sexta-feira, 14 de junho de 2013

“Nabucco”. Royal Opera House. Abril de 2013.




por Comba Marques Porto

Meu pai, Henrique Marques Porto (1898-1969), dizia que a ópera “Aida” poderia se chamar “Amneris”, de tão linda e intensa a escrita de Verdi para a personagem que encarna a impiedosa rival da princesa etíope escravizada pelos faraós. Talvez o mesmo se aplique à ópera “Nabucco”, que bem poderia se chamar “Abigail”, de tão interessante que é a dificílima parte de soprano escrita por Verdi para a sua terceira ópera apresentada pela primeira vez em 09 de março de 1852 no teatro Alla Scala de Milão.

Consta que Verdi recebeu especial estímulo de soprano Giuseppina Streponi (1815-1897) para compor “Nabucco”. Giuseppina, que já brilhava como cantora lírica, foi a primeira interprete de Abigail. Digamos que Verdi tenha escrito a Abigail para ela, com plena ciência de sua capacidade para bem resolver as dificuldades vocais criadas para a parte de soprano da referida obra – repetidos contrastes entre notas agudas e graves, intensidade dramática, pianíssimos cabulosos, etc. Este envolvimento de Giuseppina Streponi com a composição de “Nabucco” está mencionado no livro “A Ópera” de Zito Batista Filho (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1987). O fato é que, a partir deste encontro artístico, Giuseppe Verdi e Giuseppina Streponi selaram uma longa parceria afetiva. Passaram a viver juntos, uma “ligação de mais de meio século, a duração de suas vidas” (Zito).

   

"Nabucco" é um marco importante na vida de Verdi como compositor de óperas. Aos 29 anos, não bastasse a decepção sofrida com a rejeição de suas duas primeiras composições, perdeu a mulher e o filho. Deprimido, negou-se a prosseguir compondo. Não fosse a insistência de seu editor, Verdi não teria vingado como compositor, comenta o maestro Antonio Papano no DVD da ópera “Nabucco” exibido nos cinemas do Rio de Janeiro neste mês de junho de 2013 - montagem do Royal Opera House, gravação da récita apresentada em abril. O fato referido pelo maestro Papano está registrado na citada obra de Zito Batista Filho. Mergulhado em completo desencanto com a vida, Verdi não deu bola para o libreto entregue pelo editor com a encomenda de uma nova ópera. O texto do poeta Temistocle Solera sobre tema dos hebreus cativos ficou por um tempo esquecido na casa de Verdi. Mas um fato banal do cotidiano viria mudar a história de Verdi, a história da ópera. Zito Batista Filho relata: "por um desses acasos estranhos o volume caiu ao chão e se abriu numa determinada página onde se liam os versos: Và, pensiero, sull'ali dorate... (...) Verdi declarou que a leitura do poema e a inspiração musical foram simultâneas. Formava-se, assim, o núcleo temático da ópera." Sublinhe-se, então, a importância deste trecho do “Nabucco” - o “Và, pensiero” -, cujo  significado político de cunho patriótico parece se renovar a cada nova execução até os dias de hoje.
 
E como é bom apreciar o “Và, pensiero” no contexto da ópera! Torna-se mais emocionante, sobretudo se sabemos que ali está a primeira inspiração de Verdi para a partitura de “Nabucco”, ocorrida enquanto o compositor lia o poema no libreto pela primeira vez. Verdi, provavelmente, não se deu conta de que naquele instante traçava em definitivo a sua carreira como um dos mais significativos compositores da história da ópera, de que ali despontava a sua insuperável verve para a construção de linhas melódicas de imensa beleza com que nos brindou nas composições posteriores.

Há quem implique com a popularidade do “Và, pensiero”. Eu, ao contrário, só admiro - a música e seu sentido libertário. Considero esta uma das mais belas passagens das obras de Verdi. Nessa montagem do Royal Opera House, o coro esteve excelente, sob regência cuidadosa do maestro Nicola Luisotti. Belo o efeito da sustentação prolongada da última nota em pianíssimo. Gostei e me emocionei. Especialmente com a quantidade de bons coristas entrados nos anos. E lá se foi meu pensamento sobre asas douradas ao encontro do tempo em que cantei na Associação de Canto Coral, o histórico coro carioca, dirigido por Da. Cleofe Person de Mattos. A ópera não fazia parte de nosso repertório. Mas lembro que os cantores veteranos que lá encontrei ao chegar eram bem trabalhados por Da. Cleofe e não faziam feio; estavam prontos para cantar as mais difíceis peças do repertório coral sinfônico.

Nesta montagem inglesa de “Nabucco”, o destaque vai para a participação da soprano Liudmyla Monastyrska, que vai se firmando como a grande intérprete verdiana da atualidade. Já tem em seu currículo os papéis de Aida e de Lady Macbeth, o que não é pouco, especialmente por ser ainda bem jovem. Sua Abigail resultou cenicamente enérgica e vocalmente brilhante. Deu conta com muita segurança de todas as dificuldades da parte de soprano escrita por Verdi para a sua Giuseppina Streponi.

A direção de cena do prestigiado Daniele Abbado confirma a tendência atual de composição dos figurinos com base nos trajes séculos XX e XXI - homens indefectivelmente trajados de terno e gravata, independentemente da época em que se ambiente o libreto. Compreendo e admiro a liberdade de criação, sobretudo na ópera que, por ser também teatro, enseja diferentes leituras para a encenação do libreto. Mas, prefiro “Nabucco” na estética cênica da época, tal como indicada no libreto, na representação da opulência do reinado de Nabucodonosor. Penso que a concepção original para cenários e figurinos se faz exigir em certas obras, como o caso de "Aida" e também "Nabucco". Imagine-se o que seria um "Radamés" de terno e gravata? Nestas duas óperas, a concepção original empresta mais força ao libreto e à própria partitura. A ópera como gênero pede harmonia entre música, libreto e encenação. A caracterização dos personagens e do coro, ainda que fuja à época em que a ação se passa, deve guardar este equilíbrio, em nome do respeito à obra, tal como concebida. O estranhamento com o que se vê pode vir a ofuscar o que se escuta e, muitas vezes, em prejuízo da percepção da essência da obra, de seu significado mais completo.  


Na mencionada montagem, Placido Domingo encarna o papel título originalmente escrito para o registro de barítono. Considero Placido um cantor extraordinário.  Sua carreira iniciada nos primeiros anos da segunda metade do século passado enriquece a história do canto lírico e chega ao presente com muita vivacidade, como se suas qualidades artísticas estejam a renascer a cada nova interpretação. Entretanto, arrisco incorrer na heresia de afirmar que não gosto do Placido cantando como barítono. Como aconteceu quando vi o “Simon Boccanegra” em que ele também desempenhou a parte de barítono, senti falta do metal natural da voz de barítono, do que também posso chamar da cor da voz de barítono. Em verdade, ao vê-lo em cena, senti a maior saudade de suas mais belas performances como tenor.   

No ano do bicentenário de Verdi, temos a sorte de poder assistir nos cinemas duas significativas obras de sua criação: “Nabucco”, que pode ser considerada a sua primeira grande ópera e “Falstaff”, a última ópera por ele composta, que será exibida em julho, montagem da Opera de Paris. 


Viva Verdi!

Nabucco -Placido Domingo (completa)

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