A voz que vinha da alma
por Henrique Marques
Porto
Os artistas de todas
as áreas têm razão quando afirmam que para iniciar e construir suas carreiras é
preciso ter, além de vocação e talento, muito estudo, oportunidades e uma boa
dose de sorte.
A estreia de Violeta
Coelho Netto de Freitas, em 1934, no Rio de Janeiro, parece que reuniu todas
essas condições.
Violeta, filha do
escritor Coelho Netto, nascida em 30 de julho de 1909, já era conhecida do
público bem antes de estrear na ópera. Ainda adolescente, com apenas 13 anos de
idade, o nome Violeta Coelho Netto já aparecia nos jornais. Mas, não nas
editorias de cultura e arte ou nas colunas sociais e sim nas páginas
esportivas. Violeta praticava natação e participou desde muito jovem de vários
torneios e campeonatos. Nadava pelo Fluminense Futebol Clube e pelo Clube de
Regatas Guanabara. No dia 5
de março de 1922, por exemplo, ela venceu a prova dos 50 metros rasos para
meninas, numa “Festa Aquática” organizada pelo Clube de Regatas Guanabara na
enseada de Botafogo.
Quatro anos depois
voltava com destaque ao noticiário, mas agora nas colunas dedicadas às artes.
Com 17 anos, Violeta dançava e se apresentava em público. Já começara a cantar
e sua voz chamava a atenção.
Nessa época, Bidu
Sayão já fazia sucesso e recebia as atenções do poderoso e influente empresário
Walter Mocchi, com quem se casaria pouco tempo depois. Numa declaração aos
jornais, Mocchi elogiou a voz de Bidu e também a da jovem Violeta Coelho Netto,
que se apresentava apenas em clubes e saraus privados. Procurada por um
repórter do jornal “A Noite”, Violeta reagiu com surpreendente maturidade em
relação aos elogios de Walter Mocchi.
-Não, não fale em
minha voz. Ela não está suficientemente educada sob o ponto de vista
artístico.
Não estava, mas logo
estaria. Nos anos seguintes continuou a nadar e a dançar. Também participava de
recitais poéticos. Mas, em meio a tanta atividade, não descuidou de se
aperfeiçoar no canto, tendo aulas com a professora Hilda Brizzi. Apresentava-se
para o público com frequência e até participava de transmissões radiofônicas.
No repertório, canções e árias de óperas.
Assim foi até os
primeiros anos da década de 1930 quando conheceu aqueles que seriam os
responsáveis mais diretos por revelar ao grande público a sensibilidade
musical, o talento e sobretudo a bela voz de Violeta para a ópera. Passou a ter
aulas de canto com Gabriela Besanzoni e conheceu o crítico musical Henrique
Marques Porto (meu pai), um homem visceralmente apaixonado pela ópera e dotado
de agudo senso observador. Possuía a rara capacidade de reconhecer facilmente
uma voz de qualidade, ainda que em formação. Seriam amigos por toda a vida.
Quando encerrou a carreira, Violeta deu-lhe uma foto onde escreveu: "A Henrique Marques Porto, o meu descobridor" -sublinhado por ela.
Violeta já estava com
a voz formada, mas faltava-lhe a experiência decisiva para qualquer artista
-enfrentar o palco numa ópera completa e se submeter ao julgamento do público,
que é quem tem a palavra final sobre o destino de uma carreira.
Violeta hesitava.
Casara com Jorge Amaro de Freitas, o primeiro filho nascera, o segundo
estava a caminho. Seu extremo senso prático indicava que a vida real e as
responsabilidades familiares talvez não combinassem muito com a carreira de
cantora lírica e com o ambiente, às vezes incerto, dos bastidores dos teatros.
A arte e a vida precisavam chegar a um acordo.
A voz estava pronta.
Gabriela e Marques Porto a estimulavam. Dessa vez ela não poderia alegar que
faltava-lhe “suficiente educação
artística”, como dissera aos dezessete anos para repelir a curiosidade de
um repórter.
O acordo entre a vida
e a arte veio em 1934. Ano após ano era cada vez maior o número de cantores
brasileiros que participavam das temporadas líricas no Theatro Municipal e em outros
teatros e espaços, em grande parte graças ao trabalho de Gabriela Besanzoni,
que transformara seu palacete no Parque Lage em verdadeiro centro de formação
de cantores.
Naquele ano, Marques
Porto era também diretor artístico do Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca,
zona norte do Rio de Janeiro. Com apoio da direção do Theatro Municipal decidiu
realizar no tradicional clube uma pequena temporada lírica. Reuniu um grupo de
cantores composto por profissionais, estreantes e alguns diletantes e decidiu o
repertório: “Cavaleria Rusticana” e “I Pagliacci”; “Barbeiro de Sevilha" e
–suprema ousadia- uma grande produção de “Aida”, ao ar livre, num bosque que
existia ao lado do Clube.
Violeta Coelho Netto
de Freitas estava no elenco dessa temporada lírica, e todos reconheciam que era
o grande destaque.
