sexta-feira, 11 de abril de 2014

A estreia de “Carmem” no Municipal do Rio de Janeiro



Ilustração da cenografia de Allex Aguilera para a Carmem.

por Henrique Marques Porto


Voltando para casa ontem, no início da madrugada, o ônibus parou repentinamente fora do ponto. Foi solidariedade do motorista para com uma mulher simples, que carregava uma bolsa grande. Ao subir ela agradeceu a gentileza do motorista (era o último ônibus da linha) e disse: "-Não podia perder esse ônibus. Estava ganhando um dinheirinho no teatro municipal...tá tendo ópera lá..."

É verdade, está tendo ópera no Municipal do Rio de Janeiro. Não é muito comum, mas está. Uma raridade que até o povo simples já sabe que é.

Carmem, de Georges Bizet, estreou ontem, dia 10, quinta-feira. Casa cheia, mas não inteiramente lotada, como costuma acontecer quando títulos muito populares ocupam o palco. O espetáculo foi dedicado à mezzo soprano Carmem Pimentel, falecida em 26 de março. Ponto para a direção do TM, pela atenção e pela justa homenagem.

A montagem

Se eu me dispusesse a contar para aquela senhora do ônibus o que foi o espetáculo que ela não pode ver, resumiria brevemente assim: entre mortos (mais mortos do que o de costume) e feridos, as maiores vítimas foram Georges Bizet e os libretistas Meilhac e Halèvy.

Tentarei ser igualmente breve sobre a “leitura” de Allex Aguilera, responsável pela cenografia e direção de cena: trabalho monótono, feio, que cansa o espectador, com uso abundante dos manjados clichês que vêm marcando atualmente muitas montagens de óperas. Parece uma colagem do que se vê por aí. Ao repertório de clichês e truques fáceis para seduzir os espectadores menos atentos juntaram-se alguns equívocos evidentes. Os mais flagrantes foram:

1) A “Canção do Toreador”
Aqui o toureiro Escamilo fez sua estreia como falso cantaor flamenco, com direito a acompanhamento de duas guitarras e carron (mudos e sem ritmo, é claro). "Votre toast" é outra coisa, e o público sabe disso.  

2) A “Ária das Cartas”

Na verdade é uma cena, que exige portanto ação teatral. Contrariando o texto, a Carmem dessa montagem ficou de pé, parada, sem consultar as cartas do baralho –aquelas que, segundo Carmem, “não mentem nunca”. Ao lado, Frasquita e Mercedes fazem o mesmo. Para elas as cartas indicam “fortuna” e “amor”. Elas riem. Para Carmem indicam a morte, que ela entende como um presságio. Luisa Francesconi cantou como cantaria num concerto. Um desperdício. Renderia muito mais com os recursos de algum jogo cênico. O público reagiu com aplausos tímidos. Terá sido por uso abusivo de linguagem estranha ao teatro de ópera? Talvez, já que a ópera vem sendo contaminada pela linguagem dos musicais made in Broadway e off Broadway. Ária ou cena de ópera não são como as canções de um musical. Ópera é teatro! Não é musical nem cinema. Mas, essa é uma questão que está ficando cansativa. Por enquanto, as montagens de tom provocativo têm rendido lucros aos seus autores –quanto mais polêmicas forem, melhor para o diretor. O tempo dará conta disso tudo. Mas, ficam duas advertências: não se deve ter a pretensão de ser maior ou melhor do que os autores da obra; e o que hoje é lucro, amanhã poderá reverter em prejuízo.

Resta um último comentário. O diretor Aguilera resolveu reescrever o final da ópera, que ficou assim: Jose mata Carmem, confessa o crime e se entrega à polícia. Carmem e Jose estão sozinhos em cena, mas ele se penitencia assim mesmo. Enquanto Jose se entrega para ninguém, o cenário abre e aparece Escamilo, que acabara de matar um touro, e corta a garganta de Jose, fazendo “justiça” com as próprias mãos. Sangue na areia, nos personagens principais e em abundância no fundo da cena, tingindo tudo de vermelho. Quase respinga no maestro e na orquestra, que nada tinham a ver com aquilo! O final da Carmem, na verdade, são duas “touradas” simultâneas –entre Escamilo e o touro; entre Carmem e Jose. O “touro” morre nas duas.

Ainda que admitamos a possibilidade de tal desfecho, colocando-o na conta da “criatividade” ou da “inovação”, resta um confronto com o texto da ópera. No ato anterior, Jose e Escamilo duelam a navalha. O toureiro leva a melhor e submete Jose. Os contrabandistas e Carmem chegam e separam os brigões. Então Escamilo diz, no estilo comique, que seu ofício é matar touros, não homens.

Le torero (Escamilo)
Tout beau!
Ta vie est à moi, mais en somme,
j'ai pour métier de frapper le taureau,
non de trouer le coeur de l'homme!

Posso estar sendo traído pela memória, mas esse texto foi excluído da montagem de ontem.

A atuação dos solistas    

Luisa Francesconi
Muitas cantoras sonham viver Carmem. Poucas podem. Luisa Francesconi tem uma bonita e bem projetada voz, que necessita, contudo, maior apuro na afinação, mas sua Carmem não chegou a empolgar. Ficou muito distante da personagem multifacetada, contraditória, sedutora e enigmática que mobiliza as fantasias masculinas. É difícil vestir a pele de Carmem, mas Luisa é jovem e tem tempo para aprimorar seu desempenho.

