A
estréia de Fausto no Metropolitan
A música
de Gounod e a performance dos solistas salvaram o espetáculo
Jonas Jauffman e Marina Poplavskaya |
Musicalmente a estréia
do Fausto no Metropolitan, no dia 10 de
dezembro, foi um grande espetáculo. A única restrição que faço é quanto à uma
certa correria dos andamentos em algumas passagens. O maestro Yannick
Nézet-Séguin parece ser muito bom. Ainda é jovem e o passar dos anos talvez
reduza sua pressa e o faça valorizar mais a beleza e as nuances dessa partitura
repleta de melodias inspiradíssimas.
Definitivamente alguns
encenadores perderam a noção! É o caso do diretor McAnuff, responsável por essa
montagem, que não é produção original do Met. O parto do bebê e seu imediato
afogamento na pia batismal por Marguerite
no final da “Cena da Igreja” foi uma
sequência extremamente infeliz, grosseira e de um mau gosto atroz!
E as dancinhas? Putz! Coreografar ária de ópera é rematada tolice. Por várias razões. A primeira delas é que a linguagem do melodrama e a estrutura da ópera (clássica, oitocentesca ou romântica, incluindo o verismo) dispensa a coreografia no momento da ária ou do dueto. Nesses casos ela entra como elemento estranho, que interfere no canto e distrai a atenção do público para o solo do cantor. Dá para imaginar os druidas da Norma bailando ao som de “Casta Diva”? Não dá. Pois praticamente todo o primeiro ato do Fausto foi coreografado.
A ária de Valentin, por exemplo, é uma reflexão
solitária do personagem. O melhor é que ele esteja sozinho em cena. "Avant
de quitter ces lieux" é quase uma "preghiera". O bom
e ingênuo soldado faz uma espécie de oração pelo bem e pede proteção para sua
irmã Marguerite, que ficará sozinha
enquanto ele vai para a guerra. Gounod criou assim um contraste que tornará mais
dramática a cena da morte de Valentin
por artes do demônio e não pela destreza de Fausto
com a espada. Mas no trecho “...délivré
d’une triste pensée/J’irai checher la gloire/La gloire au sein des ennemis...”
o diretor McAnuff decidiu perturbar a concentração religiosa do personagem, que tentava falar com Deus, e a paciência
do público, que preferia ouvir o cantor, e colocou atrás deste uma tropa de figurantes
a marcar passo prontos para marchar. Só faltou baterem continência.
A coisa se repetiu na serenata do
Mefistofele, "Vous
qui faites l'endormie".
Cheguei a temer que o excelente Rene Pape saísse pelo palco sapateando como um
Fred Astaire e cantando "Begin the beguine" ou "New
York, New York" como um Sinatra!
Ópera não é musical da
Broadway!
Mas, dá para entender. McAnuff dirigiu filmes e musicais, não tem muita experiência em ópera. Entre os seus sucessos nas telas está "As aventuras de Alceu e Dentinho", um título que não seria incluído numa lista, digamos, dos melhores 700 filmes das últimas décadas.
Reuben Berman, crítico
do “Columbia Daily Spectator” parece
ter acertado quando escreveu no dia 8 de dezembro:
“Se
o diretor do Metropolitan Opera, Peter Gelb, teve que fazer um acordo com o
diabo para contratar Des McAnuff — diretor de "Jersey Boys" — para
produzir "Faust", o diabo certamente deve ter levado a melhor no
final do acordo.”
Berman deve saber do
que está falando. Mais adiante comentou: “Felizmente,
no entanto, a confusão desta produção não afeta as habilidades dos cantores ou
a orquestra.”
Realmente não afetou,
mas nessa produção do Fausto há uma ausência
para mim inexplicável. A mesma montagem que adotou “dancinhas” de music hall para árias excluiu o balé da
“Noite de Valpurgis”! O capeta anuncia ao Fausto:
"Voici la nuit de Valpurgis!", frase repetida pelo coro de
almas penadas. Mas o que se viu em seguida foi um disgusting dinner com meia dúzia de zumbis putrefatos,
caracterizados como os figurantes de “A
Noite dos mortos vivos”, aquele filme de terror B que as TVs gostam de
exibir de madrugada para assustar ou provocar nojo nos espectadores notívagos.
