“...a
maldade é depravação da natureza, e a natureza ‘natural’ é mais forte do que a
natureza depravada e pervertida”.
(Hannah Arendt)
por Henrique Marques Porto
“Billy Budd, marinheiro”, subtítulo “Uma narrativa interior”. Foi assim que
o americano Herman Melville (1819-1891) nomeou sua última e inacabada obra -um
conto ou romance curto, ou ainda novela, segundo alguns. O manuscrito foi achado
depois de sua morte e só foi publicado nos Estados Unidos em 1924. Apesar de
ambientado na Europa, no contexto de uma guerra entre Inglaterra e França, o
conto parece que tinha outro endereço: a nascente república americana e sua
sociedade ainda em formação.
Billy Budd (ou "Baby
Budd", como o personagem é tratado) é uma história cuja trama aborda
praticamente tudo - o Mal versus o Bem; o Poder; o Estado; o Direito, a Justiça
e a Lei; os mistérios da alma humana; as relações interpessoais e coletivas; a
inveja; os desejos reprimidos e até o erotismo.
O centro dos conflitos nos quais se envolve o
personagem Budd é, sem dúvida, a luta
do bem contra o mal. Mas não faltam subtextos ao conto de Melville, o que
enseja várias leituras e interpretações. O mais aconselhável, contudo, é ficar
com todas elas, porque os temas estão interligados. No pano de fundo da história sopram os
ventos dos ideais da Revolução Francesa e a ideia-força “o homem bom por natureza”.
Hannah Arendt recorreu a “Billy Budd” em seus estudos sobre o Mal (a “banalidade do mal”). Melhor citá-la, deixando ao leitor a
reflexão.
“Não há nada de trágico no
confronto em si (Claggart x Billy Budd); a bondade natural, embora “tartamudeie” e não se consiga
fazer ouvir e entender, é mais forte do que a maldade porque a maldade é
depravação da natureza, e a natureza “natural” é mais forte do que a natureza
depravada e pervertida. Essa parte da história é grandiosa porque a bondade,
por ser parte da “natureza”, não age com brandura, mas se afirma com força e
até com violência, de maneira que ficamos convencidos: apenas o ato de
violência com que Billy Budd golpeia até a morte o homem que levantou falso
testemunho contra ele é cabível, eliminando a “depravação” da natureza. (...)
Nas palavras de Melville, a compaixão é incapaz de estabelecer “instituições
duradouras”.
Foi nesse mar tempestuoso e de águas tão
profundas -a “narrativa interior”- que Benjamim Britten lançou sua música. Mas,
antes de tratar da ópera, e até para conhecê-la melhor, são necessários alguns
comentários sobre Herman Melville, mais conhecido do público pelo clássico “Moby Dick”.
Em Billy
Budd, de certa forma Melville retoma personagem anterior. Ele próprio. Em
1849 publicara o livro autobiográfico “Redburn,
his first Voyage” (Redburn é nome
de um dos personagens de Billy Budd),
onde narra sua experiência como grumete. O jovem e refinado Melville conviveu
com o ambiente rude, grosseiro e não raro sórdido, de um navio. Nesse livro e
em outros –inclusive em Billy Budd-
há referências claras a intenções ou a relações homoeróticas, como menções a encontros
furtivos entre marujos sob as velas e nos cantos escuros do navio. Já em “Moby Dick” ele aborda a homofobia, relacionando-a ao racismo.
Com audácia e muita habilidade na escrita,
Herman Melville foi dos poucos autores de sua época a abordar o tema da
homossexualidade e da homofobia, tabus absolutos no século dezenove. Segundo
várias fontes, Jean Genet teria se inspirado em Billy Budd para escrever o ácido “Querelle de Brest”. Diga-se a propósito que Melville era
homossexual, condição que encobria nos véus de um casamento e filhos. Benjamin
Britten também era. Seu companheiro de toda a vida, e também parceiro musical,
foi o tenor inglês Peter Pears, que conheceu em 1936, e que atuou na estreia de
Billy Budd. E também um dos
libretistas, Edward M. Forster, era homossexual. Ora, direis, com tantos gays
na parceria, parece claro que Billy Budd
pode ser definida como uma ópera gay.
