segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Carlo Galeffi

Há cinquenta anos, em 22 de setembro de 1961, faleceu em Roma o barítono italiano Carlo Galeffi. 

Carlo Galeffi em 1919
Nasceu em Malamoco (Venezia), em 1884. Com apenas quinze anos participou, atuando na comparsaria, de uma montagem da “Força do Destino”, de Verdi. Aprendeu as noções básicas do canto –impostação e respiração- observando outros cantores. É possível que tenha tido aulas com Antonio Cotogni (1831-1918), grande barítono do século 19 e grandíssimo professor de canto, na Academia de Santa Cecilia. Em 1908, com 87 anos, Cotogni registrou sua voz no cilindro. Para ouvi-lo: 
http://www.youtube.com/watch?v=bdIwLbbBn4I

Definindo-se como um autodidata, Galeffi ainda bem jovem começou a surpreender o público com uma voz cujo volume era assombroso. Algumas fontes indicam 1903 como o ano de estréia, em “La Favorita”; outras 1907, na “Lucia de Lammermoor”. Pesquisas recentes afirmam que a estréia foi em 1904, no Teatro Quirino de Roma, no “Rigoletto”, papel que marcaria sua carreira. 

De fato, não se tem notícia de voz mais poderosa em volume e intensidade do que a do jovem Galeffi.  Ao ouvi-lo cantar, Tita Ruffo –o maior barítono da época, ao lado de Ricardo Stracciari- disse a frase que ficou famosa:
“-Questo ragazzo mi fai paura!”

O cara que “dava medo” ao grande Tita teve sua voz comparada a um “bombardino vivente” ou ao rugido de uma “tromba marinha”, como o definiu Giacomo Lauri-Volpi no livro “Vozes Paralelas”, mencionando sua participação como o Arauto do “Lohengrin”, de Wagner. Alguns cronistas chegaram a assinalar que o som da voz de Galeffi nos primeiros anos de carreira era tão alto que chegava a incomodar o público das primeiras filas da platéia!

Contudo não é essa a voz que ouvimos nas poucas gravações que deixou. Com o tempo e o amadurecimento, Galeffi reduziu um pouco o volume, deu mais claridade à voz e refinou a interpretação. Essa mudança transformou-o num cantor singular, que trilhou caminho próprio, sem se deixar influenciar pelo estilo das vozes de barítono dominantes nas duas primeiras décadas do século passado, marcadas pelas presenças sobretudo de Tita Ruffo e Ricardo Stracciari. 

Esse período –final do século 19, início do século 20- foi de grande desafio para cantores de todas as tessituras. O surgimento do verismo impôs modificações. Não era possível aplicar as técnicas do bel canto oitocentesco ao repertório verista, e vice-versa. Era preciso encontrar um estilo novo de canto, capaz de satisfazer as exigências de um e outro repertório. O primeiro a entender o problema, talvez intuitivamente, e propor uma solução foi Enrico Caruso. Basta ouvir como ele cantava “Una furtiva lagrima”, por exemplo. A versão de Caruso para essa ária é a plenos pulmões, sem os maneirismos suspirosos dos tenori di grazzia, que encantavam as platéias de então. Entende-se o porquê: numa noite Caruso tinha que cantar o ingênuo Nemorino, do “Elixir do Amor”, de Donizetti; na noite seguinte estava na pele do desesperado Canio, em “I Pagliacci”, de Leoncavallo, tendo que recitar cantando ou simplesmente declamar, como no teatro de prosa. 

Carlo Galeffi foi dos primeiros a adotar a solução técnica e interpretativa de Caruso. Qual seja, o verismo também é para ser cantado e não berrado ou rugido, como fazem tantos cantores, sobretudo os barítonos. Galeffi dispensou a morbidez das sonoridades cavernosas e anasaladas que dava tão certo em Tita Ruffo e buscou o que alguns chamam de “efeito lágrima”, que caracterizava as sentidas interpretações de Caruso. Alguns chegam mesmo a apontar que o napolitano seria a grande influência presente no estilo de canto de Galeffi. Assim, um tenor teria influenciado um barítono, o que é pouco comum, mesmo não sendo aquele um tenor qualquer. Mas, lembre-se que Rosa Ponselle –outra inovadora- era chamada de “Caruso de saias”. Não foi por acaso.

Carlo Galeffi gravou entre 1911 e 1931. Seus últimos registros são, portanto, do início da gravação eletrônica. A qualidade sofrível das gravações nos dá idéia pálida de uma voz que foi sensacional, segundo o relato de quem o viu cantar. E cantou por longos anos, até 1955, um sinal da solidez de sua técnica, e poderia ter gravado em melhores condições. Edições de óperas completas, deixou apenas duas: “Andrea Chénier” (1930) e “La Traviata” (1928). 

Seu repertório era bastante extenso e incluiu algumas criações, como as estreias italianas do "Gianni Schichi", de Giacomo Puccini, ou o "Nerone", de Arrigo Boito. Mas suas grandes atuações, por maior identificação com os personagens, foi no repertório verdiano. Cantou ainda muitas zarzuelas, em muito bom espanhol e até em catalão, sendo por isso muito apreciado na Espanha. Apenas uma ele gravou em edição completa –“Las Golondrinas” (As Andorinhas”), de José María Usandizaga.
 
A razão de tão poucas gravações pode estar no fato de Galeffi não ter caído no gosto dos empresários dos EUA, sede da indústria do disco, mesmo tendo cantado com sucesso no Metropolitan. Em compensação fez sólida carreira no Scalla de Milão, principalmente no período em que o teatro foi dirigido por Arturo Toscanini, entre 1912 e 1942, e em toda a europa. Viajou mundo inteiro, cantando muito inclusive aqui no Brasil. Sua última passagem por Rio e São Paulo foi em 1938. Na Argentina, onde era muito admirado, cantou pela última vez no Colón de Buenos Aires, em 1952.

Carlo Galeffi é daqueles poucos cantores que podem ser incluídos na categoria de vozes históricas, e que por essa razão precisam ser lembradas sempre. É importante ter a paciência de ouvi-lo nos frágeis registros sonoros que deixou. Sobretudo em nossa época, quando os cantores, mesmo os bons, estão abandonando as lições deixadas pelos grandes criadores do canto lírico, e gritam quando devem cantar, ou cantam quando devem recitar cantando

Ouvir Carlo Galeffi é uma lição de canto.    
  
Henrique Marques Porto 

Carlo Galeffi - 50 anni della sua morte - Tributo 


2 comentários:

  1. Obrigada por me apresentar a essa voz tão marcante, Henrique. Andei escutando os vídeos mais antigos que você postou no YouTube, alguns já ultrapassando mil visitas, e gostei dos comentários. Quanta gente admirava esse barítono excepcional. Bela homenagem.
    Beijos.
    Helô

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  2. No YouTube devem pensar que tenho uns 700 anos! Só posto cantores antigos, alguns quase inteiramente esquecidos. Mas não é o caso de Galeffi, que ainda é admirado por muita gente. Sempre soube a respeito dele. Cresci vendo uma foto autografada do Galeffi que meu pai colocou na moldura e pendurou na parede da sala. Era como um parente ou amigo da família. Mas só consegui ouvir sua voz com o advento da internet. Quer dizer, esperei por décadas para ouvir o Galeffi!
    Um cantor sensacional e uma grande figura humana.
    beijão
    Henrique

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