quinta-feira, 2 de maio de 2013

Mediocridade e indigência cultural na Cidade do Rio de Janeiro






por Henrique Marques Porto

Está em curso no Rio de Janeiro, a cidade onde nasceu e viveu Heitor Villa-Lobos, uma deliberada e bem orquestrada campanha para institucionalizar na Capital a mais infame mediocridade cultural, que atingirá diretamente a produção e a difusão da música de qualidade, seja a chamada “clássica”, seja a chamada “popular” –classificações que o autor usa entre aspas por entender que são inapropriadas. 
   
O tom pode parecer alarmista ao leitor, mas não é. Apenas expressa os fatos recentes e a crescente desertificação cultural do Rio de Janeiro no que toca à música. 

Nas vésperas do feriado do Dia do Trabalhador, em meio ao barulho do ambiente e à cacofonia urbana, o Prefeito do Rio, Eduardo Paes, decidiu vocalizar umas tantas besteiras e mostrou os dentes para a Orquestra Sinfônica Brasileira, desmentindo o ditado “cão que ladra, não morde”. Paes falou muito e mordeu com ferocidade. Falou inclusive sobre o que não conhece, e até sobre o que não é da sua conta.
  

Anunciou a suspensão de um financiamento anual à OSB, de oito milhões de reais anuais, sob o pretexto de que “o dinheiro público tem que ser investido em coisas que de fato deem projeção à cidade” (O Globo, 01/05). Que  leitor reflita um instante sobre essa afirmação do prefeito.

Criticou a gestão da orquestra. Um destempero. Paes não tem autoridade nem qualificações pessoais para falar sobre o que é uma boa ou má gestão. E concluiu com um disparate absurdo: o Rio de Janeiro, segundo ele, precisa de uma só orquestra. Não mais do que uma. A mente tacanha do antigo “prefeitinho”, que acaba de comprovar não ter evoluído um milímetro, sugeriu então a fusão da OSB com a Petrobras Sinfônica, que leva o nome da estatal controlada pela União e por ela é financiada. 

O iluminado Paes desconhece que teria que promover outras fusões, tão ou mais complicadas. Para informação do Prefeito, segue abaixo uma lista básica -naturalmente incompleta, dado o universo musical carioca- das orquestras e conjuntos musicais do Rio de Janeiro.

Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, com três conjuntos: OSB; OSB Ópera & Repertório; e OSB Jovem (esta atualmente sem recursos para funcionar).

Orquestra Petrobras Sinfônica, com mais um conjunto, a Sinfônica Jovem.

Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal. Apesar do nome, é Estadual, não recebe um tostão da Prefeitura, mas deveria ter também financiamento Municipal, fossem atentos e sérios os gestores do Município do Rio.

Orquestra Filarmônica do Rio de Janeiro. Atividades paralisadas por falta de patrocínio. No início de 2013, o maestro Florentino Dias, seu fundador e titular, lançou uma campanha para obter financiamentos. A resposta foi baixa e a Prefeitura não se pronunciou.

Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Funcionamento precário e eventual.

Orquestra Sinfônica da Universidade Federal Fluminense (UFF). Antiga “Orquestra Nacional da Rádio MEC”. Atividade precária e eventual.

Orquestra Jovem do Conservatório Brasileiro de Música. Está em atividade e possui agenda de concertos para 2013, apesar de ignorada pela Prefeitura e da extrema falta de patrocínio. 

Associação de Canto Coral do Rio de Janeiro. Fundada pela ilustre e saudosa Maestrina Cleofe Person de Mattos, tem longa tradição na Cidade. Atualmente é presidida por Fernando Bicudo, que luta por patrocínios.

Como se vê, o Prefeito Paes teve um surto público de constrangedora ignorância e má informação, inadmissível para quem tem a responsabilidade de administrar uma grande Cidade que tem pela frente importantes eventos internacionais. O ilustríssimo sequer olhou em volta antes de disparar suas diatribes. 

A serem confirmadas as intenções do iluminado Paes, ficaremos assim: a música de concerto e de câmara, o trabalho dos nossos músicos solistas, o canto coral, a ópera, o balé e tudo o mais que se enquadre no que o vulgo chama de “música clássica” ficará fora da agenda e das rubricas dos orçamentos públicos municipais. Esta é a notícia mais recente divulgada pelo “Piranhão”, nome com o qual a população carioca jocosamente batizou o edifício sede da Prefeitura do Rio, construído onde antes funcionava a antiga “zona do baixo meretrício”. Faz sentido. “Piranhão” hoje, mais do que nunca!

As afirmações do Prefeito, corroboradas e enfatizadas por seu Secretário de Cultura, um certo Sá Leitão, representam uma ameaça real para a música e para milhares de músicos cariocas. Pode resultar na perda de empregos e de fontes de sobrevivência pessoal e familiar. 

