sexta-feira, 23 de março de 2012


Der Rosenkavalier: 

o amor numa visão feminista
"O Cavaleiro da Rosa". Cartaz da produção de 2005 da Opera de Los Angeles
por Comba Marques Porto

O Cavaleiro da Rosa (Der Rosenkavalier) será apresentada no teatro Ópera de Viena no próximo dia 15 de abril. Eis uma ópera inteligente, ousada e bela. Isto diz pouco já que falo de Richard Strauss (1864-1949). Seria esta ópera um anômalo manifesto feminista escrito por um maestro alemão que viria a ser acusado de ter parte com os nazistas? Pode ser que sim, pois a arte dos começos do século XX não mais comportava coerências. A estréia de Der Rosenkavalier deu-se em Dresden, em 1911. Em 1915, a ópera foi apresentada pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com libreto traduzido para o italiano. Consta que, na Europa, foi bem recebida pelo público, porém rechaçada pela crítica especializada, tida como uma ópera chata, obscena e frívola. Strauss foi também acusado de anacronismo, por ter utilizado a valsa em sua partitura, cujo libreto indica ação passada na Viena do século XVIII, sendo que o ritmo somente viria aparecer em meados do século XIX. Em Der Rosenkavalier, a valsa pontua a escrita orquestral e o efeito é ótimo, no sentido de pôr a bailar toda a sensualidade que transborda desta comédia para música, tal como identificada pelo compositor. Se em Salomé(1905) e em Electra(1909), Richard Strauss enfoca a mulher pelos extremos da loucura, da vingança e da crueldade, em Der Rosenkavalier ele reflete sobre a condição feminina no contexto dos costumes vienenses do século XVIII.

 Marie Thérèse (soprano) é a princesa Werdemberg, casada com um Feldmarschall, título de nobreza conferido à época. Daí, provavelmente, o nome de Marechala igualmente dado à Marie Thérèse, cujo marido é só uma referência no libreto.

Sophie (soprano) é uma jovem de 15 anos, filha do plebeu rico Herr Von Faninal (barítono), com a qual o Barão Ochs (baixo), primo da Marechala, pretende se casar para ampliar seu patrimônio. 

Octavian (mezzo-soprano) é apresentado na cena de abertura da ópera sobre a cama da Marechala, na manhã seguinte a uma noite de amor. Na trama, a Marechala indica seu jovem amado, Octavian, para oferecer a rosa de prata em nome do Barão Ochs, um “costume local” inventado pelo compositor, pois não há registro de que este ritual ocorresse na Viena retratada na ópera.

O personagem Octavian não é bem um pajem como outros do repertório operístico escritos para a voz feminina - Oscar, do Ballo in Maschera (Verdi), Cherubino, das Bodas de Fígaro (Mozart) - inexperientes meninos nas artes do amor. Octavian, ao contrário, já se apresenta iniciado nos avançados e mais completos prazeres do amor. Richard Strauss e o poeta Hugo Hofmannsthall, autor do libreto, jamais revelaram a razão pela qual a parte do Octavian foi escrita para voz feminina. Mas O personagem Octavian tem em seu nome Jacinto (cena com Sophie no 2º ato, após a entrega da rosa). Na mitologia grega, Jacinto é um jovem a quem Apolo amava apaixonadamente. Num jogo de remessa de discos, Apolo fere mortalmente Jacinto e a cabeça dele pende para a terra como um lírio. Apolo diz que quer morrer com Jacinto, mas devido à sua imortalidade, passa a cantá-lo à sua lira: “tu te transformarás numa flor gravada com a minha saudade”. Diz o mito que onde vertido o sangue escorrido da cabeça de Jacinto nasceu um lírio da cor roxa, aquela que traz em si a dor impressa. A referência ao mito no libreto pode ser uma pista para entender a voz feminina de Octavian. Apolo e Jacinto, criaturas do mesmo sexo, deparam-se com a intervenção do destino que, pela morte, os separa. Algo semelhante acontece com Marie Thérèse e Octavian,  em suas vozes do mesmo sexo. Só que, neste caso, a separação se impõe pela paixão de Octavian por Sophie. O fato é antecipado no monólogo da Marechala no 1º ato que tem por tema reflexões dela sobre seu envelhecimento e sobre a possibilidade de que o amante, bem mais jovem, possa se apaixonar por outra mulher.

O contraste entre os personagens Barão Ochs e Octavian diz muito quanto ao olhar feminista da obra.

Sophie é a jovem filha do emergente Herr Von Faninal, rico e doente. No 1º ato, o Barão Ochs vai ao quarto da Marechala falar sobre sua pretensão de casamento com a moça e fica explícito que se trata de um casamento de interesse. O Barão pede à Marechala que indique um cavaleiro para cumprir o ritual da rosa de prata a ser ofertada à Sophie.  Marechala escolhe Octavian, pressentindo que está prestes a perdê-lo para um novo amor.

