosos. Sim, mas só quando apenas se propõem a diminuir um para exaltar outro. (...) Aqui, as comparações por antinomia e analogia, afinidade ou diferença, têm o objetivo de traçar, por meio de imagens e de exemplos, verdadeira e precisa história do canto, e de oferecer, através da pesquisa tanto quanto possível cuidadosa e objetiva, a síntese da idéia universal de ‘voz cantada’, refletida em cada voz particular, contrastante ou harmonizada no que se refere àquela idéia única.” 

        Nesta introdução, Lauri-Volpi refere-se às “razões de elevação e decadência da voz humana”, associando este percurso à perspectiva da morte do melodrama, como a antevê retratada na trajetória do tempo: “em 600, das atrevidas imagens do barroco e, em 700, da fantasia voluptuosa e dos idílicos langores da Arcádia, para respirar, nos princípios dos 800, a aura neo-clássica e, pouco adiante, queimar-se aos ardores do romantismo; por fim, precipitar-se na trivialidade do verismo e na loucura dodecafônica da harmonia dissonante”.

   
    O autor encontrou na obra de Plutarco - “Vidas Paralelas” -, a inspiração para escrever sobre as vozes cantadas, formando o dualismo comparativo. Como ele afirma, seu trabalho visa atender à demanda por uma “vista total do panorama lírico e da história de canto e das vozes individuais. (...) Pudesse esta fadiga contribuir para erguer a vontade dos novos cantores e animá-los com o exemplo de vozes magníficas! (...) Aos jovens cabe fazer ressurgir, com vozes não viciadas nem corruptas, as glórias de outros tempos. 

Com tonalidades ufanistas, Lauri-Volpi exorta a ópera italiana e suas “vozes preciosas, com as quais penetrou em todas as côrtes européias, de Paris a Viena, a Moscou; e impôs a linguagem musical e a língua italiana aos maiores compositores para os seus libretos de ópera. (...). O povo não sabe que a Itália, com a voz, dominou e ainda poderia dominar o mundo.” Ainda bem que este vaticínio não se concretizou!

Lauri-Volpi analisa as vozes por naipes, fixando os paralelos, categorizando-os pelos registros nas respectivas faixas, por exemplo, sopranos líricos, sopranos dramáticos, meio-sopranos. Cria também categorias, exemplo, “cantores-atores” no exame da “corda de barítono”, como chama. Elege também a categoria “vozes isoladas”, na qual inclui Victoria de Los Angeles, Maria Callas, Marian Anderson, Antonio Cotogni e Giacomo Lauri-Volpi, a sua própria voz. De Callas diz:

“... voz ‘múltipla’, método único”. (...) “Na cena lírica, não houve não há outra voz com a qual seja possível o confronto.” (...) “Em que consiste o fenômeno que, primeiramente, alarma e indispõe o público? Naquela primeira oitava e naquelas passagens tubadas, naquela discrepância dos registros, que dão ideia de três vozes diversas sobrepostas. Após o primeiro ato, a voz se amacia, rompe nodosidades, atenua as angulosidades para tornar-se líquida, corrente e, às vezes, espraiante. Então, o público se aplaca, põe-se atento e acaba por deixar-se prender, envolver na trama de fios luminosos que a voz, aranha paciente e tenaz e igualmente esperta e maliciosa, teceu na atmosfera.”

  Sobre sua própria voz, arremata o capítulo das vozes ímpares:
“Como pôde este artista manter tão ‘segura, confiante e jubilosa’ a sua voz, após vários decênios de intensa atividade? Principalmente, porque soube subtrair-se ao contágio das imitações. Por que deveria imitar Caruso, afeito aos famosos ‘portamentos’ e às inflexões nasais? Dar liberdade à voz, não prendê-la na caixa torácica, subtraí-la às involuções da respiração artificialmente sacrificada, significa liberar coração e cérebro. Daí o brilho, a alegria comunicativa da singularíssima voz, reconhecível entre mil.” 

 Ao traçar os paralelos, o autor enriquece sua obra com informações não só sobre as trajetórias e carreiras das vozes enfocadas, como também sobre as circunstâncias artísticas em que surgidas. A par dos paralelos, Lauri-Volpi nos brinda ainda com uma exposição sobre os “métodos de canto” em que aborda os diversos métodos de fonação. Igualmente inclui um capítulo no qual apresenta uma “breve história do canto”, tratando das diferentes escolas e traçando um panorama da evolução do ensino de canto.    
   
“Vozes Paralelas” é obra que não envelhece, na medida em que Lauri-Volpi sublima a contemporaneidade das vozes enfocadas, criando instrumentos de análise perfeitamente aplicáveis às vozes que hoje encantam o mundo, confirmando o frescor da ópera que, como gênero, não feneceu; ao contrário, transcende limites históricos e temporais e conquista um público cada vez mais diverso e amplo. Basta invocar as alegrias que nos trazem as jovens vozes que brilham nas atuais temporadas do MET e do Scalla de Milão. Neste aspecto, por sorte, a profecia de Lauri-Volpi se concretiza:

Cumpre aos jovens erguer, novamente, a sorte, em tempos calamitosos, desta terra que deseja ar e luz, da qual saiu o sentimento do belo e do grande e em cuja bendita natureza se formaram e ornaram, para a alegria do espírito (...). Que os últimos heróis da poesia e do canto sejam os primeiros da nova série!” 

Há uma nova geração de jovens cantores de ópera a desafiar o trabalho de comparação, não só entre essas vozes, como entre elas e aquelas que brilharam a partir da segunda metade do século passado. Como é instigante o paralelo entre Jonas Kaufmann e Franco Corelli ou entre o mesmo Kaufmann e John Vickers? Pena é não contarmos mais com a arte de um Lauri-Volpi, mais que um estudioso capacitado à reflexão comparativa do canto lírico, ele mesmo, uma grandiosa voz de tenor, por sorte, captada em preciosos registros fonográficos - fonte em que jovens cantores podem se inspirar, jamais para imitar, porém, para aprender. 

Giacomo Lauri-Volpi - Gli Ugonotti - Arena de Verona 1933 

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