A ópera francesa,
diferentemente da italiana, tinha que ter um grande balé. Era uma exigência que
contemplava o gosto do público parisiense da época em que o Fausto foi composto. O balé do Fausto é um clássico da dança e uma peça
de concerto conhecida, assim como a “Bacanal”
de Sansão e Dalila, de
Saint-Saens, ou a “Dança das Horas”,
de La Gioconda, de Ponchielli. Imperdoável
que o regente Yannick Nézet-Séguin tenha cortado o balé dessa montagem. O balé
–muito bem composto por Gounod- funciona inclusive para dar mais equilíbrio à
estrutura da ópera. Serve também para descansar o público e prepará-lo para as
cenas seguintes, todas muito dramáticas ou comoventes, como o final da ópera.
Um regente que abre mão dessa partitura deve ficar sob suspeita, mesmo sendo
jovem e promissor.
A questão é: até quando
os cantores e, principalmente, os maestros vão tolerar as idéias arbitrárias e
o domínio autoritário dos diretores de cena? Fico imaginando como reagiriam
Toscanini, Serafim, Karajan ou Bernstein diante da proliferação de cenas
bizarras em espetáculos de ópera. Acredito que o regente é o principal
responsável pela montagem de uma ópera. Ele faz uma leitura particular de cada
partitura e orienta os solistas de acordo com essa leitura. O diretor de cena
deve trabalhar com o regente e não contra ele, ou apesar dele. Afinal, trata-se
principalmente de música, não de teatro de prosa. O chamado “teatro de autor” deu
certo em muitos casos no teatro de prosa. De uns tempos para cá parece que
estão querendo criar a “ópera de autor”. Quer dizer, o encenador se apropria de
música e texto alheios e faz o que lhe dá na telha.
A música de Gounod para
o Fausto está impregnada de
religiosidade do início ao fim. Ela está presente em todos os personagens
–inclusive, por oposição, no Mefistofele.
O diretor McAnuff passou longe desse conteúdo e não valorizou o mais
importante, que é a beleza da partitura do Fausto.
Por outro lado, suas intenções ao ambientar a ópera na época da I Guerra
Mundial não ficaram claras. Mais obscura ainda foi a idéia de fazer de Fausto um “cientista que trabalharia
para criar a bomba atômica”. Mefistofele bem
que poderia ter saído dos versos de Goethe e sussurrado no ouvido do diretor: “-E que diabos eu tenho a ver com isso?”
McAnuff prendeu-se a cenários e a símbolos que
acabaram desconectados e não funcionaram -como aquela bomba pendurada sobre o
palco. Em resumo: uma montagem confusa, sem pé nem cabeça. Ao final do espetáculo
foi brindado com vaias por parte do público.
Rene Pape: Mefistofele |
No entanto, mais uma
vez a música conseguiu superar as bobagens cênicas que, por serem bobagens,
nada acrescentaram. A música de Gounod e a performance dos solistas salvaram o
espetáculo.
Jonas
Kauffman, que acaba de ser premiado como o “vocalist of the
year” nos Estados Unidos, cantou lindamente o “Faust”. Forçou um pouco o agudo no “Salut demeure chaste e pure”, mas conseguiu segurar bem a nota. Rene Pape é, talvez, o melhor Mefistofele da atualidade. Além de
grande cantor é também muito bom ator. Marina
Poplavskaya, que substituiu Angela Georghiu no elenco, surpreendeu. Cresceu
muito no decorrer do espetáculo e fez as cenas finais com doses certas de
emoção e pungência. Muito expressivo e seguro o Valentin do barítono Russell
Braun, apesar do timbre irregular da voz.
Jonas Kauffman - Faust
"Salut demeure chaste et pure"
Parabéns, Henrique. Concordo com tudo o que está dito. Sua excelente crítica deveria ser publicada num jornal de grande porte. Abraços.
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