Elina Garanca: Octavian  


A cena da chegada de Octavian ao palácio de von Faninal (2º ato) representa os requintes do cavalheirismo. Sophie fica encantada pela figura do portador da rosa e diz jamais ter visto algo tão lindo em sua vida. O amor à primeira vista transborda no dueto das sopranos pontuado por intervenções dos sopros, da harpa, violinos e cellos, em clima de expectativa e intensa magia. Esta cena bem pode representar o conflito entre fantasia e realidade que acontece no coração das mulheres. O encantamento de Sophie pelo ritual da rosa não corresponde à realidade do casamento anunciado. A começar pelo noivo, figura que domina a arte do galanteio -  afinal, é um nobre - mas não se preocupa em exercê-la, na medida em que vê o casamento como um ato de negócio. Deslumbrada com Octavian, Sophie, de pronto, diz ao pai que não quer se casar com o velho Barão Ochs. Mesmo sob ameaça de ser mandada para o convento, ela não volta atrás em sua decisão.




A firmeza de Sophie é outro aspecto a ser comentado com relação à temática feminina tal como tratada nesta ópera. Tanto a Marechala quanto a Sophie são mulheres fortes e, note-se, jamais são apresentadas como rivais. Nada que nos lembre Aida X Amneris - que Verdi me perdoe a comparação.   

               Que a Marechala é uma mulher especial não resta dúvida. Compreende a vida e sabe dos percalços do amor. Sempre esteve consciente quanto à possibilidade de “perder” Octavian para uma jovem pronta a casar e quando isto acontece, simplesmente respeita, dizendo algo assim: “eu escolho amá-lo do modo correto e por isto posso amar o amor dele por outra”. Com muita classe, Marie Thérèse revela-se uma mulher perspicaz, capaz de refletir sobre os problemas da condição humana, como o da passagem do tempo. Kobbé, em seu Livro Completo da Ópera (Ed. Zahar, 1994) observa que Der Rosenkavalierpode ser comparada a uma imensa valsa de concerto. Mas não devemos esquecer a extraordinária figura humana que é o personagem da Marechala.”

               O trio final das três sopranos é um dos trechos mais lindos da criação de Strauss. As vozes são círculos prateados que se entrelaçam, como entrelaçados ali estão os destinos da Marechala, de Octavian e de Sophie. Tão bonita quanto a música é a forma civilizada, sofisticada, como as personagens se movimentam na situação. O trio soa-me como uma valsa moderna, envolvente, luxuriante. Música que lembra o rodopiar das relações amorosas, o quanto podem nos escapar pelos dedos. O trio é a celebração da espontaneidade do amor, em contraposição à sua apropriação pelas convenções sociais. Uma visão feminista, pois não?  
                
Der Rosenkavalier - Trio Final
Elisabeth Schwarzkopf, Sena Jurinac, Anneliese Rothenberger


4 comentários:

  1. Comba querida
    Você e o Henrique estão dando um show! Como é bom ler vocês. Da forma com que você descreve a trama e sua análise sob a ótica feminista deixaram-me interessadíssima em assistir a ópera. A personalidade da Marechala é apaixonante, embora eu tenha certeza de que o Henrique prefira o Otavian que está na foto :)
    Parabéns a você pelo ótimo texto.
    Beijos.

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  2. Helô,
    Grande sacada a da Comba ao lembrar a paixão de Apollo pelo infelicitado Jacinto, da mitologia grega, e relacionar este último ao Octavian. Esse personagem sempre me deu a impressão de conter os dois sexos -a figura é masculina, mas o amor dele por Sophie e seu respeito pela Marechala (de quem é amante até conhecer Sophie) são delicadamente femininos, como de índole feminina é a música que Strauss compôs para construir o Octavian. Quando a intérprete é bela como a Elina Garanca, essa dupla face do personagem fica mais evidenciada. Você vai gostar muito do "Der Rosenkavalier".
    beijão

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  3. Respostas
    1. Danadinho mesmo, Comba.
      Que ótima escolha eu fiz começando a assistir as óperas do "resgate" pelo Cavaleiro da Rosa. Melhor ainda foi vê-la depois de uma crônica tão interessante como a sua. De fato, a personalidade das mulheres é fascinante e Dame Kiri Te Kanawa ficou perfeita no papel da Marechala. Gostei muito também da voz da Sophie (Barbara Bonney).
      1985 - The Royal Opera, Covent Garden - Regência: Georg Solti.
      Elenco: Kiri Te Kanawa (Marie Thérèse), Anne Howells (Octavian), Aage Haugland (Barão Ochs), Barbara Bonney (Sophie)
      Bjs
      Helô.

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