domingo, 21 de abril de 2013

Na estreia de "Aida", no Rio, o sucesso foi de "Amnéris".



Anna Smirnova recebe os aplausos do público


por Henrique Marques Porto


Todo amante de ópera já deve ter imaginado, ou ouvido alguém comentar, que a ópera Aida poderia se chamar Amnéris, dada a força dessa personagem e a beleza com que Giuseppe Verdi a vestiu musicalmente. 

Foi assim a estreia da Aida, na noite de sábado, dia 20, quando o Theatro Municipal do Rio de Janeiro reabriu suas portas para a ópera, depois de nove meses. A mezzo russa Anna Smirnova, no papel de Amnéris, colocou o espetáculo no bolso, como se diz no jargão teatral. Num elenco desigual, não foi difícil para Smirnova situar-se muitos degraus acima dos demais. Impressionou desde as primeiras intervenções. Ótima no dueto “Fu la sorte dell'armi a' tuoi funesta”. Magnífica na Cena do Julgamento. A direção de cena do respeitado Iacov Hillel poderia ter ajudado, dando-lhe o espaço de todo o palco, que realçaria a solidão, o remorso e o sentimento de culpa de Amnéris. Além de excelente cantora, Smirnova possui bons recursos teatrais e teria tido a chance de valorizar ainda mais a famosa sequência. 

O sucesso de Anna Smirnova foi diante de um público que lotou o Theatro Municipal e que reuniu antigos frequentadores do theatro e muitos jovens que vão se aproximando da ópera. Casa à cunha. Os ingressos para as outras quatro récitas já estão esgotados. O interesse do público carioca pelo gênero é tão grande que o TMRJ poderia oferecer pelo menos uma récita extra. 

No conjunto, o elenco escolhido para essa Aida certamente decepcionou o público. A começar pela protagonista, Fiorenza Cedolins, em noite muito pouco feliz. A voz da Cedolins é desigual na tessitura, mas não foi esse o seu maior problema. Faltou-lhe presença cênica, vigor dramático e recursos vocais para dar conta da Aida. Recebeu aplausos fracos e protocolares no “Ritorna Vincitor”, sua primeira ária, e cerimonioso silêncio em “Oh, Pátria mia”. Tentou dar leveza lírica a um personagem sanguíneo, uma mulher -princesa escravizada- que luta pelo homem que ama, Radamés, e é capaz de dar a vida por ele. 

Boa parte do público ficou perplexo e apreensivo em “Oh, Pátria mia”, ao ver Fiorenza Cedolins de boca aberta no palco tentando produzir algum som. Se conseguiu, bem poucos terão ouvido, além dela própria. O maestro Issac Karabtchevsky chegou a dar uma segurada na orquestra, prevendo incidente mais grave. Aparentemente, a soprano italiana tentou o mais difícil no agudo final da ária, ou seja, entrar na nota em pianíssimo e expandir o som. Se foi essa sua intenção, o resultado foi desastroso. Melhor faria se seguisse o caminho mais seguro indicado na partitura de Verdi. No entanto, a Cedolins tem voz e recursos técnicos para cantar a Aida, e pode se recuperar nas outras récitas.

O Radamés de Rubens Pelizzari também decepcionou. O programa o apresenta como “um vibrante tenor dramático”, de “voz quente e poderosa, reluzente e projetada de modo perfeito”. Pois, se é assim, mandaram-nos um clone seu, que fez exatamente o contrário. Recomenda-se prudência e economia nos adjetivos ao redator do programa. Pelizzari nos deu um Radamés inexpressivo e de voz claudicante. Em alguns momentos sua voz escondeu-se nos falsetes, em outros apelou para o grito no lugar de notas. 

