quinta-feira, 4 de julho de 2013

Violeta Coelho Netto de Freitas




A voz que vinha da alma


por Henrique Marques Porto

Os artistas de todas as áreas têm razão quando afirmam que para iniciar e construir suas carreiras é preciso ter, além de vocação e talento, muito estudo, oportunidades e uma boa dose de sorte.

A estreia de Violeta Coelho Netto de Freitas, em 1934, no Rio de Janeiro, parece que reuniu todas essas condições. 

Violeta, filha do escritor Coelho Netto, nascida em 30 de julho de 1909, já era conhecida do público bem antes de estrear na ópera. Ainda adolescente, com apenas 13 anos de idade, o nome Violeta Coelho Netto já aparecia nos jornais. Mas, não nas editorias de cultura e arte ou nas colunas sociais e sim nas páginas esportivas. Violeta praticava natação e participou desde muito jovem de vários torneios e campeonatos. Nadava pelo Fluminense Futebol Clube e pelo Clube de Regatas Guanabara.  No dia 5 de março de 1922, por exemplo, ela venceu a prova dos 50 metros rasos para meninas, numa “Festa Aquática” organizada pelo Clube de Regatas Guanabara na enseada de Botafogo. 

Quatro anos depois voltava com destaque ao noticiário, mas agora nas colunas dedicadas às artes. Com 17 anos, Violeta dançava e se apresentava em público. Já começara a cantar e sua voz chamava a atenção. 


Nessa época, Bidu Sayão já fazia sucesso e recebia as atenções do poderoso e influente empresário Walter Mocchi, com quem se casaria pouco tempo depois. Numa declaração aos jornais, Mocchi elogiou a voz de Bidu e também a da jovem Violeta Coelho Netto, que se apresentava apenas em clubes e saraus privados. Procurada por um repórter do jornal “A Noite”, Violeta reagiu com surpreendente maturidade em relação aos elogios de Walter Mocchi. 

-Não, não fale em minha voz. Ela não está suficientemente educada sob o ponto de vista artístico. 

Não estava, mas logo estaria. Nos anos seguintes continuou a nadar e a dançar. Também participava de recitais poéticos. Mas, em meio a tanta atividade, não descuidou de se aperfeiçoar no canto, tendo aulas com a professora Hilda Brizzi. Apresentava-se para o público com frequência e até participava de transmissões radiofônicas. No repertório, canções e árias de óperas. 

Assim foi até os primeiros anos da década de 1930 quando conheceu aqueles que seriam os responsáveis mais diretos por revelar ao grande público a sensibilidade musical, o talento e sobretudo a bela voz de Violeta para a ópera. Passou a ter aulas de canto com Gabriela Besanzoni e conheceu o crítico musical Henrique Marques Porto (meu pai), um homem visceralmente apaixonado pela ópera e dotado de agudo senso observador. Possuía a rara capacidade de reconhecer facilmente uma voz de qualidade, ainda que em formação. Seriam amigos por toda a vida. Quando encerrou a carreira, Violeta deu-lhe uma foto onde escreveu: "A Henrique Marques Porto, o meu descobridor" -sublinhado por ela.  

Violeta já estava com a voz formada, mas faltava-lhe a experiência decisiva para qualquer artista -enfrentar o palco numa ópera completa e se submeter ao julgamento do público, que é quem tem a palavra final sobre o destino de uma carreira. 

Violeta hesitava. Casara com Jorge Amaro de Freitas, o primeiro filho nascera, o segundo estava a caminho. Seu extremo senso prático indicava que a vida real e as responsabilidades familiares talvez não combinassem muito com a carreira de cantora lírica e com o ambiente, às vezes incerto, dos bastidores dos teatros. A arte e a vida precisavam chegar a um acordo.

A voz estava pronta. Gabriela e Marques Porto a estimulavam. Dessa vez ela não poderia alegar que faltava-lhe “suficiente educação artística”, como dissera aos dezessete anos para repelir a curiosidade de um repórter. 

