Der
Rosenkavalier:
o amor numa visão feminista
"O Cavaleiro da Rosa". Cartaz da produção de 2005 da Opera de Los Angeles |
por Comba Marques Porto
O Cavaleiro da Rosa (Der
Rosenkavalier) será apresentada no teatro Ópera de Viena no próximo dia 15
de abril. Eis uma ópera inteligente, ousada e bela. Isto diz pouco já que falo
de Richard Strauss (1864-1949). Seria esta ópera um anômalo manifesto feminista
escrito por um maestro alemão que viria a ser acusado de ter parte com os
nazistas? Pode ser que sim, pois a arte dos começos do século XX não mais
comportava coerências. A estréia de Der Rosenkavalier
deu-se em Dresden, em 1911. Em 1915, a ópera foi apresentada pela primeira vez no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com libreto traduzido para o italiano.
Consta que, na Europa, foi bem recebida pelo público, porém rechaçada pela
crítica especializada, tida como uma ópera chata, obscena e frívola. Strauss foi
também acusado de anacronismo, por ter utilizado a valsa em sua partitura, cujo
libreto indica ação passada na Viena do século XVIII, sendo que o ritmo somente
viria aparecer em meados do século XIX. Em Der
Rosenkavalier, a valsa pontua a escrita orquestral e o efeito é ótimo, no
sentido de pôr a bailar toda a sensualidade que transborda desta comédia para música, tal como identificada
pelo compositor. Se em Salomé(1905) e
em Electra(1909), Richard Strauss enfoca
a mulher pelos extremos da loucura, da vingança e da crueldade, em Der Rosenkavalier ele reflete sobre a condição
feminina no contexto dos costumes vienenses do século XVIII.
Marie Thérèse
(soprano) é a princesa Werdemberg, casada com um Feldmarschall, título de nobreza conferido à época. Daí,
provavelmente, o nome de Marechala
igualmente dado à Marie Thérèse, cujo
marido é só uma referência no
libreto.
Sophie (soprano) é uma jovem de 15 anos, filha do plebeu rico Herr Von
Faninal (barítono), com a qual o Barão
Ochs (baixo), primo da Marechala,
pretende se casar para ampliar seu patrimônio.
Octavian (mezzo-soprano) é apresentado na cena de abertura da ópera
sobre a cama da Marechala, na manhã
seguinte a uma noite de amor. Na trama, a Marechala
indica seu jovem amado, Octavian,
para oferecer a rosa de prata em nome do Barão
Ochs, um “costume local” inventado pelo compositor, pois não há registro de
que este ritual ocorresse na Viena retratada na ópera.
O personagem Octavian não é bem um pajem como outros do
repertório operístico escritos para a voz feminina - Oscar, do Ballo in Maschera
(Verdi), Cherubino, das Bodas de Fígaro (Mozart) - inexperientes
meninos nas artes do amor. Octavian, ao
contrário, já se apresenta iniciado
nos avançados e mais completos prazeres do amor. Richard Strauss e o poeta Hugo
Hofmannsthall, autor do libreto, jamais
revelaram a razão pela qual a parte do Octavian
foi escrita para voz feminina. Mas O personagem Octavian tem em seu nome Jacinto
(cena com Sophie no 2º ato, após a
entrega da rosa). Na mitologia grega, Jacinto é um jovem a quem Apolo amava
apaixonadamente. Num jogo de remessa de discos, Apolo fere mortalmente Jacinto
e a cabeça dele pende para a terra como um lírio. Apolo diz que quer morrer com
Jacinto, mas devido à sua imortalidade, passa a cantá-lo à sua lira: “tu te transformarás numa flor gravada com a minha
saudade”. Diz o mito que onde vertido o sangue escorrido da cabeça de
Jacinto nasceu um lírio da cor roxa, aquela que traz em si a dor impressa. A
referência ao mito no libreto pode ser uma pista para entender a voz feminina de
Octavian. Apolo e Jacinto, criaturas
do mesmo sexo, deparam-se com a intervenção do destino que, pela morte, os separa.
Algo semelhante acontece com Marie
Thérèse e Octavian, em suas
vozes do mesmo sexo. Só que, neste
caso, a separação se impõe pela
paixão de Octavian por Sophie. O fato é antecipado no monólogo
da Marechala no 1º ato que tem por
tema reflexões dela sobre seu envelhecimento e sobre a possibilidade de que o
amante, bem mais jovem, possa se apaixonar por outra mulher.
O contraste entre os
personagens Barão Ochs e Octavian diz muito quanto ao olhar
feminista da obra.
Sophie é a jovem filha do emergente Herr Von Faninal, rico e
doente. No 1º ato, o Barão Ochs vai
ao quarto da Marechala falar sobre sua
pretensão de casamento com a moça e fica explícito que se trata de um casamento
de interesse. O Barão pede à Marechala
que indique um cavaleiro para cumprir o ritual da rosa de prata a ser ofertada
à Sophie. Marechala
escolhe Octavian, pressentindo que
está prestes a perdê-lo para um novo amor.