Chega a ser irônico que dias antes do assanhamento verbal de Eduardo Paes, a Presidenta da República, Dilma Housseff –de quem o prefeito é aliado político- tenha recebido em Brasília os maestros Gustavo Dudamel e Jose Antonio Abreu, da Venezuela. Em pauta estava a colaboração entre os dois países para desenvolver no Brasil, em âmbito nacional, programa semelhante ao “El Sistema”, que há mais de trinta anos produz cidadania na Venezuela através do ensino de música. A julgar pelas declarações do Prefeito, o Rio de Janeiro –na contramão- planeja produzir a miséria musical e social. 

Eduardo Paes ameaça não apenas os músicos das orquestras sinfônicas, os solistas e aqueles dos conjuntos de câmara com suas diversas formações –duos, trios, quartetos etc- mas também os músicos que se dedicam aos gêneros criados pela cultura carioca desde o século XIX –o Choro, o Samba genuíno e suas derivações. Precisamente as fontes que nutriram a genialidade de Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Pixinguinha, Ary Barroso, Tom Jobim e tantos outros. Os músicos que atuam nesses gêneros, ditos “populares”, também estão ameaçados, tão ou mais do que seus colegas da chamada “música clássica”. 

É bom repetir e alertar. A intenção do Prefeito Paes parece clara: institucionalizar a mediocridade e a indigência cultural na Cidade do Rio de Janeiro.

É mentira grosseira a alegação de que se trata de falta de recursos e/ou necessidade de investir em áreas supostamente prioritárias, como se a Cultura não fosse uma prioridade. A mentira é simples de ser desmontada. De janeiro a abril de 2013 a Prefeitura do Rio tirou dos cofres públicos a bagatela de 50 milhões de reais para financiar eventos diversos. Só com o Carnaval foram gastos 35 milhões (incluindo 12 milhões para auxiliar as 12 principais Escolas de Samba; R$ 1 milhão para cada). Outros 7 milhões foram gastos com o show único de Steve Wonder na praia de Copacabana; 3 milhões e uns quebrados foram investidos no evento “Viradão Carioca”; 5 milhões estão reservados para financiar o evento religioso “Jornada Mundial da Juventude”. Esses são números incompletos, extraídos após breve levantamento. Os gastos devem ser bem mais maiores. Ainda não se sabe, por exemplo, quanto a Prefeitura vai investir na próxima edição do “Rock in Rio” –aquela sequência de shows que tem muito de tudo e pouco rock.

Oito milhões anuais para a OSB é demasiado para os cofres da Prefeitura –diz Eduardo Paes. As prioridades do olímpico síndico da Cidade são evidentemente outras. Fosse ele um pouco mais instruído, saberia que esses recursos são até modestos para uma instituição que abriga três conjuntos sinfônicos. 

Não se trata aqui de defender a OSB em particular. Seus músicos e administradores já demonstraram que podem tratar de seus problemas, ainda que sejam de difícil solução.

Agora trata-se de defender a música e a atividade musical do Rio! Os músicos do Rio de Janeiro devem se unir para defender os seus interesses e os interesses da população, acima de eventuais diferenças de opinião sobre uma ou outra questão, ou sobre este ou aquele regente ou personalidade, dando provas de maturidade profissional e consciência artística.

A Cidade onde nasceu e viveu Heitor Villa-Lobos precisa ser musicalmente preservada e salva da política de terra arrasada que o Prefeito Eduardo Paes quer impor. A Cultura Musical do Rio de Janeiro ainda estará viva quando os piratas de ocasião já estiverem com as carreiras encerradas e fora da vida pública. Quando isso acontecer –e é certo que aconteça- os músicos estarão vivos e atuantes, fazendo soar seus instrumentos.  


3 comentários:

  1. Eduardo Paes está de parabéns! Nunca pensei que uma pessoa pudesse ser tão dotada de ignorância, burrice e pilantragem.

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  2. Esqueceu de mencionar os 4 milhões de reais gastos com a reforma da quadra da Portela e, provavelmente, a mesma quantia para a quadra da União da Ilha.

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  3. Guido,
    Obrigado pelo comentário. São muitas as evidências de que não se trata de falta de recursos por parte da Prefeitura. Caso do exemplo que você menciona. Anualmente a Prefeitura abre inscrições para "financiamento cultural" em diversas áreas. As verbas destinadas à chamada "música clássica" são quantias irrisórias, insuficientes até para remunerar dignamente o trabalho dos músicos.
    Enquanto isso, a Sala Cecília Meireles continua fechada, "em obras", e outros espaços, como o auditório Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música, aguardam por reformas para lá de urgentes. O Poder Público, nos três níveis, não move um dedo, nem disponibiliza um centavo para resolver essas situações.
    Abraço
    Henrique Marques Porto

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