O acordo entre a vida e a arte veio em 1934. Ano após ano era cada vez maior o número de cantores brasileiros que participavam das temporadas líricas no Theatro Municipal e em outros teatros e espaços, em grande parte graças ao trabalho de Gabriela Besanzoni, que transformara seu palacete no Parque Lage em verdadeiro centro de formação de cantores.   

Naquele ano, Marques Porto era também diretor artístico do Tijuca Tênis Clube, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Com apoio da direção do Theatro Municipal decidiu realizar no tradicional clube uma pequena temporada lírica. Reuniu um grupo de cantores composto por profissionais, estreantes e alguns diletantes e decidiu o repertório: “Cavaleria Rusticana” e “I Pagliacci”; “Barbeiro de Sevilha" e –suprema ousadia- uma grande produção de “Aida”, ao ar livre, num bosque que existia ao lado do Clube. 

Violeta Coelho Netto de Freitas estava no elenco dessa temporada lírica, e todos reconheciam que era o grande destaque. 

Estreou cantando a Santuzza, na “Cavaleria Rusticana”, de Pietro Mascagni, no dia 26 de novembro de 1934. Com ela atuaram o tenor Machado Del Negri e o barítono Luciano Cavalcanti nos papéis principais. Orquestra e Coro do Theatro Municipal, sob a regência do maestro Luiz Belobonno. Violeta obteve um enorme sucesso, que repercutiu no meio musical carioca. Estava feito o acordo com a arte. 



Mas, por muito pouco esse acordo não aconteceu. Dois dias depois de sua estreia, uma fatalidade. No dia 28 de novembro faleceu seu pai, o festejado e conhecido escritor Coelho Netto. Violeta tinha na figura do pai um incentivador de seus talentos, inclusive para o canto. Se o destino antecipasse a partida de Coelho Netto, é certo que Violeta não estrearia. Talvez até desistisse da carreira que ganhara contornos claros com o sucesso na "Cavaleria Rusticana". Mas, os deuses da música são sábios.    

A partir dessa apresentação o caminho estava aberto para a carreira. Em 1937, quando Gabriela Besanzoni era a Diretora Artística do Theatro Municipal, foi realizada a primeira temporada lírica exclusivamente com cantores nacionais. Chamada por Gabriela, Violeta se encontrou então com a personagem que marcaria a sua trajetória em nossos palcos –a Cio-Cio-San, de “Madame Butterfly”, de Puccini. Voz e físico perfeitos para o papel. Violeta era mignon e graciosa, com expressivos olhos negros levemente amendoados. A voz era de timbre lírico mas robusta, o que lhe permitia enfrentar com facilidade as acentuações dramáticas da partitura, sobretudo a partir do segundo ato da ópera. 

Seu fascinante desempenho em Butterfly logo atraiu o interesse de empresários e teatros de outros países, principalmente dos Estados Unidos. Não faltaram convites para que se apresentasse no exterior. Violeta recusou todos. Não fez carreira internacional porque não quis. Abriu exceções para cantar em Buenos Aires no início dos anos 1940 e para o concerto no Carnegie Hall, em 1947. 

Nos anos seguintes firmou-se como a mais importante e respeitada cantora lírica brasileira, e ajudava na formação de jovens colegas, como fez com Clara Marise nos anos 50 e, na década seguinte, com Maria Helena Buzelin. Violeta era uma unanimidade. Seu nome era regularmente incorporado aos elencos estrangeiros que, ano após ano, vinham ao Brasil para as temporadas internacionais de ópera. Atuou sob a regência de grandes maestros e contracenou com muitos dos melhores cantores de seu tempo. Para ficar em dois exemplos, foi Mimi, em "La Bohéme", com Ferruccio Tagliavini, ou a Margarida, do "Mefistofele" de Boito, com o baixo Giuglio Neri. Nunca perdeu a humildade que a caracterizava; jamais cultivou as vaidades tão comuns no meio teatral.