O barítono Lício Bruno, no Amonasro, se teve algum mérito, foi o de lembrar ao público que a partitura de Verdi exige voz mais adequada para o papel.  A praia de Bruno definitivamente não fica nas margens do Nilo. O baixo Sávio Sperandio, no Ramfis, foi irregular ao longo da ópera, mas não chegou a comprometer. Carlos Eduardo Marcos, também baixo, como o Rei do Egito, teve melhor desempenho e cantou com sobriedade e segurança a sua parte. Participações eficientes de Ricardo Tuttmann, como o Mensageiro, e de Lucia Bianchini, como a Sacerdotisa.

Os cenários do competente Helio Eichbauer, apesar da concepção criativa, não chegaram a convencer. As muitas projeções de imagens e o frequente uso do telão são recursos de apoio que não substituem os cenários. Mudam as cenas e a impressão é que o cenário permanece o mesmo, o que provoca um certo cansaço no espectador. A persistir essa tendência, que é mundial, em breve os cenógrafos serão substituídos por filmmakers

A montagem carioca de Aida sofre de um problema de origem: os cenários são novos, mas os figurinos foram alugados de outra montagem completamente diferente, produzida em 2008 em Belo Horizonte. A concepção foi apresentada ao público como “minimalista” –um conceito que não combina muito com a Aida, que tem cenas ambientadas em espaços exteriores e exige grande número de figurantes. 

Nada “minimalista”, a propósito, foi o custo dessa montagem. Números parciais, que não incluem os cachês dos solistas estrangeiros, ultrapassam os 2 milhões de reais, o que é muito para uma produção que sequer figurinos próprios produziu. Em tempos em que se exige transparência nas contas públicas é recomendável que o Theatro Municipal passe a informar o distinto público sobre os custos de suas produções. Não será nenhum favor, mas obrigação.

Os grandes destaques da noite de sábado foram a mezzo Anna Smirnova, na Amnéris, e a Orquestra e o Coro do Theatro Municipal, dirigidos pela batuta experiente do maestro Isaac Karabitchevsky, que fez uma leitura correta da partitura de Verdi e soube amparar os solistas, ao invés de fustigá-los com sonoridade muito alta. Os Corpos Estáveis do Theatro Municipal, tão maltratados nos últimos anos, deram uma comovente demonstração de profissionalismo e superação. 

Merece destaque o trabalho do maestro titular do Coro, Maurílio Costa –que está hospitalizado com graves problemas de saúde- e de seu substituto, o maestro Jesus Figueiredo. 

O público aplaudiu com entusiasmo e de pé no final do espetáculo. Com certeza relevou as fragilidades da montagem e deu a impressão de que estava saudando, além do espetáculo em si, a volta de Aida e da ópera ao palco ao Theatro Municipal.     

8 comentários:

  1. Henrique,concordo em muito com sua crítica. Parabéns pela matéria.

    A montagem desta Aida despertou o entusiasmo do público. Afinal, era a primeira ópera da "temporada" de 2013. Era a comemoração do bicentenário de nascimento de Verdi. Era a estreia do maestro Karabtchevsky na direção da programação de ópera do TM. Era a primeira ópera montada depois dos noticiados conflitos entre a administração do teatro e seus corpos estáveis, estes fragilizados pela inércia dos gestores quanto à realização dos concursos públicos necessários à completar os conjuntos e, assim, estruturar suas atuações em temporadas bem planejadas, dando vida à casa que, lamentavelmente, mais vem servindo à locação para eventos variados do que à apresentação dos programas mais condizentes com sua história, a ópera em especial.

