Götter de Heller
por Comba Marques Porto
O poder inventivo de Richard Wagner materializou-se no Brasil com a montagem do “Crepúsculo dos Deuses” no Theatro Municipal de São Paulo, sob direção musical do maestro Luiz Fernando Malheiro. Pela concepção e direção cênica responde o professor André Heller-Lopes, cujo bom trabalho merece o reconhecimento do público por vários aspectos. Primeiro, pela coragem de uma criação original, diante de tudo que já se fez em montagens da tetralogia, sobretudo, a bela e recente produção do MET, assinada pelo canadense Robert Lepage, que ainda ecoa nos corações, tanto dos que puderam vê-la ao vivo, quanto dos que, graças às novas mídias, puderam assisti-la nos cinemas e agora adquiri-la em DVD já comercializado na internet.
O “Anel brasileiro” de Heller utiliza elementos de nossa cultura popular e nisto vai um grande acerto de sua concepção que traz à cena a presença de fortes signos de nossa gente. É certo que a saga do Anel trata de temas universais, o que estimula e facilita a liberdade de encenação, sem que se incorra em desrespeito ao libreto. Temas como a apropriação da riqueza, o poder, a traição, o amor estão em todas as culturas. Por outro lado, os personagens concebidos por Wagner podem ser vistos como símbolos de comportamentos igualmente universais e até mesmo atemporais.
É o herói –Siegfried - que de tão puro torna-se tolo e, de tanto admirar seus próprios feitos, acaba por se deixar enganar pelos espertos Gibichungs. Eis um tipo encontrado nas modernas democracias, inclusive as emergentes. Na vida real o ouro não sai das mãos dos gibichungs. Eles estão aí, espalhados pelo mundo. Cada vez mais, especializam-se em roubar o ouro da terra e a força de trabalho de homens, mulheres e crianças. E lá estão os retirantes no palco de Heller a lembrar a expropriação de nossas riquezas pelos alberichs e gibichungs – verdadeira e internacionalizada maldição.
É a mulher – Brünnhilde – que por fidelidade ao amor, torna-se a verdadeira heroína da saga, desafia o poder constituído, sem perder a consciência de seus atos, mesmo os mais extremos. A Brünnhilde de Wagner representa a força interior da feminilidade, essa magia que transforma mulheres em guerreiras. E quantas não são as “valquírias” brasileiras a enfrentar com coragem os dragões de cada dia? E o que não é o amor senão esse destemor, essa gana pela vida que assusta os homens e até inviabiliza muitas histórias de amor?
Há representações muito expressivas no Götter de Heller. Por exemplo, os figurinos das Nornas inspirados na tradição religiosa africana. Como bem explica Zito Baptista Filho (A Ópera, Ed. Nova Fronteira, 1987, RJ), “são as Norns, fadas ou divindades, filhas da deusa Erda, que se põem a desenrolar um extenso cordão dourado que simboliza o destino”. As Nornas, logo ao início do primeiro ato, fazem a predição da destruição do Walhalla, “devido à traição de que foram vítimas as donzelas do Reno e o próprio Reno, despojado de seu ouro”, conta Zito. Nada mais belo numa encenação genuinamente brasileira do que representar a linha do tempo e a força do destino pela referência às divindades mais populares de nossa cultura – os orixás secularmente e diariamente consultados ao som dos tambores em nossos vivos terreiros de umbanda e candomblé.
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A cena das três Ninfas do Reno é outro ponto a ser destacado. Elas aparecem “nadando” entre fitas, chapéus e artigos bem brasileiros pendurados em barracas típicas das feiras populares encontradas em quase todas as cidades brasileiras, inclusive São Paulo.
As Nornas e as donzelas do rio Reno – Woglinde, Wellgunde e Flosshilde – estão muito bem representadas, não só cenicamente, como vocalmente. Isto é fundamental para uma boa montagem de uma ópera de Wagner. Aliás, a seleção do elenco e o bom desempenho da orquestra do maestro Luz Fernando Malheiro são dois pontos fundamentais para o êxito desta montagem.
Destaco o ótimo desempenho do baixo americano Gregory Reinhart. Nota dez para o seu jeito bem alemão de cantar e representar o Hagen.