E de fato já foram realizadas montagens da ópera que acentuam esta abordagem.
Mas é preciso ter alguma prudência na
classificação. A trama é tão densa que rejeita simplificações, sob o risco de
cair na cilada de identificar uma floresta tendo apenas a visão de uma única árvore.
De fato, não há no texto, tanto no conto como na ópera, qualquer menção direta
sobre a sexualidade de Budd ou de
qualquer outro personagem. A bombordo ou a estibordo.
No entanto, a atração de natureza homoerótica
é sugerida no conto de Melville e foi mantida na ópera, ainda que
discretamente. A começar pela inegável sensualidade da descrição do personagem
central, Budd, e as reações dúbias ou de estranhamento que sua
presença provoca na tripulação. Pode-se dizer que também a homofobia está
presente como subtexto, como nas referências feitas por Glaggart a respeito da "necessidade" de eliminar o “bonitão” Baby Budd. E a homofobia é, em essência, uma expressão do “mal”,
tal como referido por Hannah Arendt, e também uma forma de exercício do poder,
de dominação ideológica e cultural, e meio de controle social. É igualmente uma
expressão da alma e do caráter humanos.
A trama e a
ópera
“Baby Budd” é bem jovem, não sabe a idade que tem, nem qual é sua origem. É bonito, puro, sensível, bom e dono de uma
franqueza e sinceridade, aparentemente ingênuas, que são perturbadoras para o
ambiente de um navio, onde valem mais a sabujice, a esperteza e a violência. É
marinheiro de um navio mercante cujo nome é “Direitos
Humanos”. Um oficial do navio de guerra inglês “Indomável” (no conto de Melville “Bellipotent”, que em arcaico significa “Poderoso na Guerra”) escolhe Billy
para servir no navio de guerra. Os nomes desses navios -quase antônimos- dizem
muito sobre o conteúdo da trama. Na nova embarcação Budd logo atrai as atenções de todos, especialmente do contramestre
Claggart –homem rancoroso, de
origem misteriosa e índole perversa. Contudo, o também misterioso Billy Budd é frágil. É gago, mas não
sofre de uma gagueira qualquer. Ele só gagueja diante de situações difíceis ou sob
grande pressão psicológica, quando não sabe explicar com palavras a situação
com a qual se confronta. Claggart é
seu oposto e, por manifestação do mal, inveja ou por desejo reprimido acusa Billy de fomentar um motim. Acareado com
o acusador, Budd não consegue se
defender com palavras, gagueja muito e, por fim, enfurecido se expressa com
violento soco que mata o contramestre. O capitão Fairfax Vere (Vere, do latin verus,
veritas) assiste a tudo e tem íntima
convicção sobre a inocência de Billy.
Mas, “a
compaixão é incapaz de estabelecer “instituições duradouras”. E
é em nome destas instituições, que Vere
personifica, e não propriamente por matar Claggart,
que Billy Budd é condenado à morte
por enforcamento. Antes de morrer grita: “-Viva
o capitão Vere!” Uma espécie de brado de inocência e libertação. Vere passará o resto de seus dias
remoendo-se em culpas pela morte do jovem belo, sincero, puro e desafiador. É
ele quem conta a história de Billy Budd -e seus próprios dramas de consciência- no Prólogo e no Epílogo da ópera.
