terça-feira, 15 de abril de 2014

Modernices na ópera, até quando?


"Carmem". Primeiro ato. Em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

por Comba Marques Porto

Se tudo na vida tem limites, indago: quando terão fim as transposições ou releituras de libretos de óperas por diretores de cena e figurinistas para a locação da trama em tempos modernos, até mesmo quando se trata de temas nada universais, como em Il Trovatore, de Verdi? É o que eu chamo a “mania dos homens de terno” que já se torna lugar comum em encenações de ópera pelo mundo afora, o que, aliás, vem despertando sonoras vaias, como aconteceu com a Carmen de 2009 no Alla Scala de Milão.  

Há, sem dúvida, honrosas exceções, experiências bem sucedidas de aggiornamento em encenações. Em lista que não se esgota, cito dois exemplos de acertos que muito me tocaram: a Traviata da Netrebko em Salzburg/2005 e o Parsifal do Jonas Kaufmann no MET/2013.

Violações à integridade das obras

Não se trata, pois, de recusar liminarmente tudo que se inventa. O problema, ao meu ver, reside no “como se inventa”. Parto do princípio de que não é dado aos diretores de cena e figurinistas o direito de violar a originalidade da obra feita de música, libreto e notas sobre as ações e cenas. Não faz sentido a direção de cena querer se sobrepor aos autores da obra ou recriar o libreto com o propósito de atualizar a ópera ou torná-la mais palatável ao público, supondo-se que a mania de colocar tudo ambientado nos séculos XX/XXI, com estranha fixação nos anos 40, obedeça a tal propósito.

O pior é quando a coisa resulta mambembe, feiosa e, especialmente, apartada da inteligência teatral inerente à obra, como se deu na montagem da Carmen de Bizet/Meilhac/Halévy ora em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.    

Dom José de terno novo e a cigana de poucos feitiços

O Don José, da Carmen de Bizet (consta que o de Merimée é um tanto diferente), apresenta-se como um soldado, um aldeão. Na concepção de Allex Aguilera, ora comentada, o personagem entra em cena no 1º ato com pinta e traje de um oficial nazista, nada a ver com o soldado que se rende aos feitiços da cigana. Nesta montagem, o mesmo Don José aparece ao final num terno de risca de giz, agora com pinta de político ou diretor de estatal brasileira. O que significa isso?

Na cena do dueto final, tal como consta do libreto, Don José ronda a praça e as amigas Frasquita e Mercedes aconselham Carmen a tomar cuidado. Destas frases depreende-se que Don José esteja visivelmente abalado, pronto para cometer um ato de loucura. Na montagem ora apreciada, aparece-me um Don José em seu terno engomado, senta-se à mesa de um bar para conversar com Carmen. Mesa de bar com direito a garçom e tudo! Ou seja, a intensidade dramática do dueto em muito se perdeu. Não se construiu o necessário andamento dramático que conduz ao desfecho.  

A célebre "Habanera" do 1º ato é cantada por Carmen no segundo andar do cenário, ao canto esquerdo do palco. Será que a escolha desta marcação se deve ao desejo de chamar atenção do público para o cenário tal como inventado ou para “explicar” a sua finalidade?

No 1º ato, de acordo com o libreto, Carmen entra em cena junto com as demais operárias da fábrica de cigarros, em intervalo da jornada laboral. Não faz sentido ela cantar a Habanera encarapitada no alto de uns andaimes. Aliás, o cenário estruturado em andaimes ou plataformas de ferro interligadas por escadas carece de significado cênico no contexto da obra.

No 4º ato as duas estruturas postas respectivamente à direita e à esquerda do palco se acoplam para dar a ideia do grande portal da arena fechado enquanto ocorre a tourada. Aí viu-se o palco excessivamente às escuras. Foco apenas em Carmen que vem à cena trajada de socialite carioca pronta para um baile no Copacabana Palace, num longo branco à rigor, com direito à carteira de cetim, look anos 60. A iluminação restrita ao foco alcança a tal mesa de bar que ambientará o embate final entre Carmen e Don José.  Aliás, me pergunto o porquê de tantas marcações paradas para o papel de Carmen nesta montagem? Sem movimento e agilidade corporal a Carmen perde sua expressividade, diria a mezzo-soprano Gabriela Bezanzoni (1888-1962), grande intérprete do papel.

