domingo, 6 de agosto de 2017

O Adeus a Maria D’Apparecida





“Tua voz, d’Apparecida, é aparição
Fulgurante, sensitiva, dramática
E vem do fundo negroluminoso dos nossos corações
E vai e volta e vai
Maria d”Apparecida do Brasil,
Aparecedoramente cantaril.”

Carlos Drummond de Andrade.

por Henrique Marques Porto

Anteontem foi dia de ficar pensando em ópera –récitas, casos, testemunhos, conversas do passado, coisas do tipo. De repente me lembrei de Maria D’Apparecida. Por onde andaria? O que foi feito dela? Já havia pesquisado sem sucesso, mas resolvi tentar novamente, no vai e vem dos caminhos e descaminhos da web. Queria apenas saber se ela ainda estava viva, onde morava e o que fazia. Há anos li numa revista francesa que ela teria se recolhido num convento de clausura. Embora não tenha conseguido confirmar a notícia, a suposta clausura talvez explicasse a falta de informações e a dificuldade de encontrá-la.

Mas, quem procura acha. Pois acabei achando o que não queria. Maria D’Apparecida morreu no dia 4 de julho de 2017.  Seu corpo está no Instituto Médico Legal de Paris desde então, no aguardo de que alguém da família reclame o corpo. Se isso não acontecer até o dia 20 de agosto Maria será sepultada como indigente, em vala comum, num cemitério no subúrbio de Paris. Parece absurdo, mas é verdade. Quem informa é a Chancelaria Brasileira em Paris. Ora, convenhamos! É assim que são tratados os artistas brasileiros que morrem no exterior? Não sou ingênuo. Entendo os necessários trâmites burocráticos, tanto em vida como na morte. É necessário um carimbo quando a gente nasce e outros tantos quando a gente morre. Mas, não exagerem, senhores diplomatas. Tenham um pouco de bom senso e humanidade.

Podem me chamar de ranzinza. Vá lá que eu seja. Mas é dever indeclinável do Governo Brasileiro e de suas Chancelarias espalhadas pelo mundo garantir a dignidade dos cidadãos brasileiros falecidos no exterior. Ainda mais quando se trata de alguém que passou grande parte da vida divulgando na França e na Europa a arte e a cultura do Brasil, como é o caso de Maria D’Apparecida, que foi mais embaixatriz do que a maioria dos nossos bravos diplomatas.

Mas estamos falando de uma artista que foi hostilizada, sem trégua, no Brasil. Talvez por inveja. Mas certamente por grande carga de preconceito racial, da qual ela foi vítima. Sou testemunha dessa infamidade.

Maria D’Apparecida cantou uma única vez no Brasil –no Rio de Janeiro, em 1965. Aqui esteve com o elenco da Ópera de Paris. Na época era a melhor Carmem da França. Foi o que ela cantou aqui, além de O Diálogo das Carmelitas, de Francis Poulenc, sob a batuta de Jacques Pernoo e a direção de Henry Doublier. A crítica não gostou, boa parte do público torceu o nariz, por causa disso ou daquilo. Até o governador do antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, O Corvo, resolveu dar pitaco: "-Nunca vi um soprano cantando um papel de meio soprano". Experto e ladino em política, ignorante em ópera. Mas ele entendeu que devia entrar no coro de maledicências. Apesar desses resmungos, foram necessárias duas récitas extras para atender ao público que fazia fila nas bilheterias. Foram cinco récitas ao invés das três inicialmente previstas. Com teatro lotado em todas.
D’Apparecida não era uma cantora excepcional, e tinha consciência disso. Mas era excelente atriz. Carmem é uma personagem cobiçada por praticamente todas as cantoras. Um desafio verdadeiro. Grandes cantoras se aventuraram na Carmem e foram por ela engolidas. Maria Callas, que tinha voz perfeita para o papel, gravou a ópera em estúdio, mas sabia que no palco a história seria outra. Não ousou, respeitou Carmem.

