segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


A estréia de Fausto no Metropolitan


A música de Gounod e a performance dos solistas salvaram o espetáculo

Jonas Jauffman e Marina Poplavskaya

Musicalmente a estréia do Fausto no Metropolitan, no dia 10 de dezembro, foi um grande espetáculo. A única restrição que faço é quanto à uma certa correria dos andamentos em algumas passagens. O maestro Yannick Nézet-Séguin parece ser muito bom. Ainda é jovem e o passar dos anos talvez reduza sua pressa e o faça valorizar mais a beleza e as nuances dessa partitura repleta de melodias inspiradíssimas. 


Definitivamente alguns encenadores perderam a noção! É o caso do diretor McAnuff, responsável por essa montagem, que não é produção original do Met. O parto do bebê e seu imediato afogamento na pia batismal por Marguerite no final da “Cena da Igreja” foi uma sequência extremamente infeliz, grosseira e de um mau gosto atroz! 

E as dancinhas? Putz! Coreografar ária de ópera é rematada tolice. Por várias razões. A primeira delas é que a linguagem do melodrama e a estrutura da ópera (clássica, oitocentesca ou romântica, incluindo o verismo) dispensa a coreografia no momento da ária ou do dueto. Nesses casos ela entra como elemento estranho, que interfere no canto e distrai a atenção do público para o solo do cantor. Dá para imaginar os druidas da Norma bailando ao som de “Casta Diva”? Não dá. Pois praticamente todo o primeiro ato do Fausto foi coreografado.  


A ária de Valentin, por exemplo, é uma reflexão solitária do personagem. O melhor é que ele esteja sozinho em cena. "Avant de quitter ces lieux" é quase uma "preghiera". O bom e ingênuo soldado faz uma espécie de oração pelo bem e pede proteção para sua irmã Marguerite, que ficará sozinha enquanto ele vai para a guerra. Gounod criou assim um contraste que tornará mais dramática a cena da morte de Valentin por artes do demônio e não pela destreza de Fausto com a espada. Mas no trecho “...délivré d’une triste pensée/J’irai checher la gloire/La gloire au sein des ennemis...” o diretor McAnuff decidiu perturbar a concentração religiosa do personagem, que tentava falar com Deus, e a paciência do público, que preferia ouvir o cantor, e colocou atrás deste uma tropa de figurantes a marcar passo prontos para marchar. Só faltou baterem continência.  

A coisa se repetiu na serenata do Mefistofele, "Vous qui faites l'endormie". Cheguei a temer que o excelente Rene Pape saísse pelo palco sapateando como um Fred Astaire e cantando "Begin the beguine" ou "New York, New York" como um Sinatra! 


Ópera não é musical da Broadway!

Mas, dá para entender. McAnuff dirigiu filmes e musicais, não tem muita experiência em ópera. Entre os seus sucessos nas telas está "As aventuras de Alceu e Dentinho", um título que não seria incluído numa lista, digamos, dos melhores 700 filmes das últimas décadas.
Reuben Berman, crítico do “Columbia Daily Spectator” parece ter acertado quando escreveu no dia 8 de dezembro:


“Se o diretor do Metropolitan Opera, Peter Gelb, teve que fazer um acordo com o diabo para contratar Des McAnuff — diretor de "Jersey Boys" — para produzir "Faust", o diabo certamente deve ter levado a melhor no final do acordo.”
 

Berman deve saber do que está falando. Mais adiante comentou: “Felizmente, no entanto, a confusão desta produção não afeta as habilidades dos cantores ou a orquestra.”


Realmente não afetou, mas nessa produção do Fausto há uma ausência para mim inexplicável. A mesma montagem que adotou “dancinhas” de music hall para árias excluiu o balé da “Noite de Valpurgis”! O capeta anuncia ao Fausto: "Voici la nuit de Valpurgis!", frase repetida pelo coro de almas penadas. Mas o que se viu em seguida foi um disgusting dinner com meia dúzia de zumbis putrefatos, caracterizados como os figurantes de “A Noite dos mortos vivos”, aquele filme de terror B que as TVs gostam de exibir de madrugada para assustar ou provocar nojo nos espectadores notívagos.