Carmen e a violência contra a mulher

Consta que Alex Aguilera teria afirmado em entrevista que pretendeu com esta montagem chamar atenção para a "violência contra a mulher". O libreto é óbvio e não precisaria de realce quanto a tal ponto: Carmen é vítima, sim, de um ato de violência praticado por Don José por não aceitá-la livre como ela é e enfaticamente se declara. O paralelo entre a tourada real e a tourada metafórica resta evidente na obra, como bem observou Henrique Marques Porto em sua crítica publicada no blog Ópera Sempre.    

O fato é que a proposição central da obra vai bem além do tema da violência contra a mulher que está englobada na abordagem do confronto maior entre a liberdade individual e as convenções sociais, o sentido do amor, o que não se restringe à questão da fidelidade amorosa a partir da ideia de apropriação da mulher pelo homem em nome do amor. Carmen não ama a ninguém – si je t’aime, prends gárde à toi” – se eu te escolho como objeto do meu amor, cuide-se!

Na obra Carmen simboliza uma liberdade instintiva, indomável. Ela é mais que uma mulher de carne e osso. A Carmen é uma bela metáfora. Nada melhor, é claro, do que representá-la numa personagem feminina singular e corajosa, como fizeram Bizet/Meilhac/Halévy – uma mulher que intimida os homens e os tem sob seu domínio. Uma ideia de mulher que, na história da ópera, faz um belo contraponto às sofredoras Leonoras verdianas.  

Ante à morte anunciada, Carmen enfrenta Don José porque em verdade, encarna o desafio ao destino. Sua liberdade interior afronta tudo, é maior que a própria morte.   

“... Mais si tu doigt mourir, si le mot redoutable est écrit par le sort
recommence vingt fois, la carte impitoyable répétera: la mort ...”
(Ária das Cartas) 

Diante da insistência de Don José Carmen jamais ne cédera!” Libre elle est née et libre elle mourra!  

Escamilo e a morte de Don José

Não li o romance do Merimée, não sei qual é o fim lá previsto para o Don José. De todo modo, o correto é considerar a obra de Bizet/Meilhac/Halévy e com base nesta posso afirmar que não faz o menor sentido a última cena tal como concebida na montagem ora comentada, em que Escamilo passa a navalha no pescoço de Don José. O que se quis dizer com isso? Seria vingar a violência contra a mulher? Não creio porque isto não faz o menor sentido.

No mais, a ideia de justiça com as próprias mãos não é acolhida pelo movimento feminista. Não se quer o justiçamento dos homens que matam mulheres por razões sentimentais nem por razão alguma. Postula-se, sim, a prática de políticas públicas de educação para a cidadania e, particularmente, a aplicação de medidas de prevenção e de punição pelo Estado, visando-se coibir a violência contra a mulher.

O desastre cênico do 4º ato da Carmen produzida pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi, de fato, além do que se pudesse esperar com esse assassinato de Don José por Escamilo. Mais um trabalho em que o essencial da obra é sacrificado como são os touros sacrificados nas arenas espanholas. Quem perde com isso? Principalmente o público jovem que busca a ópera e a encontra desfigurada de sua verdade artística.  

3 comentários:

  1. Parabéns pelo post, e eu concordo em gênero, número e grau. Assisti a ópera nessa ultima terça-feira e sai bastante decepcionado. Acho que essa montagem peca em vários sentidos:
    1) Eu não sei o que há com o Coro do Theatro Municipal do RJ que não acompanha a orquestra. Ou, o maestro Issac Karabichewski estava com pressa de ir pra casa. O coro durante a Habanera estava completamente fora do tempo, a ponto do público se olhar com cara de espanto. Era gritante a confusão.
    2) O que foi fizeram do coro infantil???? Um momento tão bonito da ópera com aquelas crianças marchando no mesmo lugar por horas. Vi uma montagem onde as crianças fingiam em ser soldados brincando em trincheiras. Na versão carioca ficou cansativo. Feio e pobremente dirigido.
    3) Sou aluno do Curso de Direção Teatral da UFRJ e apaixonado pelo Gênero Operístico. Tive oportunidade de Dirigir 3 óperas com redução para piano e percebi que há um total despreparo do Cantor (na maioria deles) em relação a cena. Há uma preocupação exacerbada pelo canto, esquecendo-se da interpretação cênica. É uma constatação ingênua, mas ópera é teatro musicado. Existe uma proposta dramatúrgica, cênica. E, com esse despreparo, tudo parece muito falso. Algo que parece que foi pensado assim: Já temos canto, orquestra, cenário, figurino...fáz qualquer coisa ai que o público acredita. Duetos longuíssimos sem movimentação alguma. Em tempos modernos, do cinema 3d, da velocidade da informação, ter algo chapado por 10 minutos é exigir demais da plateia. É perder um público jovem precioso que, se não for amante da ópera inveterado, não vai assistir.
    4) É lindo aquele espelho em cena, mas o que significa?
    5) Carmen morreu, e eu não vi como mataram. De repente ela se vira de costa e há uma mancha vermelha nas costas.
    Em suma, acho que há uma eterna briga entre música com o teatro, que precisa ser resolvida, pois, ao contrário, estaremos fadados a assistir espetáculos (caríssimos) como esse, com uma enorme carência de estrutura cênica. Ou então, é melhor ficar em casa ouvindo CD, e me deleitar com a belíssima música de Bizet.