Quem roubou a cena foi a soprano Ekaterina Bakanova, que fez a modesta Micaela crescer diante da falta de vibração da Carmem de Luisa Francesconi. No entanto, a opacidade de um personagem tão forte como Carmem não terá sido por culpa da protagonista, embora ela não tenha dado demonstração de possuir dotes especiais de atriz. Luisa com certeza rende muito mais em papéis mais adequados à sua voz e à sua personalidade artística. De uma forma geral, todos os intérpretes, e até o Coro, foram prejudicados pela concepção do diretor de cena.

Ekaterina Bakanova
A russa Ekaterina Bakanova –que já havia se apresentado no Municipal na Nona de Beethoven- foi a grande surpresa da noite. Trata-se de uma cantora de qualidades excepcionais, com chances de formar em curto espaço de tempo entre as grandes solistas atuais. Em 2015 estreará no Royal Opera House, cantando a Musetta, em La Bohéme. Micaela é um papel modesto a quem Bizet confiou uma ária que caiu no gosto do público, “Je dis que rien ne m'épouvante”. Bakanova presenteou o público do Rio com uma belíssima e sensível interpretação da ária, conquistando os maiores aplausos da noite.


Fernando Portari, carioca e bem conhecido da plateia do Rio, não esteve ontem em sua melhor noite, mas soube compensar uma ou outra indecisão com a larga experiência e o domínio de palco que possui. Portari é um cantor seguro, que domina perfeitamente os recursos de sua voz e sabe até onde pode ir com ela.

O Escamilo do barítono lituano Valdis Jansons apareceu discretamente no rit “A canção do Toreador”. Não por culpa dele, como já se disse. Cresceu no terceiro ato, quando se pode notar segurança técnica, bom fraseado e musicalidade.

Lucia Bianchini (Frasquita), Daniela Mesquita (Mercedes), Geilson Santos (Remendado) e Marcelo Coutinho (Dancario) -todos membros do Coro do Theatro Municipal- compuseram um quarteto de altos e baixos. Engana-se quem imagina que esses pequenos papéis são fáceis. Não são e devem ser mais valorizados. O quinteto (com Carmem) do segundo ato é uma passagem de execução difícil, que exige mais ensaios que, suspeito, tenham sido insuficientes. Com certeza vão melhorar nas demais récitas.

Participações eficientes e corretas de Daniel Germano (Zuniga) e Leonardo Páscoa (Morales).

Sempre graciosa a participação das crianças no coro do primeiro ato, a cargo do Coro Infantil da UFRJ. Um número menor de componentes talvez facilitasse o desempenho do conjunto.

Muito boa a participação dos dançarinos de Flamenco, coreografados por Eliane Carvalho. Toda a cena da dança cigana, no início do segundo ato, uma passagem muito aguardada pelo público, dependeu deles.

Muito feios os figurinos de Fabio Namatame. Essa combinação de bege-alcatrão com cinza e tonalidades de azul já deve estar cansando até o olhar pouco exigente de quem acompanha a novela das sete.

Fiquemos com a música de Bizet. Saíram-se muito bem a Orquestra Sinfônica do TM e o maestro Isaac Karabtchevsky. Os pequenos deslizes em um naipe ou outro não chegaram a comprometer o conjunto.

O Coro do TM esteve bem, mas com alguns desencontros no início do terceiro ato (cena da montanha). Foi pena o diretor de cena não ter valorizado mais a presença do conjunto no palco. O povo é um componente importante na Carmem concebida por Bizet. Esconder o Coro atrás de um telão no último ato, substituindo a ação em cena por muitos minutos de projeção de um vídeo foi uma ideia infeliz. Não funcionou, ainda que inspirada pelas melhores intenções. O desafio do teatro é resolver as cenas no palco, com as ferramentas do teatro. A projeção de vídeo é uma opção acessória. Jamais poderá substituir por inteiro a ação teatral e a movimentação cênica.    

É possível que daqui a sei lá quanto tempo a ópera seja um gênero cultivado por um público reduzido. Posso até imaginar a hipótese extrema de que sobrevivam apenas alguns poucos títulos. Pois se isso acontecer não tenho dúvidas de que Carmem estará entre eles. A noite de ontem, com todos os senões que se pode apontar, confirmou isso. 

5 comentários:

  1. Gostaria do contato do Henrique Marques Porto (email).

    Segue o meu para trocar sugestões e informações.

    Vinícius

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  2. A estreia foi quinta-feira dia 10

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    Respostas
    1. Obrigado amigo(a)
      O melhor revisor é sempre o leitor. Já está corrigido.
      Henrique Marques Porto

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  3. Eu estive na estréia e adorei. Nunca antes me emocionei em uma montagem de Carmen (já vi várias, inclusive no exterior). Mas nesta montagem, teatral e por vezes cinematográfica, me emocionei muito. O final do 4 ato pareceu-me impressionante de teatralidade e emoção. Gosto não se discute mesmo. Viva a diversidade, graças a Deus.

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  4. Infelizmente tenho q concordar com tudo. Sou apaixonada por Carmem desde a minha infância, o q me fez aproximar-me da ópera. Cheguei a assistir grandes espetáculos, e até ontem não havia saído tão triste do Theatro, ouvindo pessoas dizendo q já não dá mais vontade de sair de casa para a ópera. Pessoas revoltadas com o final grotesco, com todo aquele sangue do filme q desviou a atenção de uma cena q sempre emocionou. Filme horroroso, de péssimo gosto em q o toureiro mata o touro por trás, ao q pude ver, assim como D. José mata Carmem, Escamilo, aqui, mataD. José, e a produção mata o sonho de seu público, até mesmo com os muitos cortes q fizeram.Lamento muito.

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