Denise de Freitas (Waltraute) e Eliane Coelho (Brünnhilde) |
Muitas palmas – mas muitas mesmo! – para a meio-soprano Denise de Freitas, com sua voz limpa, tão rica em graves quanto em agudos, a encher o teatro. E como é bom sentir a voz lírica a se expandir do palco à platéia, a nos envolver num percurso de prazer que começa pelos ouvidos e segue até o fundo do coração! As vozes pequenas, salvo raras exceções, acabam por acanhar os papéis e não deixam saudades. Denise de Freitas deu brilho à sua Waltraute, a mais corajosa das valquírias, a que vem da segunda ópera do ciclo para desenhar com sua aparição no Crepúsculo um dos elos de integração da trama. Waltraute sobe as rochas para falar com Brünnhilde sobre a tristeza de Wotan pela antevisão do fim do poder dos deuses. Muito linda é a escrita de Wagner para esta personagem que se revela até mais lúcida do que Brünnhilde. Ela vem implorar a Brünnhilde que devolva o anel ao Reno. Mas Brünnhilde já age como mulher, desprovida que se encontra dos seus poderes junto aos deuses, inclusive como a filha preferida de Wotan. Brünnhilde nega o pleito de Waltraute porque já vê o anel como penhor do amor de Siegfried, o herói deslumbrado, e não como a riqueza expropriada. Brünnhilde privatiza o significado do anel, enquanto Waltraute, dotada dos poderes de guerreira, percebe o verdadeiro sentido do ouro do Reno.
A voz do tenor John Daszak quase quebrou em dois momentos na récita de quita-feira, 23/08/12, mas isso acontece e é de se perdoar. Siegfried, o herói representado, também falha, algo inerente à natureza humana, inclusive dos cantores líricos. Antes os deslizes do espetáculo ao vivo do que o aprisionamento estético das perfeições produzidas em estúdios.
Eliane Coelho |
Por fim, meu carinho e admiração por Eliane Coelho, cuja voz colhe os frutos da experiência. Seu timbre se apura, amadurece como os bons e mais nobres vinhos. Passa a ser um distintivo de sua voz, aliás, muito bem trabalhada no repertório alemão. O figurino da Brünnhilde nesta montagem é, a meu ver, um elemento destoante no conjunto da encenação. Segue a lógica da caracterização do universo dos gibichungs, tal como apresentados em trajes do século XX. Ora, nada a ver com os significados mitológicos de Brünnhilde. Mas Eliane estava linda! Ótima naquele vestido longo, branco, “tomara que caia”, cintura marcada e apertada, bem parecido com os que usávamos nos bailes de debutantes dos nossos anos dourados. Eliane representa o melhor de nossa geração de cantoras líricas e tem seu nome ligado à história das mais importantes casas de ópera do mundo. É uma artista completa. Sua Brünnhilde resultaria brilhante em qualquer figurino.
Maravilhosa sua interpretação dos signos de wagner, tão bem mostrados nesse épico. A simbologia da sociedade, das críticas sociais transparentes no texto. A morte dos deuses e o começo de uma nova sociedade, a que seria a Alemanha (E aí lembro dos comentários de Aloisio sobre que teria sido ou não o começo de uma sociedade "pura" etc,etc).
ResponderExcluirEu que vi cenário de Laplage, teria gostado de ver esse referenciando a cultura brasileira.
Wagner é música. Toda a magia do Anel se revela na música. As emoções, os sonhos e o inatingível transbordam na música wagneriana. E suas considerações sobre o espetáculo de São Paulo me fizeram ouvir a música de Wagner em pleno silêncio.Parabéns um excelente relato cheio de música e inteligência. Pena que eu não tenha tido a coragem de ir à São Paulo ver nossa amiga Eliane cantando Richard Wagner.
ResponderExcluirE você foi além com suas lindas palavras! Isto é o que Wagner nos infunde: a percepção do belo, a percepção da música no silêncio de nossos corações.
ExcluirViva ele, viva nós que amamos a música intensa que ele escreveu para narrar aquelas fábulas complicadas que, mesmo tratando do mundo dos deuses, estão plenas de humanidade!
O universo da tetralogia é muito rico e até confuso de entender. Vejo agora que a montagem do Heller tem também o mérito de facilitar a compreensão da trama, no que aproxima os elementos originais daquela mitologia longínqua da linguagem cultural que bem identificamos. Fico feliz, Paula, por você ter gostado da crítica. Beijo.
ResponderExcluirFui capaz de assistir um pouco a esta montagem paulista do "Crespúsculo...", através deste seu breve relato crítico, Comba. Musical, cultural e (ótimo!) feminista. Me senti inserida e representada também nas suas palavras, "E quantas não são as 'valquírias' brasileiras a enfrentar com coragem os dragões de cada dia?". Todas nós, não é? Conseguiu colocar o trabalho cênico do professor André Heller-Lopes num patamar especial.