    Aida não é uma ópera popular por acaso. É muito mais que a sua Marcha Triunfal. É obra que transcende o fato de ter sido escrita por encomenda para a comemoração da abertura do canal de Suez. A partitura desta ópera contém trechos belíssimos, verdadeiro alento para quem vai à ópera em busca da boa música. Quando bem executada, podemos sorver toda a riqueza da escrita de Verdi.
    Sempre me emociono com o final do 2º ato. Verdi de fato soube conquistar o público com aquela configuração em tutti, aliás, presente em outras de suas óperas: solistas em sexteto, coro, vigorosa massa orquestral. O final do 2º, ao meu ver, foi o momento mais significativo da estreia de ontem. Foi bonito ver o público aclamando o coro, os bailarinos e a orquestra do “seu” teatro de ópera. Sem dúvida, a regência de Isaac Karabtchvsky em muito contribuiu para os acertos de coro e orquestra. Senti aqueles efusivos aplausos como que carregados de algo mais que uma satisfação momentânea. Corporificaram-se ali vivências remotas de um público fiel à ópera, de um público caloroso mas não menos exigente, feito da gente engalanada somada à massa que se apertava nos bancos da galeria (até 1934 não havia cadeiras numeradas neste setor). Gente que deixou suas emoções gravadas naqueles mármores, nos pilares do palco, naquela rica cúpula, gente que fez a glória de muitos cantores e determinou o fim das carreiras de tantos outros.
    Na estreia de ontem, assistiu-se a uma apresentação de altos e baixos, de belezas e de temeridades.
    A ópera quase foi a nocaute no terceiro ato.
    O que se passou com o tenor Rubens Pellizari no intervalo entre o 2º e o 3º ato? Deprimiu-se subitamente? O som do arrastar de suas sandálias foi verdadeira metáfora de sua falta de ânimo. Se já não foi dos melhores desde o início, seu desempenho vocal parecia rolar ladeira abaixo, entre desafinações e agudos mal sustentados. Em outros tempos, teria sido simplesmente vaiado.
    A soprano Fiorenza Cedolins ficou muito longe de empolgar na papel título. Lastimável sua atuação no 3º ato. Por milagre ou porque somos hoje bem mais tolerantes escapou da vaia.
    Oxalá estes solistas sejam capazes de superar suas dificuldades para melhor honrar o contrato nas récitas restantes.

    A mezzo Anna Smirnova brilhou, sim, com sua Amneris, sobretudo na cena do julgamento 4º ato), um dos trechos mais belos escritos por Verdi para a sua Aida. Pena é que a ópera pede harmonia de qualidade de seu elenco. Quando hoje me perguntaram o que achei da ópera (para a qual fui com o mesmo entusiamo de toda a vida) eu não sabia bem o que responder. Dizer que foi parcialmente boa? Não me convenço com tal resposta.
    Agradeço ao maestro Isaac Karabtchesky por seu trabalho, pelo empenho em dirigir um bom espetáculo. Mas ele sabe bem sabe que sem um bom tenor e um bom soprano não se faz uma Aida para ser lembrada.

    Aguardemos agora a próxima atração: “Die Walküre”, em celebração do bicentenário de Richard Wagner.

    Comba

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  2. Henrique: Parabéns pela crítica inteligente, embasada e bem escrita. O público que lotou o Municipal, como que sedento após a penúria dos últimos tempos, merecia espetáculo melhor. Salvaram-no a orquestra encorpada pelo talento de Karabtchevsky, o bravo coro do Teatro e a voz calorosa, firme da Amneris russa, que enloqueceu a platéia depois de um julgamento de Radamés com uma dramaticidade excepcional. Aida foi uma voz frágil e sem brilho. Nada do que se espera para um papel dramático e cheio de força. O tenor italiano que interpretou Radamés também não tinha o vigor necessário, próprio do guerreiro egípcio. Que saudade das Aidas que vimos aqui em outros tempos. Aprile Milo, Guelfi, Simionato, até Del Monaco, o grande tenor, brilharam no Rio. Consola-nos verificar que pelo menos uma ópera foi vista, com acenos de uma próxima Walkyria. O público presente, numeroso e apaixonado, demonstra que não termos ópera no palco é o grande erro das administrações responsáveis pelo setor. Ildefonso Côrtes