Encantado com suas performances em “Madame Butterfly”, o embaixador do Japão no Brasil presenteou-a com um legítimo quimono japonês –peça de finíssimo acabamento que Violeta usou até o fim da carreira. O figurino foi doado por ela ao Museu dos Teatros do Rio de Janeiro. Ainda deve estar lá, se o descuido não o levou. 

Violeta despediu-se dos palcos em outubro de 1959, quando cantou pela última vez “Madame Butterfly”, com o tenor Alfredo Colósimo, o barítono Sylvio Vieira e a mezzo Carmem Pimentel. Retirou-se sem muito alarde. Foi uma decisão consciente e segura. Poderia ter seguido com a carreira por mais alguns anos, mas preferiu legar ao seu público a lembrança de uma voz íntegra e limpa, não corroída pelo tempo. Desejava sobretudo dedicar-se inteiramente à família. Longe dos palcos, continuou a cantar por muitos anos, mas apenas em casa, para os amigos e familiares, ou em missas e ofícios religiosos. 

Do mundo se despediu em 1997, com o indicador entre os lábios, como quem pede silêncio. A imprensa da época sequer dedicou-lhe uma resumida e formal nota fúnebre. Merecia manchete e página inteira. 

Quem escreve testemunhou as duas despedidas –no Theatro Municipal, ainda criança, em 1959, e em 1997 na missa por sua alma, numa Igreja no bairro do Jardim Botânico. Um coro modesto, da própria igreja, cantou de forma comovente o “Coro a Bocca Chiusa”, da ópera que marcou a carreira de Violeta Coelho Netto de Freitas. Não poderia ser outra a música.   

Em 1938, numa pequena crônica que escreveu para o jornal “A Noite”, Violeta assinalou:

“E que mundos se descobrem diante da imaginação exaltada por um canto que vem dos recônditos da alma de quem canta!” 

A frase ecoa como uma definição pessoal. Violeta Coelho Netto de Freitas, o mais longo nome artístico da história do canto –seu nome inteiro, sem nada tirar nem pôr- cantava com a alma.  

Fontes:
1) Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional
2) Arquivos pessoais do autor.

 
Coro a Bocca Chiusa - "Madame Butterfly"
Vozes para a Paz - Maestro Miguel Roa

9 comentários:

  1. Belíssimo artigo! Parabéns Henrique Marques Porto.

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    1. Obrigado, Marcos
      Tenho muita admiração e uma lembrança muito carinhosa de Dona Violeta. Jamais esquecerei sua presença comovida na missa de sétimo dia do meu pai. Encontrei-a quando acabou a missa. Me olhou com cara de último ato de "La Bohéme" e abriu os braços dizendo: "-Ah, meu filho..."
      Violeta era assim.

      Abração
      Henrique

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  2. Henrique, agradeço-lhe pelo seu carinho pela minha avó Violeta e por nos colocar mais perto dela através dos seus artigos. Fiquei realmente muito emocionada, principalmente ao ouvir esta linda música que ela várias vezes cantou quando me fazia dormir. Gratidão do fundo da minha alma.
    Renata Kurtz de Freitas

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    1. Renata,
      Tenho enorme carinho e respeito por Violeta. E a chamo assim, pelo nome, porque cresci vendo nas paredes da sala de nossa casa, em lugar de destaque, alguns retratos dela. Além de grandíssima cantora lírica, era pessoa extremamente amável e afetuosa.
      Entre os objetivos do Ópera Sempre está precisamente este: destacar os artistas nacionais e lembrar aqueles esquecidos por um país que ainda não aprendeu a cultivar a própria história e figuras humanas do porte de Violeta Coelho Netto de Freitas.
      Muito obrigado pelo seu comentário.
      Abraços
      Henrique

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  3. Henrique, não t conheço, mas adoraria t conhecer. Sou uma das netas dela e fiquei profundamente emocionada c o seu artigo, só aumentou as saudades q sinto da minha queridíssima avó q amo tanto!
    Adoraria saber mais histórias sobre ela! Seria possível trocarmos e-mails?
    Muito obrigada por essa linda homenagem!
    Juliana Coelho Netto.