ResponderExcluirE soube mostrar-se generosa com o Siegfried/Daszak da sua noite.
Muitas palmas para você também!
Christina
Christina, o mérito é mesmo da leitura que o André Heller fez da fábula dos Nibelungos, tal como concebida por Wagner. A propósito do olhar feminista, para Rose Marie Muraro, amante e conhecedora da música, Wagner, talvez sem clara intenção, tenha dado à Brünnhilde um enfoque feminista - é ela que, após a morte de Siegfried, acaba por devolver o ouro ao Reno (no final comovente do Crepúsculo). Para completar a ação transformadora, ela taca fogo no Walhalla, ritualizando o fim dos deuses e o começo do novo mundo com que Wagner sonhava. Obrigada por seu carinho comentário.
ExcluirParabéns, Comba querida, por este seu belo relato. Tão envolvente e pleno como a música de Wagner! Suas palavras foram saboreadas com alegria e admiração.
ResponderExcluirBeijos.
Minha gente, que escolha boa do Henrique este vídeo do final do "Crepúsculo"! Quão wagneriana é a voz da soprano sueca Birgit Nilsson (1918-2005)! E que beleza esse arremate dos temas da tetralogia nas mãos do maestro Georgi Solti! Obrigada, Henrique, pela bela ilustração da matéria.
ResponderExcluirComba,
ResponderExcluirQuado penso em Wagner, penso logo em Birgit Nilsson que, provavelmente, é sua maior intérprete, especialmente na pele de "Brünnhilde".
beijão
Henrique
É sempre prazerosa a leitura de textos de Comba Marques Porto sobre qualquer tema. Limpo, correto, objetivo, em excelente português. Melhor ainda quando versam sobre música, sobre ópera, temas que ela conhece profundamente e ama com paixão.
ResponderExcluirApreciei muito seus comentários sobre “O Crepúsculo dos Deuses” que viu em São Paulo (porque não no nosso abandonado Teatro Municipal de parcas produções operísticas?).
Ela nos relata uma bela encenação da última ópera da saga dos Nibelungos em que, sem desrespeito ao libreto, André Heller dá asas à imaginação, incorporando inclusive elementos brasileiros de nosso folclore.
A tetralogia do Anel dos Nibelungos foi concebida música, poesia e drama por Wagner, ao longo de mais de duas décadas, estreada em 1876 no Teatro de Bayreuth, criado por inspiração de Wagner para representação do que chamou de “Gesamtkunstwerke” (obra de arte total) onde os elementos acima citados estariam presentes numa só obra.
Até a morte de Cosima Wagner em 1930 as instruções de Wagner quanto às montagens foram seguidas fielmente. Após a 2ª Guerra Mundial, a visão do neto Wieland Wagner e outros seguidores indicaram que interpretações, que sem desfigurar o libreto mas que dessem asas a visões inovadoras, estariam de acordo com o espírito de Wagner, sempre à frente de seu tempo e aberto a inovações estéticas. Neste sentido, a montagem paulista teria a aprovação do mestre alemão. Além disso, a tetralogia se funda na mitologia nórdica, seus temas são universais e atemporais. Nas fábulas, nas lendas, nos mitos, nos contos de fadas estão contidos os elementos que pressupõem a existência de uma “condição humana”. Amor, morte, ambição, ódio são o substrato universal das mitologias de todas as culturas, em todas as épocas.
Daí bem-vinda a concepção da montagem paulista que à saga imortalizada por Wagner temperou-a com elementos de nosso patrimônio cultural.
Comba assim o bem entendeu, dando-nos uma visão lúcida da montagem, não esquecendo o eterno feminino, tão caro à sua sensibilidade e que ela destacou com rara felicidade. Parabéns Comba pelo seu belo texto e suas eruditas considerações.
Fã de carteirinha de seus escritos fico no aguardo de novas contribuições para o prazer da minha leitura e deleite do espírito.
Bravo Henrique pela ilustração do final do “Crepúsculo dos Deuses” com a diva wagneriana, a sueca Birgit Nilsson e a regência empolgante de um jovem George Solti, num apaixonante gestual de grande maestro!
Ildefonso Côrtes
Obrigada, Ildefonso, por suas observações, as quais recebo como necessário complemento ao meu texto sobre o "Anel Brasileiro".
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