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  3. Ildefonso, você faz menção a tudo de bom que já vimos em outros tempos e se equivoca quem vê em suas palavras mero saudosismo. O que sentimos é SAUDADE mesmo de um tempo em que por aqui se encenava ópera com maior respeito ao gênero e na observância de padrões de qualidade hoje evidentemente desprezados pelos administradores públicos de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Orçar-se considerável quantia (o D.O. fala em algo em torno de 2 milhões) para esta Aida que vimos, com apenas uma boa solista, a russa Anna Smirnova, quando são seis os papéis de destaque. A mezzo convidada, coro e orquestra do TM salvaram a noite. E olha que a noite só foi salva porque o público em razão da carência de montagens, vai se tornando excessivamente tolerante.

    Por quê em termos de ópera estamos tão distanciados das outras casas de ópera do cenário mundial atual com seus espetáculos belíssimos de elevado padrão de qualidade? Dirão que nos falta dinheiro. Será que falta mesmo? Quais são as prioridades da administração? Como são feitas as escolhas do elenco? Por quê certos nomes promissores do canto lírico não são convocados?
    Como você, dou muito valor a assistir ópera ao vivo. Mas essa carência não deve quebrar o nosso espírito crítico. O público faz jus ao melhor, ainda o melhor não se enquadre exatamente nos critérios de business dos responsáveis pelas produções.

    Abraço.
    Comba

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  4. Comba e Henrique, as ótimas análises feitas por vocês permanecem válidas para a última récita com o elenco estrangeiro, que assisti na sexta-feira. A Amnéris da russa Smirnova foi uma beleza! O tenor Rubens Pellizari pode até ter piorado desde a estréia, pois desafinou praticamente do início ao fim, além da péssima movimentação em cena. E a Cedolins, na ária "Oh! Pátria mia" repetiu a "performance" boca aberta sem emitir som algum, o que deu a impressão de que não consegue mesmo alcançar a nota. Além da vergonha alheia, restou saber qual é o critério da direção do Theatro na contratação de elencos.
    Abraço, Daisy

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  5. Daisy, eu estava mesmo curiosa em saber o que teria acontecido nas récitas posteriores. A sua avaliação só confirma o equívoco dessa montagem. O tenor e a soprano foram contratados sem ter condições de sustentar o papel. E ainda anunciaram esta Aida como homenagem ao bicentenário do nascimento de Verdi! Triste. Ressalvas à mezzo russa de que todos nós gostamos. Idem ao coro e orquestra do TM que cumpriram bem e heroicamente o seu papel.
    Beijo.
    Comba

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    1. Relatório dos dós de Patria mia:
      1ª récita: Nada
      2ª récita: Um som forçado, instável e inconsistente
      3ª récita: Nada
      4ª récita: Uma tentativa frustrada. Pouco mais que a 1ª e a 3ª, muito menos que a 2ª.
      Ecco!

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  6. Grande crítica. Gostaria de expressar o desagravo com o Teatro Municipal e quem o financia. É triste saber que temos cenários e figurinos de muitas Óperas e ballets e ver uma programação está muito fraca. Vide, também, o Teatro Municipal de SP. Tá fraco demais. O porquê não apresentar óperas tradicionais, com cantores nacionais, aberto a preços populares? O RJ tem demanda grande de espetáculos clássicos. Cadê as apresentações abertas ? Os concertos na Quinta da Boa Vista? Em Copacabana? O Projeto "Domingo nas Escadarias", cadê? Se deseja aumentar a frequência e criar um público deveriam observar determinados critérios. Levar Escolas Municipais e Públicas. É triste não termos obras de C.Gomes, V.Lobos e outros grandes mestres brasileiros, sem montagens anuais? Já que é meio esquisito ver a dificuldade deuma comunhão com os grandes teatros dos outros estados, inclusive SP. Acredito que um projeto, contemplando exibições diversas em muitos teatros, iriam tornar mais baratas as grandes produções. Algo tem de ser feito.

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