Benjamim
Britten poderia ter naufragado nesse mar de temas, repleto de subtextos. Não compôs uma obra superior, mas foi feliz. A música é fiel aos climas e situações do conto de Melville, em que pesem
as adaptações
do texto original feitas pelos libretistas Forster e Crozier, com a particiação do próprio Britten. A vida rude da marujada oprimida e brutalizada pelos oficiais está bem expressada na música eloquente que Britten criou para o coro masculino, a quem encarregou de
apresentar o primeiro tema logo no início da ópera. Nas intervenções de Glaggart, a música é rascante e sublinha a "natureza depravada" e má do personagem. Em contraste, ele reservou para o protagonista e também para o personagem Fairfax
Vere passagens líricas e
melodias ternas, como Billy in the Darbies –única que pode ser classificada como sendo uma “ária” que, contudo, soa
como um lied. Britten percebeu a inspiração deste tema e o desenvolveu e explorou com sabedoria.
Não
se espere de Benjamin Britten uma ópera com a mesma estrutura de uma obra do repertório clássico. Ele
buscava precisamente uma outra linguagem para o melodrama e se sentia a vontade
no ambiente do experimentalismo. Em Billy
Budd o sinfonismo é dominante. Mas foi feliz de tal forma que basta ouvir a
música para identificar não apenas os climas, mas um ou outro personagem,
conferindo-lhes caráter e identidade musicais.
A montagem do Theatro Municipal
A
récita de ontem, dia 21, recebeu um público modesto -muitas poltronas vazias em
todos os setores; algo como meia casa ou pouco mais. Pois quem não foi perdeu
um ótimo espetáculo. Mas ainda há tempo de conferir Billy Budd nas duas últimas récitas programadas.
Elenco
homogêneo e eficiente sob a batuta experiente e sempre segura de Isaac
Karabitchevsky. Ótimo desempenho do Coro do Theatro
Municipal (apenas vozes masculinas) e dos meninos do Coro Infantil da UFRJ. A Orquestra Sinfônica do
Municipal andou assustando no primeiro ato, quando sopros e metais pareceram
não se entender muito bem, mas se recuperou mais adiante. Aqui é preciso que se
faça uma ressalva: até onde se sabe, os ensaios com a orquestra foram
insuficientes e essa é uma partitura que precisa ser mais bem trabalhada pelo
regente e pelos músicos. Exemplo: nas sequências em que Budd gagueja, Karabitchevsky poderia ter tirado maior partido das
possibilidades rítmicas oferecidas e que devem estar indicadas na
partitura.
Em tempo. Essa matéria já tinha sido postada quando me chegou a informação de que o Coro e a Orquestra do Theatro Municipal receberam as partituras de "Billy Budd" há apenas 1 (um) mês. Foi esse o tempo que os conjuntos tiveram para ler, estudar, decorar e ensaiar uma ópera difícil, que não conheciam, para ser apresentada no Brasil pela primeira vez. Bem mais grave foi o tempo dedicado aos ensaios. Foram apenas duas semanas de ensaios em sala e outras duas para ensaios de cena. Em Billy Budd, o Coro (os marinheiros) tem protagonismo. Conclusão: com apenas duas semanas de preparação, Orquestra e Coro tiveram que se superar. E conseguiram. Daí que eventuais falhas devem ser consideradas pelo público. Nestas circunstâncias, só cabem elogios ao Coro e à Orquestra do Theatro Municipal. Fecha o pano.
Em tempo. Essa matéria já tinha sido postada quando me chegou a informação de que o Coro e a Orquestra do Theatro Municipal receberam as partituras de "Billy Budd" há apenas 1 (um) mês. Foi esse o tempo que os conjuntos tiveram para ler, estudar, decorar e ensaiar uma ópera difícil, que não conheciam, para ser apresentada no Brasil pela primeira vez. Bem mais grave foi o tempo dedicado aos ensaios. Foram apenas duas semanas de ensaios em sala e outras duas para ensaios de cena. Em Billy Budd, o Coro (os marinheiros) tem protagonismo. Conclusão: com apenas duas semanas de preparação, Orquestra e Coro tiveram que se superar. E conseguiram. Daí que eventuais falhas devem ser consideradas pelo público. Nestas circunstâncias, só cabem elogios ao Coro e à Orquestra do Theatro Municipal. Fecha o pano.
