“Tua voz, d’Apparecida, é aparição
Fulgurante, sensitiva, dramática
E vem do fundo negroluminoso dos nossos corações
E vai e volta e vai
Maria d”Apparecida do Brasil,
Aparecedoramente cantaril.”
Carlos Drummond de Andrade.
por Henrique Marques Porto
Anteontem foi dia
de ficar pensando em ópera –récitas, casos, testemunhos, conversas do passado, coisas
do tipo. De repente me lembrei de Maria D’Apparecida. Por onde andaria? O que foi
feito dela? Já havia pesquisado sem sucesso, mas resolvi tentar novamente, no
vai e vem dos caminhos e descaminhos da web. Queria apenas saber se ela ainda estava viva, onde
morava e o que fazia. Há anos li numa revista francesa que ela teria se
recolhido num convento de clausura. Embora não tenha conseguido confirmar a
notícia, a suposta clausura talvez explicasse a falta de informações e a
dificuldade de encontrá-la.
Mas, quem procura acha. Pois acabei achando o que não queria. Maria D’Apparecida morreu no dia 4 de julho de 2017. Seu corpo está no Instituto Médico Legal de Paris
desde então, no aguardo de que alguém da família reclame o corpo. Se isso não
acontecer até o dia 20 de agosto Maria será sepultada como indigente, em vala
comum, num cemitério no subúrbio de Paris. Parece absurdo, mas é verdade. Quem informa é a Chancelaria
Brasileira em Paris. Ora, convenhamos! É assim que são tratados os artistas
brasileiros que morrem no exterior? Não sou ingênuo. Entendo os necessários
trâmites burocráticos, tanto em vida como na morte. É necessário um carimbo
quando a gente nasce e outros tantos quando a gente morre. Mas, não exagerem,
senhores diplomatas. Tenham um pouco de bom senso e humanidade.
Podem me chamar de
ranzinza. Vá lá que eu seja. Mas é dever indeclinável
do Governo Brasileiro e de suas Chancelarias espalhadas pelo mundo garantir a
dignidade dos cidadãos brasileiros falecidos no exterior. Ainda mais quando se
trata de alguém que passou grande parte da vida divulgando na França e na
Europa a arte e a cultura do Brasil, como é o caso de Maria D’Apparecida, que foi mais embaixatriz do que a maioria dos nossos bravos diplomatas.
Mas estamos falando
de uma artista que foi hostilizada, sem trégua, no Brasil. Talvez por inveja. Mas
certamente por grande carga de preconceito racial, da qual ela foi vítima. Sou testemunha
dessa infamidade.
Maria D’Apparecida
cantou uma única vez no Brasil –no Rio de Janeiro, em 1965. Aqui esteve com o
elenco da Ópera de Paris. Na época era a melhor Carmem da França. Foi o que ela cantou aqui, além de O Diálogo das Carmelitas, de Francis Poulenc, sob a batuta de Jacques Pernoo e a direção de Henry Doublier. A crítica não gostou,
boa parte do público torceu o nariz, por causa disso ou daquilo. Até o governador do antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, O Corvo, resolveu dar pitaco: "-Nunca vi um soprano cantando um papel de meio soprano". Experto e ladino em política, ignorante em ópera. Mas ele entendeu que devia entrar no coro de maledicências. Apesar desses
resmungos, foram necessárias duas récitas extras para atender ao público que fazia fila nas bilheterias. Foram cinco récitas ao invés das
três inicialmente previstas. Com teatro lotado em todas.
D’Apparecida não
era uma cantora excepcional, e tinha consciência disso. Mas era excelente
atriz. Carmem é uma personagem cobiçada por praticamente todas as cantoras. Um desafio
verdadeiro. Grandes cantoras se aventuraram na Carmem e foram por ela engolidas. Maria Callas, que tinha voz perfeita
para o papel, gravou a ópera em estúdio, mas sabia que no palco a história seria
outra. Não ousou, respeitou Carmem.