Mas, por muito pouco
esse acordo não aconteceu. Dois dias depois de sua estreia, uma fatalidade. No
dia 28 de novembro faleceu seu pai, o festejado e conhecido escritor Coelho
Netto. Violeta tinha na figura do pai um incentivador de seus talentos,
inclusive para o canto. Se o destino antecipasse a partida de Coelho Netto, é
certo que Violeta não estrearia. Talvez até desistisse da carreira que ganhara
contornos claros com o sucesso na "Cavaleria Rusticana". Mas, os
deuses da música são sábios.
A partir dessa
apresentação o caminho estava aberto para a carreira. Em 1937, quando Gabriela
Besanzoni era a Diretora Artística do Theatro Municipal, foi realizada a
primeira temporada lírica exclusivamente com cantores nacionais. Chamada por
Gabriela, Violeta se encontrou então com a personagem que marcaria a sua
trajetória em nossos palcos –a Cio-Cio-San, de
“Madame Butterfly”, de Puccini. Voz e físico perfeitos para o papel. Violeta
era mignon e graciosa, com expressivos olhos
negros levemente amendoados. A voz era de timbre lírico mas robusta, o que lhe
permitia enfrentar com facilidade as acentuações dramáticas da partitura,
sobretudo a partir do segundo ato da ópera.
Seu fascinante
desempenho em Butterfly logo atraiu o interesse de empresários
e teatros de outros países, principalmente dos Estados Unidos. Não faltaram
convites para que se apresentasse no exterior. Violeta recusou todos. Não fez
carreira internacional porque não quis. Abriu exceções para cantar em Buenos
Aires no início dos anos 1940 e para o concerto no Carnegie Hall, em
1947.
Nos anos seguintes
firmou-se como a mais importante e respeitada cantora lírica brasileira, e
ajudava na formação de jovens colegas, como fez com Clara Marise nos anos 50 e,
na década seguinte, com Maria Helena Buzelin. Violeta era uma unanimidade. Seu
nome era regularmente incorporado aos elencos estrangeiros que, ano após ano,
vinham ao Brasil para as temporadas internacionais de ópera. Atuou sob a
regência de grandes maestros e contracenou com muitos dos melhores cantores de
seu tempo. Para ficar em dois exemplos, foi Mimi,
em "La Bohéme", com Ferruccio Tagliavini, ou a Margarida, do
"Mefistofele" de Boito, com o baixo Giuglio Neri. Nunca perdeu a
humildade que a caracterizava; jamais cultivou as vaidades tão comuns no meio
teatral.
Encantado com suas
performances em “Madame Butterfly”, o embaixador do Japão no Brasil
presenteou-a com um legítimo quimono japonês –peça de finíssimo acabamento que
Violeta usou até o fim da carreira. O figurino foi doado por ela ao Museu dos
Teatros do Rio de Janeiro. Ainda deve estar lá, se o descuido não o
levou.
Violeta despediu-se
dos palcos em outubro de 1959, quando cantou pela última vez “Madame
Butterfly”, com o tenor Alfredo Colósimo, o barítono Sylvio Vieira e a mezzo
Carmem Pimentel. Retirou-se sem muito alarde. Foi uma decisão
consciente e segura. Poderia ter seguido com a carreira por mais alguns anos,
mas preferiu legar ao seu público a lembrança de uma voz íntegra e limpa, não
corroída pelo tempo. Desejava
sobretudo dedicar-se inteiramente à família. Longe dos palcos, continuou a
cantar por muitos anos, mas apenas em casa, para os amigos e familiares, ou em
missas e ofícios religiosos.
Do mundo se despediu
em 1997, com o indicador entre os lábios, como quem pede silêncio. A imprensa
da época sequer dedicou-lhe uma resumida e formal nota fúnebre. Merecia
manchete e página inteira.
Quem escreve
testemunhou as duas despedidas –no Theatro Municipal, ainda criança, em 1959, e
em 1997 na missa por sua alma, numa Igreja no bairro do Jardim Botânico. Um
coro modesto, da própria igreja, cantou de forma comovente o “Coro a Bocca
Chiusa”, da ópera que marcou a carreira de Violeta Coelho Netto de Freitas. Não
poderia ser outra a música.
Em 1938, numa pequena
crônica que escreveu para o jornal “A Noite”, Violeta assinalou:
“E que mundos se
descobrem diante da imaginação exaltada por um canto que vem dos recônditos da
alma de quem canta!”
Fontes:
1) Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional
2) Arquivos pessoais do autor.
Coro a Bocca Chiusa - "Madame Butterfly"
Vozes para a Paz - Maestro Miguel Roa
Belíssimo artigo! Parabéns Henrique Marques Porto.
ResponderExcluirObrigado, Marcos
ExcluirTenho muita admiração e uma lembrança muito carinhosa de Dona Violeta. Jamais esquecerei sua presença comovida na missa de sétimo dia do meu pai. Encontrei-a quando acabou a missa. Me olhou com cara de último ato de "La Bohéme" e abriu os braços dizendo: "-Ah, meu filho..."
