sexta-feira, 1 de junho de 2012



A presença de Iago 
no Otelo de Verdi-Boito 


por Ildefonso Côrtes
 
Otelo, ópera em quatro atos do italiano  Giuseppe Verdi, com libreto de Arrigo Boito, baseia-se na peça  “Othello, The Moor of Venice” (Otelo, o Mouro de Veneza) do inglês William Shakespeare. Penúltima ópera de Verdi, considerada por muitos sua obra prima. Estreou no teatro Alla Scala de Milão em cinco de janeiro de 1887. A ópera é passada na ilha de Chipre, ao final do século XV.

Em 1871, Verdi termina Aida, encenando-a com estrondoso sucesso. Decide, então, encerrar sua bem sucedida carreira de compositor de óperas, sendo à época o mais popular e certamente o mais rico compositor da Itália.

Aos olhos de editor de suas obras, Giulio Ricordi, pareceu-lhe um desperdício tanto do talento de Verdi como de possíveis lucros. Armou-se, então, uma espécie de trama para impedir a aposentadoria precoce de Verdi e tentar induzi-lo a compor nova ópera.

Por valorizar, sobremaneira, os aspectos dramáticos numa ópera, ele era extremamente seletivo na escolha de seus libretos. Somente um libreto de qualidade excepcional o atrairia após quase dez anos de afastamento. Admirador conhecido de Shakespeare, mas com o precedente do sucesso aquém do esperado de Macbeth  -ópera da juventude, estreada em Florença 1847- que causou em Verdi muita mágoa, pareceu a Ricordi, ao amigo maestro Franco Faccio e a Arrigo Boito, compositor e grande libretista, uma idéia capaz  de demover  Verdi de sua decisão de aposentar-se. A ópera seria baseada no Otelo de Shakespeare. Boito começa a trabalhar no libreto. 

Pronto  o libreto, Verdi começa a compor em segredo. Terminada sua música, ele arroga-se, inclusive, o direito de adiar a estréia até o último momento. O sucesso foi enorme, confirmando o acerto das ideias que inspiraram a nova ópera. Verdi teve de retornar ao palco umas vinte vezes, atendendo aos aplausos do público. 


Arrigo Boito com Giuseppe Verdi
Em sua gestação, tanto Verdi como  Boito quiseram dar-lhe o nome de Iago ao invés de Otelo, que afinal, prevaleceu como título de peça. Tudo devido ao tratamento dado por Boito ao personagem e também à participação de Verdi na concepção musical da parte do vilão. Embora condensando a trama em 800 linhas ao invés das 3500 originais, Boito manteve-se bem fiel à concepção de Shakespeare,  mantendo  o cerne do  drama. A criação do  Credo, ária do segundo ato para Iago, inexistente em Shakespeare, é uma indicação clara de que se pretendia dar ao personagem uma relevância maior no enredo.



Neste Credo, Iago se diz criado por um Deus cruel, semelhante a ele próprio, nascido da vileza dum germe ou de um átomo vil. É mau porque é um homem que sente o lodo primevo dentro de si. Desfila a seguir diversas afirmações em que se define como ser intrinsecamente mau, torpe, capaz de, sem nenhum remorso, cometer todas as vilezas.

Da maneira como Boito e Verdi engendraram o personagem, não é surpresa que, saindo do espetáculo, a maldade de Iago nos impressione mais que a triste sina do mouro de Veneza. O que o motivaria a destruir a confiança de Otelo em sua mulher? Ou a tomar atitudes que ele sabe que conduzirão à morte de uma inocente, um homem que trai a todos ao seu redor? 

Há inúmeras teorias que não cabe aqui comentar. Iago faz de tudo para atingir Otelo, atiçando-lhe o ciúme, chamado por Shakespeare de “green eyed monster” (monstro de olhos verdes), numa clara alusão à uma Desdemona de olhos verdes. À medida que Iago enreda Otelo em sua teia de intrigas a linguagem de ambos assemelha-se cada vez mais, levando-se  a uma interpretação mística do mouro, como que possuído pela espírito maligno de Iago. A ponto de Otelo, quando deslinda toda a intriga que o leva a assassinar  Desdemona,  exige de Iago mostrar-lhe os  pés, para saber se não se trata do verdadeiro diabo.

As maquinações de Iago, como fomentar rivalidades entre oficiais de Otelo, mentir sobre um sonho que teria ouvido da boca de Cassio num alojamento em que ambos dormiam,  forjar uma prova da traição de  Desdemona através do lenço presenteado por Otelo e outras maquinações existentes no Iago de Shakespeare foram sublinhadas na ópera e musicalmente acentuadas por Verdi dentro do contexto do libreto.

Além da maldade inata, há o rancor de  Iago contra Otelo  por tê-lo preterido em favor de Cassio. Há a inveja por ser ele o Doge de Veneza, guerreiro vencedor, negro e casado com a loura linda de olhos verdes, e apaixonada pelo marido a ponto de romper com o pai por sua decisão de casar-se com ele.

O gênio de Shakespeare com sua trama eletrizante e a contribuição que a ela deram Verdi, no auge de sua inspiração e maturidade artísticas, e Boito, exímio em sua arte, conferiram à opera este caráter  de obra prima musical, que, seguramente, está entre as obras de arte que dignificam o poder criador do homen e a própria condição humana.

Tito Gobbi - "Credo in un dio crudel"

2 comentários:

  1. Como sempre, uma delícia de ler. Qual o ano dessa apresentação?

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  2. Paula,
    Esse Otelo é de 1959, em Tokio, oom Mario del Monaco, Tito Gobbi e Gabriella Tucci.
    Muito bom.
    abraço
    Henrique

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