A ópera francesa, diferentemente da italiana, tinha que ter um grande balé. Era uma exigência que contemplava o gosto do público parisiense da época em que o Fausto foi composto. O balé do Fausto é um clássico da dança e uma peça de concerto conhecida, assim como a “Bacanal” de Sansão e Dalila, de Saint-Saens, ou a “Dança das Horas”, de La Gioconda, de Ponchielli. Imperdoável que o regente Yannick Nézet-Séguin tenha cortado o balé dessa montagem. O balé –muito bem composto por Gounod- funciona inclusive para dar mais equilíbrio à estrutura da ópera. Serve também para descansar o público e prepará-lo para as cenas seguintes, todas muito dramáticas ou comoventes, como o final da ópera. Um regente que abre mão dessa partitura deve ficar sob suspeita, mesmo sendo jovem e promissor.


A questão é: até quando os cantores e, principalmente, os maestros vão tolerar as idéias arbitrárias e o domínio autoritário dos diretores de cena? Fico imaginando como reagiriam Toscanini, Serafim, Karajan ou Bernstein diante da proliferação de cenas bizarras em espetáculos de ópera. Acredito que o regente é o principal responsável pela montagem de uma ópera. Ele faz uma leitura particular de cada partitura e orienta os solistas de acordo com essa leitura. O diretor de cena deve trabalhar com o regente e não contra ele, ou apesar dele. Afinal, trata-se principalmente de música, não de teatro de prosa. O chamado “teatro de autor” deu certo em muitos casos no teatro de prosa. De uns tempos para cá parece que estão querendo criar a “ópera de autor”. Quer dizer, o encenador se apropria de música e texto alheios e faz o que lhe dá na telha.


A música de Gounod para o Fausto está impregnada de religiosidade do início ao fim. Ela está presente em todos os personagens –inclusive, por oposição, no Mefistofele. O diretor McAnuff passou longe desse conteúdo e não valorizou o mais importante, que é a beleza da partitura do Fausto. Por outro lado, suas intenções ao ambientar a ópera na época da I Guerra Mundial não ficaram claras. Mais obscura ainda foi a idéia de fazer de Fausto um “cientista que trabalharia para criar a bomba atômica”. Mefistofele bem que poderia ter saído dos versos de Goethe e sussurrado no ouvido do diretor: “-E que diabos eu tenho a ver com isso?”


 McAnuff prendeu-se a cenários e a símbolos que acabaram desconectados e não funcionaram -como aquela bomba pendurada sobre o palco. Em resumo: uma montagem confusa, sem pé nem cabeça. Ao final do espetáculo foi brindado com vaias por parte do público. 


Rene Pape: Mefistofele

No entanto, mais uma vez a música conseguiu superar as bobagens cênicas que, por serem bobagens, nada acrescentaram. A música de Gounod e a performance dos solistas salvaram o espetáculo.


Jonas Kauffman, que acaba de ser premiado como o “vocalist of the year” nos Estados Unidos, cantou lindamente o “Faust”. Forçou um pouco o agudo no “Salut demeure chaste e pure”, mas conseguiu segurar bem a nota. Rene Pape é, talvez, o melhor Mefistofele da atualidade. Além de grande cantor é também muito bom ator. Marina Poplavskaya, que substituiu Angela Georghiu no elenco, surpreendeu. Cresceu muito no decorrer do espetáculo e fez as cenas finais com doses certas de emoção e pungência. Muito expressivo e seguro o Valentin do barítono Russell Braun, apesar do timbre irregular da voz.  

Jonas Kauffman - Faust  
"Salut demeure chaste et pure"

Um comentário:

  1. Parabéns, Henrique. Concordo com tudo o que está dito. Sua excelente crítica deveria ser publicada num jornal de grande porte. Abraços.

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