No entanto, outras
cantoras, com muito menos recursos vocais e teatrais foram felizes cantando a Carmem. A francesa Geneviève Vix
(soprano de voz insinuante e grande presença cênica) foi um exemplo da primeira
metade do século passado. Muito bonita e sedutora ela entendia a Carmem.
Maria D’Apparecida é
outro exemplo. Foi uma aparição fulgurante na França dos anos sessenta. Mostrou
aos franceses uma Carmem que eles não
conheciam. Sensual, provocante, atrevida. Arretada! Uma Carmem que continha a negritude da mulher brasileira, e particularmente,
da mulher carioca.
“Quand je vous aimerai? Ma foi, je ne sais pas...
Peut-être jamais!.. peut-être demain!..
Mais pas aujourd'hui... c'est certain.”
A entrada em cena de
D’Apparecida foi com as mãos nas cadeiras, olhando e sorrindo para os homens,
mas altiva, não de forma vulgar. Lembro que a voz soou com menos volume do que o
desejável. Mas ela, ainda assim, ficou senhora do palco. Era uma Carmem negra e Maria d’Apparecida se
orgulhava de ser negra, algo que os patetas racistas não entendiam.
Por sua Carmem recebeu um Orphée d’Or em 1967.
Em 1974 sofreu
grave acidente automobilístico, o que a obrigou a abandonar o canto lírico.
Passou a se dedicar à divulgação da música popular brasileira. Fez shows e gravou muito. Seu disco mais
conhecido é “Maria D’Apparecida et Baden
Powell”, de 1977.
Voltou poucas vezes
ao Brasil. Jamais foi chamada para cantar.
A exceção foi em
1965, com o elenco da Opera de Paris. Houve quem quisesse barrá-la, mas o então
diretor do teatro Municipal, Murilo Miranda, garantiu sua presença. Quando ele
saiu, D’Apparecida foi para o índex. Os franceses voltaram ao Rio nos anos
seguintes, mas ela não estava no elenco. “-A
direção do teatro decidiu me barrar, é exatamente isso que quero dizer.” –afirmou
sem papas na língua numa entrevista.
Maria D’Apparecida
tinha temperamento doce e amável, mas que ninguém ousasse pisar em seus pés.
No final de sua
estreia no Rio, na Carmem, meu pai e
eu, que tinha 15 anos, fomos ao palco. Naquela época isso era permitido. Meu
pai já a conhecia e se corresponderam por algum tempo até sua morte, em 1969.
Ele me apresentou.
“-Esse aqui é meu filho.”
“-Oh! Très charmant!” – exclamou
sorridente e arrematou com beijos nas minhas bochechas. Quase caí sentado, bem ali onde o otário do Don Jose acabara de assassinar Carmem.
Ela era linda! Não sabia
se olhava para os lados, se procurava algo inexistente nos bolsos, se estancava
a incômoda revolução dos hormônios ou se tentava um olhar mais atento no
ousadíssimo decote a dois palmos do meu nariz. Ah, os 15 anos...
Maria D’Apparecida era
mulher espiritualizada, com grande senso de humanidade. Uma alma grande. Bonita, inteligente e corajosa. Fez
muito pela cultura do Brasil e não teve o reconhecimento que lhe é devido. Nosso
maior poeta dedicou-lhe versos. E Drummond não escrevia versos para qualquer
um. Poucos conhecem ou deram atenção. No início dos anos 90 e na década seguinte estava em plena atividade. Participou de shows em favor da luta contra a Aids e outras causas humanitárias. Dedicava-se ainda ao apoio a crianças autistas na França. É o corpo dessa mulher plena de humanidade que a regra cega e insensível dos burocratas quer destinar à vala comum dos indigentes.
Maria D’Apparecida, artista e mulher sensível, olhar arguto e doce, alma acolhedora.
Très
charmant... Eternellement...
PS. Voltando ao Blog graças à competência do Dr. Marco Aurélio Nabuco de Oliveira que me devolveu a visão. Já posso voltar a ver as coisas bonitas e feias desse mundo doido.