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    1. Juliana,
      Acredite: não foi fácil pesquisar sobre Violeta. Sequer uma foto dela existia na web. Agora já tem mais de uma. Também deu trabalho reunir os registros sobre sua estreia data exata, elenco etc. Pena não haver fotos, mas tenho certeza que esses registros existiam. O Tijuca Tênis Clube não guardou nada, infelizmente. Mas foi fácil escrever. Muitas informações já tinha de memória, faltavam apenas os registros dos fatos. E bastou lembrar de Violeta para o texto fluir.
      Fico feliz em poder contatá-la. Vou enviar mensagem para você pelo Facebook
      Grande abraço
      Henrique

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  4. Henrique, junto-me à Renata e à Juliana, para dizer de minha emoção ao ler seu artigo. Como as netas, tenho cá motivos de ordem afetiva para compartilhar da homenagem que você presta à Violeta Coelho Neto de Freitas. De certa forma, sou filha de Violeta. Sinto-me filha de Violeta. Quantas não foram as récitas de Madama Butterfy, em que a tive como mãe, tanto na alegria da espera da chegada de Pinkerton, quanto na tristeza do trágico desfecho - a inesquecível despedida do final da ópera que nos envolvia num só sentimento criado por uma das mais lindas passagens musicais de Puccini.

    Com Violeta, com certeza aprendi a viver intensamente a interpretação teatral. Eu era bem pequena e mesmo assim me entreguei ao papel. Costumo até dizer que não sei como sobrevivi à perda continuada de "minha mãe" por longos anos, algo tão fortemente que vivido numa idade em que não se sabe bem separar o real da fantasia. Acho que algumas marcas ficaram. A maior parte delas, com certeza, para o meu bem. O maior bem o amor à música, à ópera; o orgulho de minha precoce e curta carreira artística na ópera.

    Se o quimono dela entregue à administração do TM pode se ter perdido, o meu quimono de puro cetim está intacto entre meus guardados - uma lembrança do feito artístico dela também, não só meu. Éramos pura integração em cena.

    Lembro-me que já quase ao final da década de 80, de meu escritório de advocacia, liguei para ela. E foi o mesmo carinho, a mesma emoção que nos mobilizava em cena. Ela perguntou o que eu fizera de minha arte... Perdeu-se, respondi. Ela lamentou e disse que eu era "uma artista nata" - assim mesmo com tais palavras. Jamais esquecerei desse nosso último encontro, de suas palavras carinhosas, do belo timbre de sua voz que ainda ecoava, apesar dos anos passados.

    Obrigada, Henrique, por me ter devolvido recordação tão preciosa.

    Beijos.
    Comba

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  5. Henrique e Comba,

    Pelo que eu me lembro, minha avó comentava que tinha doado o seu quimono para o Museu da Imagem e do Som -RJ. Quando fui até lá, o museu estava fechado para obras e não pude certificar-me.

    Bjs,
    Renata

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    1. Renata,
      O quimono usado por Violeta era figurino de finíssimo acabamento, peça autêntica, doada pelo Embaixador (ou Consul no Rio) do Japão, que se encantou com a interpretação de Violeta em "Madame Butterfly". Ela doou o figurino ao Museu dos Teatros do Rio de Janeiro, criado por Stella Werneck, que funcionava no Salão Assyrio. Foi lá que o vi pela última vez, na década de setenta, pouco antes da desmontagem e transferência do Museu. Era uma das peças de destaque e ficava logo na entrada. O Museu dos Teatros (ou o que sobrou dele) voltou a ser administrado pelo Theatro Municipal no início de 2014.
      Abraço,
      Henrique Marques Porto

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