Elina Garanca: Octavian |
A cena da chegada de Octavian ao palácio de von Faninal (2º ato) representa os
requintes do cavalheirismo. Sophie fica
encantada pela figura do portador da rosa e
diz jamais ter visto algo tão lindo em sua vida. O amor à primeira vista transborda
no dueto das sopranos pontuado por intervenções dos sopros, da harpa, violinos e
cellos, em clima de expectativa e
intensa magia. Esta cena bem pode representar o conflito entre fantasia e
realidade que acontece no coração das mulheres. O encantamento de Sophie pelo ritual da rosa não
corresponde à realidade do casamento anunciado. A começar pelo noivo, figura
que domina a arte do galanteio - afinal,
é um nobre - mas não se preocupa em exercê-la, na medida em que vê o casamento
como um ato de negócio. Deslumbrada com Octavian,
Sophie, de pronto, diz ao pai que não
quer se casar com o velho Barão Ochs.
Mesmo sob ameaça de ser mandada para o convento, ela não volta atrás em sua
decisão.
A firmeza de Sophie é outro aspecto a ser comentado
com relação à temática feminina tal como tratada nesta ópera. Tanto a Marechala quanto a Sophie são mulheres fortes e, note-se, jamais são apresentadas como
rivais. Nada que nos lembre Aida X Amneris - que Verdi me perdoe a comparação.
Que
a Marechala é uma mulher especial não
resta dúvida. Compreende a vida e sabe dos percalços do amor. Sempre esteve
consciente quanto à possibilidade de “perder” Octavian para uma jovem pronta a casar e quando isto acontece, simplesmente
respeita, dizendo algo assim: “eu escolho
amá-lo do modo correto e por isto posso amar o amor dele por outra”. Com muita
classe, Marie Thérèse revela-se uma
mulher perspicaz, capaz de refletir sobre os problemas da condição humana, como
o da passagem do tempo. Kobbé, em seu Livro
Completo da Ópera (Ed. Zahar, 1994) observa que Der Rosenkavalier “pode ser
comparada a uma imensa valsa de concerto. Mas não devemos esquecer a
extraordinária figura humana que é o personagem da Marechala.”
O
trio final das três sopranos é um dos trechos mais lindos da criação de Strauss.
As vozes são círculos prateados que se entrelaçam, como entrelaçados ali estão
os destinos da Marechala, de Octavian e de Sophie. Tão bonita quanto a música é a forma civilizada,
sofisticada, como as personagens se movimentam na situação. O trio soa-me como
uma valsa moderna, envolvente, luxuriante. Música que lembra o rodopiar das
relações amorosas, o quanto podem nos escapar pelos dedos. O trio é a
celebração da espontaneidade do amor, em contraposição à sua apropriação pelas convenções
sociais. Uma visão feminista, pois não?
Der Rosenkavalier - Trio Final
Elisabeth Schwarzkopf, Sena Jurinac, Anneliese Rothenberger
Comba querida
ResponderExcluirVocê e o Henrique estão dando um show! Como é bom ler vocês. Da forma com que você descreve a trama e sua análise sob a ótica feminista deixaram-me interessadíssima em assistir a ópera. A personalidade da Marechala é apaixonante, embora eu tenha certeza de que o Henrique prefira o Otavian que está na foto :)
Parabéns a você pelo ótimo texto.
Beijos.
Helô,
ResponderExcluirGrande sacada a da Comba ao lembrar a paixão de Apollo pelo infelicitado Jacinto, da mitologia grega, e relacionar este último ao Octavian. Esse personagem sempre me deu a impressão de conter os dois sexos -a figura é masculina, mas o amor dele por Sophie e seu respeito pela Marechala (de quem é amante até conhecer Sophie) são delicadamente femininos, como de índole feminina é a música que Strauss compôs para construir o Octavian. Quando a intérprete é bela como a Elina Garanca, essa dupla face do personagem fica mais evidenciada. Você vai gostar muito do "Der Rosenkavalier".
beijão
Danadinho esse Strauss, hein?
ResponderExcluirDanadinho mesmo, Comba.
ExcluirQue ótima escolha eu fiz começando a assistir as óperas do "resgate" pelo Cavaleiro da Rosa. Melhor ainda foi vê-la depois de uma crônica tão interessante como a sua. De fato, a personalidade das mulheres é fascinante e Dame Kiri Te Kanawa ficou perfeita no papel da Marechala. Gostei muito também da voz da Sophie (Barbara Bonney).
1985 - The Royal Opera, Covent Garden - Regência: Georg Solti.
Elenco: Kiri Te Kanawa (Marie Thérèse), Anne Howells (Octavian), Aage Haugland (Barão Ochs), Barbara Bonney (Sophie)
Bjs
Helô.