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  2. manuel thomas17 de abril de 2014 13:25

    Parabéns pelo post, e eu concordo em gênero, número e grau. Assisti a ópera nessa ultima terça-feira e sai bastante decepcionado. Acho que essa montagem peca em vários sentidos:
    1) Eu não sei o que há com o Coro do Theatro Municipal do RJ que não acompanha a orquestra. Ou, o maestro Isaac Karabichewski estava com pressa de ir pra casa. O coro durante a Habanera estava completamente fora do tempo, a ponto do público se olhar com cara de espanto. Era gritante a confusão.
    2) O que foi fizeram do coro infantil???? Um momento tão bonito da ópera com aquelas crianças marchando no mesmo lugar por horas. Vi uma montagem onde as crianças fingiam em ser soldados brincando em trincheiras. Na versão carioca ficou cansativo. Feio e pobremente dirigido.
    3) Sou aluno do Curso de Direção Teatral da UFRJ e apaixonado pelo Gênero Operístico. Tive oportunidade de Dirigir 3 óperas com redução para piano e percebi que há um total despreparo do Cantor (na maioria deles) em relação a cena. Há uma preocupação exacerbada pelo canto, esquecendo-se da interpretação cênica. É uma constatação ingênua, mas ópera é teatro musicado. Existe uma proposta dramatúrgica, cênica. E, com esse despreparo, tudo parece muito falso. Algo que parece que foi pensado assim: Já temos canto, orquestra, cenário, figurino...fáz qualquer coisa ai que o público acredita. Duetos longuíssimos sem movimentação alguma. Em tempos modernos, do cinema 3d, da velocidade da informação, ter algo chapado por 10 minutos é exigir demais da plateia. É perder um precioso público jovem que, se não for amante da ópera inveterado, não vai assistir pois dizem quem ópera é chato. Cá entre nós, por essas razões, as vezes é!
    4) É lindo aquele espelho em cena, mas o que significa?
    5) Carmen morreu, e eu não vi como mataram. De repente ela se vira de costa e há uma mancha vermelha nas costas.
    Em suma, acho que há uma eterna briga entre música e o teatro, que precisa ser resolvida, pois, ao contrário, estaremos fadados a assistir espetáculos (caríssimos) como esse, com uma enorme carência de estrutura cênica. Obviamente, quando saio de casa para assistir uma ópera, vou pra ver cena. Cena é concretude com bom-senso, imaginação e criatividade. Ou então, é melhor ficar em casa ouvindo CD, e me deleitar com a belíssima música de Bizet.

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  3. Manuel Thomas, obrigada por seu valioso comentário de quem cultiva profissionalmente o olhar teatral.

    Fica-me a impressão de que nesta montagem da Carmen as soluções de cena e de figurinos não obedecem a critérios propriamente teatrais. Botam um enorme espelho no palco para arranjar um cachê para o dono da loja de espelhos... Sei lá...

    As marcações para a personagem Carmen são horríveis. Cenas paradas em excesso, como no 2º ato, enquanto os bailarinos flamencos dançam e, ao final, ela se levanta da cadeira para fechar a cena, dançando junto, muito por assim dizer, pois a cantora, em verdade, não dançava nada.

    A mancha vermelha no vestido branco do dueto de final da ópera, sinceramente, só me fez lembrar a menstruação. Quando eu e minhas amigas íamos aos bailes nos anos 60, quase sempre de vestido branco, vivíamos assombradas por uma súbita menstruação que viesse a acabar com a festa...

    Tudo muito lamentável. Ópera assim é melhor não fazer. Que nos voltemos a ouvir ópera e tenho certeza de que encenações de nossa imaginação serão bem melhores...

    Um abraço.
    Comba

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