No entanto, outras cantoras, com muito menos recursos vocais e teatrais foram felizes cantando a Carmem. A francesa Geneviève Vix (soprano de voz insinuante e grande presença cênica) foi um exemplo da primeira metade do século passado. Muito bonita e sedutora ela entendia a Carmem.  

Maria D’Apparecida é outro exemplo. Foi uma aparição fulgurante na França dos anos sessenta. Mostrou aos franceses uma Carmem que eles não conheciam. Sensual, provocante, atrevida. Arretada! Uma Carmem que continha a negritude da mulher brasileira, e particularmente, da mulher carioca.


“Quand je vous aimerai? Ma foi, je ne sais pas...
Peut-être jamais!.. peut-être demain!..
Mais pas aujourd'hui... c'est certain.


Carmem, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 1965.

A entrada em cena de D’Apparecida foi com as mãos nas cadeiras, olhando e sorrindo para os homens, mas altiva, não de forma vulgar. Lembro que a voz soou com menos volume do que o desejável. Mas ela, ainda assim, ficou senhora do palco. Era uma Carmem negra e Maria d’Apparecida se orgulhava de ser negra, algo que os patetas racistas não entendiam.

Por sua Carmem recebeu um Orphée d’Or em 1967.
Em 1974 sofreu grave acidente automobilístico, o que a obrigou a abandonar o canto lírico. Passou a se dedicar à divulgação da música popular brasileira. Fez shows e gravou muito. Seu disco mais conhecido é “Maria D’Apparecida et Baden Powell”, de 1977.

Recorte enviado por Maria D'Apparecida 

Voltou poucas vezes ao Brasil. Jamais foi chamada para cantar.
A exceção foi em 1965, com o elenco da Opera de Paris. Houve quem quisesse barrá-la, mas o então diretor do teatro Municipal, Murilo Miranda, garantiu sua presença. Quando ele saiu, D’Apparecida foi para o índex. Os franceses voltaram ao Rio nos anos seguintes, mas ela não estava no elenco. “-A direção do teatro decidiu me barrar, é exatamente isso que quero dizer.” –afirmou sem papas na língua numa entrevista.
Maria D’Apparecida tinha temperamento doce e amável, mas que ninguém ousasse pisar em seus pés.

No final de sua estreia no Rio, na Carmem, meu pai e eu, que tinha 15 anos, fomos ao palco. Naquela época isso era permitido. Meu pai já a conhecia e se corresponderam por algum tempo até sua morte, em 1969. Ele me apresentou.

“-Esse aqui é meu filho.”
“-Oh! Très charmant!” – exclamou sorridente e arrematou com beijos nas minhas bochechas. Quase caí sentado, bem ali onde o otário do Don Jose acabara de assassinar Carmem

Ela era linda! Não sabia se olhava para os lados, se procurava algo inexistente nos bolsos, se estancava a incômoda revolução dos hormônios ou se tentava um olhar mais atento no ousadíssimo decote a dois palmos do meu nariz. Ah, os 15 anos...

Maria D’Apparecida era mulher espiritualizada, com grande senso de humanidade. Uma alma grande. Bonita, inteligente e corajosa. Fez muito pela cultura do Brasil e não teve o reconhecimento que lhe é devido. Nosso maior poeta dedicou-lhe versos. E Drummond não escrevia versos para qualquer um. Poucos conhecem ou deram atenção. No início dos anos 90 e na década seguinte estava em plena atividade. Participou de shows em favor da luta contra a Aids e outras causas humanitárias. Dedicava-se ainda ao apoio a crianças autistas na França. É o corpo dessa mulher plena de humanidade que a regra cega e insensível dos burocratas quer destinar à vala comum dos indigentes. 

Maria D’Apparecida, artista e mulher sensível, olhar arguto e doce, alma acolhedora. 
Très charmant... Eternellement...


PS. Voltando ao Blog graças à competência do Dr. Marco Aurélio Nabuco de Oliveira que me devolveu a visão. Já posso voltar a ver as coisas bonitas e feias desse mundo  doido.