Violeta era assim.
Abração
Henrique
Henrique, agradeço-lhe pelo seu carinho pela minha avó Violeta e por nos colocar mais perto dela através dos seus artigos. Fiquei realmente muito emocionada, principalmente ao ouvir esta linda música que ela várias vezes cantou quando me fazia dormir. Gratidão do fundo da minha alma.
ResponderExcluirRenata Kurtz de Freitas
Renata,
ExcluirTenho enorme carinho e respeito por Violeta. E a chamo assim, pelo nome, porque cresci vendo nas paredes da sala de nossa casa, em lugar de destaque, alguns retratos dela. Além de grandíssima cantora lírica, era pessoa extremamente amável e afetuosa.
Entre os objetivos do Ópera Sempre está precisamente este: destacar os artistas nacionais e lembrar aqueles esquecidos por um país que ainda não aprendeu a cultivar a própria história e figuras humanas do porte de Violeta Coelho Netto de Freitas.
Muito obrigado pelo seu comentário.
Abraços
Henrique
Henrique, não t conheço, mas adoraria t conhecer. Sou uma das netas dela e fiquei profundamente emocionada c o seu artigo, só aumentou as saudades q sinto da minha queridíssima avó q amo tanto!
ResponderExcluirAdoraria saber mais histórias sobre ela! Seria possível trocarmos e-mails?
Muito obrigada por essa linda homenagem!
Juliana Coelho Netto.
Juliana,
ExcluirAcredite: não foi fácil pesquisar sobre Violeta. Sequer uma foto dela existia na web. Agora já tem mais de uma. Também deu trabalho reunir os registros sobre sua estreia data exata, elenco etc. Pena não haver fotos, mas tenho certeza que esses registros existiam. O Tijuca Tênis Clube não guardou nada, infelizmente. Mas foi fácil escrever. Muitas informações já tinha de memória, faltavam apenas os registros dos fatos. E bastou lembrar de Violeta para o texto fluir.
Fico feliz em poder contatá-la. Vou enviar mensagem para você pelo Facebook
Grande abraço
Henrique
Henrique, junto-me à Renata e à Juliana, para dizer de minha emoção ao ler seu artigo. Como as netas, tenho cá motivos de ordem afetiva para compartilhar da homenagem que você presta à Violeta Coelho Neto de Freitas. De certa forma, sou filha de Violeta. Sinto-me filha de Violeta. Quantas não foram as récitas de Madama Butterfy, em que a tive como mãe, tanto na alegria da espera da chegada de Pinkerton, quanto na tristeza do trágico desfecho - a inesquecível despedida do final da ópera que nos envolvia num só sentimento criado por uma das mais lindas passagens musicais de Puccini.
ResponderExcluirCom Violeta, com certeza aprendi a viver intensamente a interpretação teatral. Eu era bem pequena e mesmo assim me entreguei ao papel. Costumo até dizer que não sei como sobrevivi à perda continuada de "minha mãe" por longos anos, algo tão fortemente que vivido numa idade em que não se sabe bem separar o real da fantasia. Acho que algumas marcas ficaram. A maior parte delas, com certeza, para o meu bem. O maior bem o amor à música, à ópera; o orgulho de minha precoce e curta carreira artística na ópera.
Se o quimono dela entregue à administração do TM pode se ter perdido, o meu quimono de puro cetim está intacto entre meus guardados - uma lembrança do feito artístico dela também, não só meu. Éramos pura integração em cena.
Lembro-me que já quase ao final da década de 80, de meu escritório de advocacia, liguei para ela. E foi o mesmo carinho, a mesma emoção que nos mobilizava em cena. Ela perguntou o que eu fizera de minha arte... Perdeu-se, respondi. Ela lamentou e disse que eu era "uma artista nata" - assim mesmo com tais palavras. Jamais esquecerei desse nosso último encontro, de suas palavras carinhosas, do belo timbre de sua voz que ainda ecoava, apesar dos anos passados.
Obrigada, Henrique, por me ter devolvido recordação tão preciosa.
Beijos.
Comba
Henrique e Comba,
ResponderExcluirPelo que eu me lembro, minha avó comentava que tinha doado o seu quimono para o Museu da Imagem e do Som -RJ. Quando fui até lá, o museu estava fechado para obras e não pude certificar-me.
Bjs,
Renata
Renata,
ExcluirO quimono usado por Violeta era figurino de finíssimo acabamento, peça autêntica, doada pelo Embaixador (ou Consul no Rio) do Japão, que se encantou com a interpretação de Violeta em "Madame Butterfly". Ela doou o figurino ao Museu dos Teatros do Rio de Janeiro, criado por Stella Werneck, que funcionava no Salão Assyrio. Foi lá que o vi pela última vez, na década de setenta, pouco antes da desmontagem e transferência do Museu. Era uma das peças de destaque e ficava logo na entrada. O Museu dos Teatros (ou o que sobrou dele) voltou a ser administrado pelo Theatro Municipal no início de 2014.
Abraço,
Henrique Marques Porto