Excelentes
os cenários de Diego Siliano e ótima direção de cena de Marcelo Lombardero. O
único senão fica por conta das muitas cortinas para troca de cenários, que
quebram o ritmo teatral. Fica registrado que houve problemas de organização, por parte do Theatro Municipal do Rio, no transporte de cenários e figurinos, que vieram de Santiago-Chile. Lombardero, um profissional sério que conquistou a confiança e o respeito de todo o elenco, com certeza teve muito trabalho para montar o Billy Budd no Rio. Não podia ser diferente num teatro onde a programação de ópera tem sido atividade eventual nos últimos anos, ao contrário do que faz o Municipal de Santiago do Chile que, mesmo depois de sofrer um incêndio, manteve a sua programação porque tem compromisso e respeita seu público.
Entre
os solistas destacou-se o excelente barítono Leonardo Neiva como Budd. Tanto cênica como vocalmente
compôs muito bem o personagem, numa partitura difícil, cantada num idioma
(inglês) desfavorável para cantores de sua formação.
O
tenor Roger Honeywell (Fairfax Vere),
voz bonita e segura, o barítono Hector Guedes (Glaggart) e Homero Velho (Mr.
Redburn) mantiveram o nível. Apareceram também com grande eficiência:
Daniel Soren, Rafael Thomas, Ciro D’Araújo, Weber Duarte, Marcio Marangon e
Ivan Jorgensen.
O
tenor Ivan Jorgensen merece um comentário adicional. Jorgensen já demonstrou
que tem voz, musicalidade e formação para assumir papéis de maior destaque. É
jovem mas já poderia ter subido ao palco do Theatro Municipal como protagonista
de um papel principal. Se alguém duvida não precisa sequer fazer um teste.
Basta conferir seu desempenho em Billy
Budd, como o Novato (marinheiro
castigado pela chibata) na bela sequência para tenor e coro. Artistas se fazem
e crescem no palco, e é função dos teatros revelar os bons valores. Existem
muitos no Brasil, e Ivan Jorgensen vem puxando a fila há muito tempo.
Excelente crítica, Henrique. Parabéns!
ResponderExcluirA música de Britten não me fala bem aos ouvidos - deve ser algum problema neuronial... Mas, também gostei do espetáculo e acho que foi a única montagem de ópera neste ano digna da história do TMRJ e do público.
A falta de uma temporada planejada e pensada por gente que de fato ame a ópera deixa suas marcas. Não considero que Wagner e Verdi tenham sido aqui homenageados pelo bicentenário. A montagem da Walkiria foi sofrível, em que pese a categoria de Eliane Coelho. Aida e Rigoletto foram apresentadas com elencos desiguais, chegando quase ao fiasco o desempenho da soprano contratada para o papel título de Aída. Uma única boa montagem contratada do Chile - Billy Budd - para um teatro histórico como o nosso é algo absolutamente lamentável.
Parabéns aos intérpretes pelo domínio de palco e suas boas vozes. Reafirma-se, assim, a certeza de que é possível encenar bons espetáculos de ópera no Rio de Janeiro. Só falta mesmo é o interesse e a competência dos administradores.
Abraço!
Comba,
ExcluirE fico sabendo hoje sobre o esforço do Coro para dar conta do recado. As partituras do "Billy Budd" foram entregues ao Coro há apenas um mês! Foi o tempo que eles tiveram para ler, estudar e decorar música e texto. O espírito do "Glaggart" -um "espírito de porco"- baixou na preparação da ópera.
Beijão
Henrique
Tudo é bem diferente quando se faz por amor, ainda que profissionalmente. Aliás, aos meus ouvidos musicais, a parte mais bonita da ópera é mesmo a do coro. Tenho camaradagem com um vendedor da Travessa de Ipanema, o Antonio, e ele me prometeu arranjar o livro do Melville. Tô doida pra ler...
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